Diário do Alentejo

O palacete da praça velha de Vila Alva… Um portal para novas leituras

16 de outubro 2023 - 09:35
Foto| DRFoto| DR

Texto João Taborda, professor

 

Século XVI A partir do século XVI não é possível falar de Água de Peixes, Albergaria dos Fusos, Vila Ruiva ou Vila Alva sem fazer referência aos condes de Tentúgal, também marqueses de Ferreira e, mais tarde, duques de Cadaval, a mais importante das casas senhoriais portuguesas depois da Casa Real de Bragança. Com efeito, em janeiro de 1501 a vila de Albergaria dos Fusos e as terras e quinta de Água de Peixes são adquiridas por D. Álvaro (c.1440-1504), irmão de D. Fernando II, 3.º duque de Bragança. Em maio de 1520 é a vez de Vila Alva e Vila Ruiva entrarem para o rol das terras e vilas pertencentes ao seu filho mais velho, D. Rodrigo de Melo (1468-1545), 1.º conde de Tentúgal, 1.º marquês de Ferreira e o tronco da futura Casa de Cadaval.

Durante o século XVI e as primeiras décadas do seguinte os representantes desta família passarão a residir longas temporadas neste recanto do Alentejo, nomeadamente, na sua casa de campo de Água de Peixes “(…) por ser o sitio ameno, abundante de caça, com muita agua, (…) de que ainda hoje se vê na antiguidade do Palacio, e da Quinta, a grandeza dos Senhores della, e o bom gosto, que tinhaõ daquelle agradavel retiro, em que passavaõ muita parte do anno, por ser em todas as Estações saudavel”. (D. António Caetano de Sousa, Historia Genealogica da Casa Real Portugueza, Vol. IX, p. 206). Mas também as vizinhas Vila Ruiva e Vila Alva terão merecido a atenção desta família. Abel Viana, num artigo que dedicou à Misericórdia de Vila Ruiva (Arquivo de Beja, 1951, pp. 3-69), refere ter como certo que “(…) enquanto o 2.º Marquês de Ferreira [D. Francisco de Melo (1513-1588)] vivia no seu solar de Água de Peixes, o irmão clérigo, D. Álvaro [?-1578], edificava o castelo de Vila Ruiva, a dois passos da casa paterna, ou adaptava a sua residência o Castelo que possivelmente lá existisse (…)”. Este D. Álvaro foi o fundador da Misericórdia de Vila Ruiva, no ano de 1571, e o seu primeiro provedor, andando a provedoria desta instituição, até ao século XVII, nas pessoas dos marqueses de Ferreira (Abel Viana, op. cit.).E da presença desta família em Vila Alva, o que se sabe? É de novo D. António Caetano de Sousa (op. cit., p. 237) quem nos dá notícias, ao escrever, a propósito do filho de D. Nuno Alvares Pereira de Melo (c.1552-1597), 3.º conde de Tentúgal: “Nasceo o Marquez D. Francisco de Mello [3.º marquês de Ferreira] na Villa de Villalva na Provincia do Alentejo a 5 de Agosto do anno de 1588, e foy bautizado no dia 15 do referido mez (…)”, talvez, acrescento, na pia baptismal mandada fazer para a igreja de Nossa Senhora da Visitação de Vila Alva no ano de 1534. E D. António acrescenta: “He esta Villa huma das que são do Estado da casa de Ferreira, em que seus Excelentissimos pays assistiaõ por algum tempo, no qual seu avô o Marquez D. Francisco, I. do nome, ainda vivia”. Parece, pois, legitima a hipótese de esta família, para além da casa de campo de Água de Peixes e do castelo de Vila Ruiva, possuir também residência em Vila Alva, eventualmente, mandada levantar na primeira metade de Quinhentos. Assim se poderão entender as visitas dos marqueses a Vila Alva e aí ter nascido D. Francisco de Melo.

Século XX Nos anos Oitenta do século passado, a Misericórdia de Vila Alva iniciou um projeto de referenciação e salvaguarda de um considerável número de peças de interesse histórico e arqueológico, encontradas dispersas por aquela freguesia, mas também pela vizinha de Vila Ruiva. Recolhidas no complexo das igrejas da Misericórdia e do Senhor Jesus dos Passos de Vila Alva, onde aguardam musealização, interessam para aqui as seguintes: uma mísula normal, uma base(?) de fuste de secção octogonal, ornada com fita em enrolamento helicoidal sobre tronco de videira com olhais e um anel de coluna com encordoado simples (esta descrição e os desenhos que ilustram este texto, datados de 1988, são da autoria de Leonel Borrela, que aqui recordo e homenageio). Pelo seu valor artístico e gramática decorativa, que remete para o estilo Manuelino, estes elementos arquitetónicos, talhados em mármore, parecem ser compatíveis com: a) Um edifício do século XVI que, naturalmente, sobressairia numa vila feita de humildes casebres e onde, segundo o Numeramento de 1527–1532, viveriam 81 moradores (no sentido de chefes de família ou fogos), o que, utilizando-se um valor médio de quatro pessoas por fogo, daria um total de 324 pessoas (valor para o qual Vila Alva tende neste primeiro quartel do século XXI!). b) A presença, mesmo que ocasional, de uma prestigiosa família, e essa, na Vila Alva de Quinhentos, cremos que só poderia ser a dos marqueses de Ferreira.

