Diário do Alentejo

Os campos do Baixo Alentejo na década de 1950 revisitados

09 de agosto 2019 - 12:00

A exposição “Os Campos do Baixo Alentejo da década de 1950”, organizada pelo Museu da Ruralidade, do município de Castro Verde, já foi inaugurada em Entradas, no espaço do Pavilhão de Reservas daquele museu. A exposição tem a coordenação científica de Constantino Piçarra, investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.

 

Texto Carlos Lopes Pereira

Os museus “são lugares de memória, competindo-lhes socializá-las não só sob a forma de divulgação dos respetivos acervos, mas também, e sobretudo, produzindo conhecimento sobre as temáticas que tratam, pois só este caminho poderá levar à compreensão do passado que os museus encerram”, explica Constantino Piçarra. E defende que “mais importante do que recordar o passado, é compreendê-lo”.

É, pois, com este duplo objetivo que o Museu da Ruralidade organiza a exposição. Pretende mostrar um conjunto de peças relacionadas com as atividades agrícolas do Baixo Alentejo da década de 1950 e traçar um quadro explicativo da agricultura e da sociedade rural deste período em três áreas: estrutura fundiária, modos de produção e condições de vida dos trabalhadores do campo.

A exposição visa ainda um terceiro objetivo, que é dar a conhecer o Pavilhão de Reservas do Museu da Ruralidade, espaço que ficou concluído neste ano de 2019 e que é um equipamento fundamental para a guarda e recuperação das diferentes peças que constituem o acervo do museu, que tem como temática a sociedade rural do Baixo Alentejo e como período cronológico o tempo que vai de finais do século XIX até aos anos 70 do século XX.

 

O “Diário do Alentejo” colocou a Constantino Piçarra seis questões sobre os campos do Baixo Alentejo na década de 1950, o tema da exposição.

Nesses anos 50 do século passado, em pleno fascismo, qual a estrutura fundiária e os modos de exploração da terra nos campos do distrito de Beja? Portugal na década de 1950 é um país maioritariamente agrícola e o Alentejo, nomeadamente, o distrito de Beja, é a expressão clara desta realidade.Nas duas décadas anteriores, muito devido à campanha do trigo lançada em 1929, assiste-se, a sul, a um aumento significativo da área semeada deste cereal e ao crescimento da população ativa na agricultura. Este incremento agrícola não se faz, no entanto, pela via da intensificação da produção nem pela mecanização, mas sim pelo aumento da área cultivada, onde os pequenos seareiros desempenham um papel fundamental desbravando o mato das piores terras do latifúndio com base em contratos de parceria à terça, à quarta ou à quinta. E tudo isto ocorre num quadro duma estrutura fundiária onde domina a grande propriedade, com cerca de dois por cento dos proprietários agrícolas a serem detentores de perto de 50 por cento da área agrícola do Baixo Alentejo, num contexto económico e social onde pequenos proprietários, rendeiros e seareiros, bem como os assalariados rurais, vivem mergulhados em condições de vida muito duras. Em termos de formas de exploração da terra, no distrito de Beja, domina a exploração por conta própria. No entanto, nos concelhos de piores terras o arrendamento e a parceria atingem um peso significativo, caso de Castro Verde, onde 76 por cento da terra é explorada sob a forma desta última modalidade: a parceria. A explicação reside no facto de ser, para os proprietários, mais lucrativa esta forma de exploração do que por conta própria, ou seja, com recurso a mão de obra assalariada. É de sublinhar, ainda, a existência nesta década, no Baixo Alentejo, segundo o “Inquérito Agrícola de 1952”, de 14 705 explorações agrícolas familiares, 73 por cento do total, facto bem revelador do peso social e económico importante dos pequenos e médios agricultores, os quais, apesar da pouca terra que possuem, ajudam a viabilizar os vários ofícios sediados nas vilas ligados ao trabalho do campo: ferradores, ferreiros, albardeiros, abegões, etc..

 

Qual a tecnologia agrícola utilizada então e que mudanças houve, nesse aspeto, nesses anos?Na década de 1950, apesar do modelo de desenvolvimento agrícola referido, assente na conquista de incultos sem alteração dos modos de produção, estar a dar sinais de esgotamento, ainda é a tração animal que domina e onde o trabalho braçal nas tarefas agrícolas (ceifa, debulha, monda, apanha da azeitona, etc.) desempenha um papel fundamental. Um bom exemplo desta realidade é a situação existente em 1948, à entrada, portanto, da década de 1950, na herdade dos Machados, um latifúndio com 6000 hectares do concelho de Moura, onde, a par dos dois únicos tratores existentes, a tração animal é fornecida por 44 mulas, 20 burros, 170 bois e 80 vacas e onde se empregam permanentemente 450 homens, a que se somam 100 a 150 mulheres na monda, 60 a 80 homens na ceifa e 250 homens e 350 mulheres na apanha da azeitona. No entanto, é nos anos 50 do século passado que o processo de mecanização começa a ter o seu incremento, atingindo valores significativos na década seguinte. Para se ter uma ideia desta mecanização real, mas muito lenta, basta referir que de 1952 a 1960, em todo o Alentejo, passa-se de 1401 a 3894 tratores e de zero ceifeiras-debulhadoras a 278.

