Diário do Alentejo

A vernação circinada num túmulo romano de Beja

10 de junho 2025 - 08:00

José d’Encarnação Arqueólogo

 

Tive oportunidade de estudar, em abril de 1977, na casa do dr. Fernando Nunes Ribeiro – a quem a história e o património cultural de Beja tanto ficaram a dever –, uma grande cupa funerária, de mármore azulado de Trigaches, achada na herdade de Santa Luzia, pertencente hoje, do ponto de vista administrativo, à União de Freguesias de Trigaches e São Brissos, concelho de Beja. Guarda-se no Museu Rainha D. Leonor.

– Mais uma cupa! – exclamar-se-á! – Mais um daqueles monumentos em forma de pipa sob os quais os romanos enterravam os seus mortos!...

Sucede, porém, que esta é uma cupa especial.

Primeiro, porque tem dimensões fora do comum: o comprimento é de 138,5 centímetros; tem 43 centímetros de altura por 60 de largura. Além disso, mantém o soco sob que assentava a caixa funerária propriamente dita, que ficava soterrada. Esculpiram-se-lhe no dorso os rasgos a simbolizar quatro pares de aros que prendiam as aduelas da pipa.

Depois, porque ao defunto foi dado um nome fora do comum e porque, nos topos, se apresenta gravada uma decoração deveras singular.

 

Um nome invulgar

 

Antes do estudo publicado, sob o n.º 308, no livro Inscrições Romanas do Conventus Pacensis, em 1984, somente António García y Bellido, iminente arqueólogo espanhol, publicara a ficha deste monumento, num artigo publicado, em Espanha, no “Boletín de la Real Academia de la Historia”, em 1971; mas, na segunda linha, do nome do defunto só leu IVI////RI

O epitáfio, redigido em latim, como habitualmente acontece, foi gravado como na placa moldurada, esculpida no dorso da cupa, entre a representação dos aros. Diz o seguinte, em português: “Consagrado aos deuses Manes. Aqui jaz Júlio Primião, de 65 anos. Que a terra te seja leve”.

Tal como “leo”, em latim, deu “leão”, em português, também aqui se deverá traduzir o nome por Primião e não como Prímio, como se escreveu em 1984. 65 anos pode ser indicação de idade arredondada, para dizer que… já teria a sua idade (para usarmos uma expressão eufemística).

O que, todavia, mais nos interessa verificar é que, por dele se não indicar a filiação, Primião deverá incluir-se no rol dos libertos; ou seja, foi servo da conhecida família Júlia, que o libertou.

Há, até ao momento, só mais dois testemunhos do uso deste nome na Hispânia romana: em Trujillo (Extremadura espanhola), um Primião, ao lavrar o epitáfio de Verano (porventura o seu senhor) não desdenha em identificar-se como servo; em Barcelona, a liberta Domícia Aucta não hesita em proclamar Públio Fábio Primião seu companheiro de cativeiro; já em Santiponce, na zona de Sevilha, de um Lúcio Úlpio Primião nada de especial se sabe.

 

Uma decoração prenhe de simbolismo

 

Em cada um dos topos, o baixo-relevo representa um tronco florido vertical, donde saem, simétricos, caules estilizados que enrolam na ponta. Lembra, pois, um feto, planta viçosa de folha permanente.

Uma decoração de que – salvo o caso de que adiante se falará – não se conhecem semelhanças no âmbito dos monumentos epigráficos romanos da Lusitânia ou, sequer, da Península Ibérica. Decoração que, à partida, dificilmente se poderá considerar reprodução de plantas locais, ainda que – importa recordar – mui diferente poderia ter sido, no tempo dos romanos, o revestimento vegetal desse além-Tejo: mais abundante arborização quiçá vestiria de verde essas planuras e, sob a fresca espessura do arvoredo, os fetos teriam de vicejar e o estranho e lento desenrolar das suas folhas – a vernação circinada das suas frondes fechadas, para se usar terminologia botânica – não deixaria de atrair atenções, como hoje nos regalamos na admiração da fresca Feteira da Condessa do Parque Nacional da Pena, em Sintra.

E o outro exemplo vem do Algarve: o fragmento de um altar romano, em que essa decoração está bem explícita.

O simbolismo de renovação e crescimento patente na vernação circinada é evidente e já os romanos o conheciam: o modo como a folha se desenrola lentamente representa o processo natural de revelação ou despertar, tal como algo que se mostra gradualmente. A vontade da família de que o defunto viva eternamente em sua companhia também…

Aqui singularmente mostrada, o simbolismo ímpar da vernação circinada percorreu séculos e mundos, não nos repugnando, por isso, chamar à colação o koru neozelandês, diretamente inspirado no modo como os fetos nativos (como o silver fern, o feto prateado) se desenrolam, e que veio a tornar-se um ícone nacional e espiritual.

Para onde os romanos nos levam!...

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