Para além destas, outras peças marmóreas, igualmente encontradas em Vila Alva, reforçam a suspeição da existência de um edifício daquela época. Dispersas por casões, ruas, travessas e quintais, destaco mais de uma dezena de módulos oitavados, pertencentes a fustes de colunas; duas mísulas ladeando o portão de uma quinta situado na travessa das Hortas e, no largo da desaparecida Fonte de São João, no mesmo local onde se encontrou a primeira mísula referida, um portão com os umbrais de feição quinhentista, constituídos por 14 módulos prismáticos e chanfrados (sete de cada lado) que para aqui terão sido trasladados. Não tenho dúvidas de que assim foi, quer por estar incompleto, pelo notório desamanho das peças, pela cruz numa delas insculpida se encontrar em posição invertida e porque só de um lado é que o umbral chanfrado apresenta junto da soleira a vulgar terminação em ponta de fita.

Deste modo, a ter existido em Vila Alva uma “casona gótica”, expressão que Fialho de Almeida utilizou para se referir ao desaparecido castelo de Vila Ruiva, onde se localizaria e o que poderá ter dela restado além daqueles elementos arquitetónicos?

 

Uma história possível …a aguardar por provas em que se firme segura. Ainda assim… aqui se alinhava a teia de uma fundamentação, feita de algumas evidências, tanto documentais quanto materiais… De acordo com Abel Viana (op. cit.), a relativa assiduidade dos marqueses de Ferreira em Água de Peixes e arredores deverá ter cessado pelos finais do século XVI, inícios de Seiscentos. A partir do 4.º marquês de Ferreira e 1.º duque de Cadaval, D. Nuno Álvares Pereira de Melo (1628-1725), a relevância desta família na corte ou em missões no estrangeiro terá ditado o seu afastamento da região e, consequentemente, o seu declínio, traduzido, nomeadamente, no acentuar da ruína e colapso do castelo de Vila Ruiva, bem como no abandono do palácio de Água de Peixes e da casa de Vila Alva. Tenho para mim que esta, pela sua habitabilidade, local de implantação, sobranceiro ao humilde povoado, e, talvez mais que tudo, pelo seu simbolismo, possa ter interessado e sido adquirida para sua residência pelo dr. António Afonso de Mira Cabo (1735-1789), representante da mais abastada e influente família de Vila Alva (ver “Diário do Alentejo”, 17 de janeiro de 2020, pp.16-17). Os laços que os duques de Cadaval vinham mantendo com esta família, e a confiança que nos seus representantes depositariam, poderão ter facilitado a aquisição. Recorde-se, por exemplo, que o posto de alcaide-mor de Vila Ruiva, indicado pelos duques, chegou a ser desempenhado por aqueles fidalgos.Há razões para crer que importantes intervenções no antigo edifício possam ter ocorrido no final do século XVIII, apagando nele os traços de um estilo já arcaico e adaptando-o aos gostos da época. O momento dessas obras, julgo, poderá ter coincidido com duas distinções com que Manuel António de Mira Cabo Coelho Perdigão (1777-18??), filho do dr. António Afonso, foi reconhecido pela rainha D. Maria I: a atribuição de carta de brasão de armas, em 1794, e a mercê de escudeiro fidalgo de Sua Casa, dois anos depois.

Eis ainda outro dado que poderá compaginar-se com a existência, na praça Velha de Vila Alva, de um edifício quinhentista adaptado pela família Coelho Perdigão a sua residência… Numa escritura de 1831 faz-se referência a uma adega pertencente ao 6.º duque de Cadaval (8.º marquês de Ferreira), D. Nuno Caetano Alvares Pereira de Mello (1799-1837). Pela descrição, localizar-se-ia muito perto da eventual casa dos seus antepassados, no mesmo lado da praça em que se erguia a Casa da Câmara. Em defesa da sua antiguidade, recorde-se que esta antiga adega guardou, até há bem poucos anos, um portal de feição quinhentista, com umbrais chanfrados. Túlio Espanca, a cujo olhar não escapou, refere-o no seu “Inventário artístico”.

