Diário do Alentejo

Então, gostaram do espetáculo?

09 de março 2025 - 08:00

José D’Encarnação Arqueólogo

 

O álbum de desenhos de monumentos epigráficos romanos atribuído a Frei Manuel do Cenáculo, de sua lavra ou de algum dos seus colaboradores, religiosamente guardado na Biblioteca Pública de Évora, inclui, com o n.º 39, o esboço de uma pedra inscrita encontrada na muralha da cidade de Beja, “às portas de Mértola”.

O escrito já não estaria, como a imagem mostra, bastante legível, mas não há dúvida de que estamos perante o epitáfio de um Patricius. Na primeira linha, também se leria bem a habitual consagração aos deuses Manes: as siglas D · M · S. Na quarta linha, ANNORVM significa “de anos”, que antecederia o numeral indicativo da idade com que Patrício faleceu.

Nada a comentar acerca da identificação do defunto com apenas um nome, embora, por, na linha três, Emílio Hübner – epigrafista alemão que, em meados do século XIX, examinou detidamente o desenho – ter reconstituído a palavra “exodiarius”, indicativo duma profissão vedada aos homens livres, se pense que Patrício poderá ter sido um servo.

 

Uma palavra… essencial!

 

O que Hübner foi dizer! Fora sepultado em Pax Iulia e, aparentemente, sem grande cerimónia, um exodiário!

A palavra é, aparentemente, mui simples, mas o facto de ali se ter lido fez com que este fragmento – ao qual, depois, se não terá ligado grande importância e, por isso, levou descaminho – passasse a andar, como sói dizer-se, “nas bocas do mundo”!

É que exodiário era, nada mais, nada menos, o nome que se dava ao ator que, no final duma representação, entrava em cena para, em jeito de despedida, cantarolar em ar de chalaça, para melhor dispor o público. Também poderia declamar uma peça curta, género de farsa. Como o próprio termo dá a entender, o exodiário preparava alegremente o êxodo, a saída dos espetadores…

Diga-se, desde já, que – a ser assim – só se registaram, até ao momento, no mundo romano, apenas mais duas inscrições, e em Roma, com referência a exodiários: numas festas realizadas no ano de 212, interveio o exodiário Asínio, possivelmente, servo de Ingénua, que integrava a centúria de Victorino; e, no epigrama em que um partidário de Marco Ânio Vero ridiculariza o adversário Urso, alude-se também à atuação de um exodiário.

Tal escassez de testemunhos confere, naturalmente, a Pax Iulia lugar cimeiro do ponto de vista cultural. Não que tivesse uma companhia de teatro residente (privilégio que, ainda nos nossos dias, poucas são as cidades com privilégio tal…), mas terá sido, em determinada altura, visitada por uma dessas companhias ambulantes (as chamadas “greges” ou “catervae”), que teve a infelicidade de ter de sepultar em Pax Iulia o seu dileto exodiário, decerto vitimado por súbita doença.

 

O teatro de Pax Iulia

 

Por conseguinte, uma conclusão não tem padecido objeção por parte dos investigadores: houve um teatro em Pax Iulia, onde, em determinado momento, há pouco mais de dois mil, a culminar um espetáculo, um ator veio deliciar os pacenses com mais uma bem humorada e aplaudida facécia!

Há mesmo quem afirme sem rebuço que sim, que a equipa de arqueólogos que na cidade trabalhou já descobrira o local onde estarão enterrados os restos arquitetónicos desse edifício teatral. Estudar-se-á oportunamente a ocasião azada para aí se procederem às necessárias sondagens preliminares tendentes à sua identificação e conseguinte confirmação das bem fundadas suspeitas.

Até ao momento, perante a circunstância de haver teatros nas cidades romanas peninsulares, suspeita-se que o espírito alegre dos habitantes desta parte ocidental da Lusitânia obrigatoriamente tenha pugnado pela edificação de edifícios onde pudessem mostrar as suas ou alheias qualidades dramáticas.

Certo, certo, temos o de Lisboa, hoje bem reabilitado, que terá sido – e é – centro de notáveis atividades, inclusive das artes de Tália (musa da comédia) e de Melpómene (musa da tragédia). Aliás, temos aí mesmo uma escultura a representar Melpómene!

Também em relação a Évora há sérios argumentos para se suspeitar onde é que o teatro romano estará localizado. Acresce um outro dado, de peso: numa inscrição, o subselário Aulo Castrício Fílon escreveu que fizera um “subsellium” para o senhor que o libertara. Ora, subsélio era o nome dado a um assento no teatro e a inscrição de mármore que se identificou apresenta o campo epigráfico levemente côncavo, tem pouco mais de 40 centímetros de altura e 60 a 70 centímetros de comprimento, dimensões que se adequam perfeitamente à parte dianteira da bancada sob o assento. Teria, pois, o senhor lugar reservado, o que lhe conferia real prestígio perante a comunidade.

De Pax Iulia, por enquanto, só temos – para além das referidas suspeitas de localização – a menção a Patrício, o presumível exodiário, que imaginamos a mimosear os espetadores com mui divertidas facécias no final dum espetáculo. Todos os historiadores da Antiguidade são, porém, unânimes: como capital que era, Pax Iulia dispunha obrigatoriamente de um teatro. Havemos de o encontrar!

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