Texto | José d’Encarnação Arqueólogo
O facto de as “pedras com letras” continuarem a ser, agora, alvo de particular atenção – mormente, as antigas e, sobretudo, as que têm misteriosos escritos, plasmados numa língua que ninguém entende… – vem proporcionando descobertas insuspeitadas.
De nos congratularmos, por outro lado, com a cada vez maior tomada de consciência de que, aparentemente desinteressantes e sem préstimo, essas pedras podem transmitir-nos mensagens suscetíveis de trazer informação relevante para a História.
Agradece-se, por isso, a Fernando Valente por nos ter dado a conhecer uma dessas pedras, de mármore branco com bastante pátina, que há anos fora achada na Herdade das Pias, freguesia de Faro do Alentejo, concelho de Cuba, na posse de Nuno Cardoso, proprietário da herdade. Já houve oportunidade de lhe agradecer as facilidades concedidas para o estudo do monumento, estudo que – em colaboração com Jorge Feio – se publicou, em 2018, no n.º 178 da revista “Ficheiro Epigráfico”.
Do que então se deu a conhecer se faz agora resumo, na medida em que, como se verá, constitui testemunho invulgar do que, no tempo dos romanos, aconteceu no território da cidade de Pax Iulia.
O louvor
Antes, porém, importa consignar o louvor.
Amiudadas vezes, possuidores de achados arqueológicos preferem escondê-los, com receio (porventura) de virem a sofrer represálias.
Recordo o caso de uma placa funerária romana que identifiquei numa herdade do Alto Alentejo. Expliquei ao proprietário quão fora do comum eram os nomes nela patentes. Quando, porém, meses depois, voltei ao local para fazer melhor fotografia, a pedra levara sumiço e ninguém me soube (ou não quis) dizer do seu paradeiro. Por sinal, recentemente, um historiador francês voltou a debruçar-se sobre a epígrafe e lamentou, claro, dela não haver um registo melhor do que aquele que, na primeira visita, eu lograra obter.
O estudo duma peça arqueológica enriquece a nossa memória e enriquece, além disso, o seu proprietário, porque fica a conhecer melhor o que tem em seu poder.
Louve-se, conseguintemente, a atitude de Nuno Cardoso, assim como a de tantos outros que não hesitam em colocar ao dispor dos estudiosos objetos de valor histórico de sua pertença, os quais, mediante esse estudo, acabam por ser incorporados no espólio do património comum, sem restrita obrigatoriedade de o virem a entregar a um museu institucional.
Invulgar porquê?
Digamos, então, porque é invulgar o texto exarado, em latim, na pedra da Herdade das Pias, datável, mui provavelmente, do século I da nossa era. Facilmente o compreenderemos ao ler a sua tradução para português:
“Nerito, servo de Maria Prisca, de 20 anos, este morreu em Roma e também a irmã Nereida, de 25 anos, aqui jaz. Tu, que caminhas, pára e diz: que a terra seja leve”.
Tivemos ocasião de comentar o que, de imediato, desse texto transparece:
“Um ambiente em que predomina um halo de muito carinho e tristeza, mormente perante a morte prematura de entes queridos. No caso presente, dois irmãos: faleceu Neritus em Roma, com apenas 20 anos, antes de a família Maria se ter deslocado para as úberes terras pacenses, em busca de boa agricultura ou na mira de o negócio das minas lhes poder dar melhores condições de vida; já aqui, foi a vez de Nereida partir, também na flor da idade. Motivo havia, portanto, para lamentar as suas mortes e, irmãos na vida, irmanados serem na memória tumular”.
E logo por esse comentário se conclui da singularidade do epitáfio, a confirmar três aspetos da sociedade pacense:
– O 1.º, a relacionação, aqui assinalada, entre as gentes desta cidade bem nos remotos confins da Lusitânia com a capital do império de então, Roma.
– O 2.º, também visível por se haver identificado a senhora de Nerito, a inclusão deste testemunho num meio social que detinha servos, sim, mas aos quais não tinha pejo de dedicar especial atenção, aqui consubstanciada na gravação desta memória.
– Finalmente, a escolha, para os servos, de nomes de cunho mitológico e o apelo a que o transeunte pare e formule um voto de bom descanso, se reafirmam esse halo de ternura, não deixam de demonstrar, por outro lado, um grau de cultura não despiciendo, denunciado também pelo uso não muito comum do verbo latino “contendere”, caminhar, em oposição a “sistere”, parar, como tivemos ocasião de referir.Sete linhas apenas são, na verdade; veiculam, porém, uma mensagem cultural de… setenta vezes sete!