 

Quem trabalhava a terra, quem eram os proprietários?Atendendo aos dados estatísticos, verifica-se que em 1950, no distrito de Beja, existem 69 679 assalariados rurais, o que significa 83,3 por cento da população ativa agrícola. Apesar da importância em número, peso social e económico das classes intermédias dos campos do Baixo Alentejo, como referido, a esmagadora maioria do trabalho agrícola é efetuada pelos assalariados rurais, aos quais se juntam em determinadas épocas do ano, nomeadamente, durante o período das ceifas, ranchos de trabalhadores – homens e mulheres – provenientes, sobretudo, do Algarve. Os grandes proprietários, os que possuem mais de 500 hectares, são poucos, não mais de dois por cento, mas as suas explorações ocupam cerca de 50 por cento da área agrícola disponível do Baixo Alentejo. Vivem, em regra, na sede do concelho em habitações bem reveladoras da posição social ocupada, e que é a cimeira numa estrutura social fortemente hierarquizada que tem na base os trabalhadores de jorna. São ainda estes grandes proprietários agrícolas que controlam todo o aparelho político e corporativo local do “Estado Novo”.

 

 

"Em termos gerais pode-se dizer que, no final dos anos 50 do século passado, o salário médio de um assalariado rural, fora do período da ceifa, ronda os 26$00, o que não é suficiente para adquirir um cabaz constituído por um litro de azeite (14$80), uma dúzia de ovos (9$28) e um litro de feijão (5$13), facto bem demonstrativo das condições difíceis em que vivem os trabalhadores do campo".

Quais eram os modos de vida dos trabalhadores dos campos?Os assalariados rurais do Baixo Alentejo atravessam toda a década de 1950 tentando impor na praça de jornas, sobretudo no verão, no período das ceifas, quando a situação lhes é mais favorável, aumentos do salário diário, o que só parcialmente conseguem. A mecanização que, como já foi referido, começa a desenvolver-se a partir de meados da década, retira capacidade reivindicativa aos trabalhadores, o que os leva a deslocarem a centralidade das lutas para a época das mondas.Em termos gerais pode-se dizer que, no final dos anos 50 do século passado, o salário médio de um assalariado rural, fora do período da ceifa, ronda os 26$00, o que não é suficiente para adquirir um cabaz constituído por um litro de azeite (14$80), uma dúzia de ovos (9$28) e um litro de feijão (5$13), facto bem demonstrativo das condições difíceis em que vivem os trabalhadores do campo. Por outro lado, os elevados custos de produção, onde, por exemplo, uma jeira de parelha de muares custa 87$00 e um saco de adubo (amónio) de 100 quilos 230$00, também não facilita a vida a pequenos produtores.Estas condições de vida duras de assalariados rurais e pequenos agricultores são bem visíveis nas suas habitações onde a água é acarretada em bilhas de barro, a confeção dos alimentos se faz a lenha, a iluminação a petróleo e os despejos são efetuados no campo.

 

Em relação à década de 50, quais são hoje as diferenças na estrutura agrária no Alentejo? Como se sabe, no período subsequente ao 25 de Abril de 1974, no âmbito do processo revolucionário que entretanto se desenvolve, dão-se profundas alterações nas relações de produção e na estrutura fundiária vigente à data nos campos do sul. Terminada a revolução e consolidada a democracia regressou-se à estrutura fundiária dominante no Alentejo antes de Abril de 1974, a qual, por todo o século XX, conseguiu resistir a todas as tentativas de reforma, quer as desenvolvidas durante a I República, nomeadamente, a protagonizada por Ezequiel de Campos durante o governo de José Domingos dos Santos, quer as gizadas durante o “Estado Novo” a partir de 1934 até ao deflagrar da II Guerra Mundial, no período em que Rafael Duque ocupa as pastas da Agricultura e da Economia.

"Atendendo aos dados estatísticos, verifica-se que em 1950, no distrito de Beja, existem 69 679 assalariados rurais, o que significa 83,3 por cento da população ativa agrícola". 

Exposição em Entradas no 8.º aniversário do Museu da Ruralidade

O Museu da Ruralidade, em Entradas, dedicado à sociedade rural do Baixo Alentejo de finais do século XIX e primeiros 70 anos do século XX, materializando uma das suas funções, que é investigar para poder divulgar a história deste período, com isto se preservando a memória dum espaço e de um território, inaugurou no seu Pavilhão de Reservas uma exposição sobre “Os campos do Baixo Alentejo da década de 1950”. Nesta exposição, que estará patente ao público durante os meses de agosto e setembro, no horário normal de funcionamento do museu (de terça-feira a domingo 10:00-12:30/ 14:00-18:00), os visitantes poderão tomar contacto com os aspetos mais marcantes da sociedade rural do Baixo Alentejo dos anos 50 do século passado: estrutura fundiária, formas de exploração da terra e condições de vida dos assalariados rurais e das classes intermédias dos campos.

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