Diário do Alentejo

Senhora da Boa Sorte!

05 de agosto 2025 - 08:00

José D’Encarnação Arqueólogo

 

O epitáfio romano obedece a formulários mais ou menos estereotipados:

– a consagração aos deuses Manes, para que o sepulcro assim consagrado não sofra violação;

– a identificação do defunto, de quem pode vir expressa, além do nome, a idade com que faleceu;

– e a típica expressão final: “Aqui jaz. Que a terra te seja leve”.

Quando se declara de quem partiu a iniciativa de mandar lavrar o epitáfio, lá temos ocasião de saber um pouco mais de relações familiares ou amorosas; e quando ao nome do defunto se junta um adjetivo, então mais nos sentimos irmanados com a dor dessa partida.

Há, porém, monumentos que, por saírem desses cânones estereotipados, nos dá particular gozo mostrar. É o caso do altar encontrado, em 1942, em Vale de Aguilhão.

 

Vistosa casa de campo

 

Antes, porém, cumpre dizer – servindo-nos do que Abel Viana contou no seu livrinho Museu Regional de Beja (1946, p. 78-79) – que esse Vale de Aguilhão, pertencente ao sítio da freguesia da Boa Vista, então na freguesia de Santa Clara de Louredo (Beja), “fica a pouco mais de 1 km da cidade ao longo de estrada que vai para Mértola”.

Estava, nessa altura, o campo repleto de fragmentos de telhas romanas e de argamassas, tijolos e outros materiais, de que foram para o museu “algumas amostras, assim como um fuste de coluna toscana com a respectiva base e um bocado de taça de mármore branco muito fino lavrado em forma de concha canelada (vieira)”.

E mais soube Abel Viana do moço de lavoura que tudo desfez no mesmo lugar:

“Havia sepulturas construídas de grossos tijolos cortados e argamassados, com algumas pequenas pedras à mistura. Duas estavam a par, separadas apenas por um tabique de tijolo posto de cutelo. Conservavam as ossadas. De uma delas colheram uma vasilha feita de pedra calcária (…), muito perfeita no bocal e na asa assim como no polido da superfície interna e externa”.

Acrescentou o historiador que tanto a vasilha como o cipo se encontram na Quinta da Boa Vista, residência de campo do senhor Jorge Black, visconde da Corte, proprietário do terreno onde estes achados ocorreram”.

Da quinta se lê hoje que “ainda aí subsiste alguma opulência antiga entre estátuas, aquedutos ou bancos de repouso. No palacete guarda-se um cipó funerário, de mármore, achado em 1942, no Vale de Aguilhão, pertencente a esta Quinta da Boavista, durante escavações acidentais que puseram a descoberto – além de outros túmulos, de ladrilho – muitos materiais romanos: tégulas, cerâmicas, um fuste de coluna e fragmento de uma taça de calcário, em forma conchoidal”.

Foi, pois, aí que, em abril de 1977, houve oportunidade de estudar esse tal “cipó”, elegante altar funerário romano, que se estudou, sob o n.º 309, no livro das Inscrições Romanas do Conventus Pacensis (1984), erguido pelo século II da nossa era, em memória de Labéria Calética, falecida aos 42 anos.

 

Calética

 

A sua história poderia contar-se assim:

Um dia, membros da abastada família Labéria, de Pax Iulia, deixaram-se encantar pela beleza de uma menina. Trouxeram-na para a sua villa, a tal vistosa casa de campo nos arredores da cidade, e tanto gostaram logo dela que lhe deram o nome de Calética, que significa, em grego, “boa sorte” (Καλή Τύχη).

Calética foi crescendo nas boas graças dos seus amos, até que, anos mais tarde, eles decidiram libertá-la, dando-lhe lugar na família. Por isso, se passou a chamar Labéria Calética.

Quando faleceu, tão grande foi o desgosto de todos, que deliberaram erigir-lhe um dos mais bonitos monumentos de Pax Iulia.

E, para que seus restos mortais perenemente fossem considerados puros, esculpiram nesse altar um jarro e uma pátera (prato), como para lhe garantir: “Eternamente os estamos a purificar, Calética, como fizemos no triste dia das tuas exéquias…”.

Comentários