A suspeita de que o palacete dos Coelho Perdigão possa “ter sucedido” à velha casa dos marqueses de Ferreira, sustento-a também nas seguintes evidências materiais: a) O citado anel de coluna com encordoado foi encontrado (em 1985) ao abrirem-se as fundações para a construção de um prédio, ali mesmo, em terreno contíguo ao do antigo palacete dos Coelho Perdigão. b) Vários dos elementos arquitetónicos já mencionados foram encontrados ao fundo das travessas da Cadeia e da Ladeira. Estas travessas, irradiando da praça Velha, sublinham duas linhas de maior declive que terão facilitado a remoção dessas peças até aos locais onde vieram a ser reutilizadas. c) Da velha casa dos marqueses de Ferreira terão escapado, tanto às remodelações do século XVIII, como à quase total demolição da década de 1950, algumas divisões abobadadas do piso inferior. Destaco, pela sua dimensão (11,5 metros de comprimento, 4,30 metros de largura e quatro metros de altura) e pela monumentalidade da sua abóbada de berço, a que julgo possa ter servido de cavalariça no primitivo edifício quinhentista. Aí, aquando das intervenções do século XVIII, uma das duas janelas da possante parede norte foi cega pela sóbria escadaria que os Coelho Perdigão terão decidido adossar à fachada setentrional da casa.

 

Património e… futuro E enquanto esta tese não se escora em provas irrefutáveis, há iniciativas que se podiam tomar… e volto a uma conversa puída, por isso também doída, mas que pela pertinência justifica as repetidas, e já maçadoras, sequelas! Para quando um espaço que possa acolher o espólio arqueológico ora amontoado e sem préstimo na capela da Misericórdia de Vila Alva e salas anexas, nomeadamente, as peças de arte manuelina de que aqui se fala? Esse espaço, insisto, poderia ser a igreja de Santo António, hoje votada ao abandono e com sinais crescentes de degradação. Perguntar-se-á, que benefícios adviriam da criação de um núcleo museológico dedicado a “bajoulos e caqueiros”? A saída da arqueologia do complexo formado pelas capelas da Misericórdia e do Senhor Jesus dos Passos libertaria espaço para uma exposição digna da ainda muito interessante coleção de arte sacra (ourivesaria, escultura, pintura, peças têxteis, etc.) pertencente à Santa Casa da Misericórdia e à paróquia de Vila Alva. Em simultâneo, esse desimpedimento permitiria que a vida litúrgica, que subsiste naqueles templos durante a quaresma, e, em particular, na semana santa, pudesse acontecer sem os recorrentes constrangimentos. Recorde-se a importância económica do turismo religioso e a força que em Vila Alva têm as tradicionais procissões do Senhor Jesus dos Passos e das Endoenças… Por outro lado, a transferência da arqueologia para a igreja de Santo António possibilitaria resgatá-la ao desprezo, dando a conhecer a acolhedora simplicidade dos seus interiores, bem como a interessante pintura a fresco que a decora. Por último, expor a coleção de arqueologia da Misericórdia de Vila Alva em condições dignas permitiria valorizar um património formado por mais de uma centena de peças, de que destaco a coleção de época manuelina, constituída, entre outros, por alguns dos elementos arquitetónicos aqui referidos, pelos muitos resgatados em Vila Ruiva, derradeiros testemunhos de um castelo desaparecido, e de que faz parte igualmente a admirável base do pelourinho de Albergaria dos Fusos.

Que importância poderiam assumir para a criação de postos de trabalho e de riqueza, para a fixação e atração de gente, estes dois núcleos museológicos e a sua articulação com circuitos que dessem a conhecer, quer outros recursos que Vila Alva tem para oferecer, quer os traços de genuinidade que esta vila ainda preserva, quer a riqueza paisagística do seu termo, feita de contrafortes de serra, ribeira e “vinhas”?! Por óbvia, escusada é a resposta!… Contudo, o que por cá se vai fazendo nestes domínios continua a acontecer muito pobre, desarticulado, feito de costas voltadas. E se há património e recursos que já se deram as mãos, contando, e bem, com boas vontades e influentes sponsors, muitas outras riquezas prosseguem sem ter o seu valor reconhecido e a ver ignorado o seu potencial como alavancas para o desenvolvimento… E é pena que assim seja, também pelos marqueses de Ferreira, que por aqui passaram, pelos fidalgos Coelho Perdigão, que aqui residiram… e por tanta e tanta gente humilde e anónima que, ao longo de séculos, levantou a Vila Alva em que ainda vivemos…

Agradecimentos:A Daniela Alvarinho pelo tratamento gráfico dos desenhos.A Sofia Muller e Miguel Castelão pela disponibilização da fotografia da divisão abobadada.

Comentários