Entre os trabalhadores reformados que regressaram à terra natal e residem em permanência em Vales Mortos está Manuel Elisiário, de rijas 74 primaveras. Abalou para a Grande Lisboa no começo da década de Sessenta do século passado, com 16 ou 17 anos, tinha já família na Cruz de Pau, no Seixal, “ali chegámos a viver cinco num quarto”. Começou a trabalhar na capital, nas obras, como servente, “éramos quase 20 a atravessar o Tejo no cacilheiro e ir para a zona das Amoreiras”. Em 1966 vai para a tropa, faz a recruta em Beja e, após algum tempo na Póvoa do Varzim, na “especialidade” de cozinheiro, é mobilizado para Moçambique, onde fica 26 meses. A guerra passa-lhe ao lado, já que permanece em Lourenço Marques, na Polícia Militar, sempre como cozinheiro.
Regressado a Portugal, vai trabalhar, em 1969, para a Siderurgia Nacional, em Paio Pires, primeiro como paquete, depois como operário, serralheiro mecânico, ali permanecendo 30 anos. Casa-se, entretanto, como uma moça de Vales Mortos, vai viver para a Amora. O casal tem um filho e uma filha, que vivem na Margem Sul.Reforma-se em 2000, mantém uma casa no Seixal, há poucos anos regressou definitivamente à sua terra alentejana.
A serra na literatura
A serra de Serpa entrou na literatura portuguesa pela pena de Francisco Melo Breyner (1837-1903), Conde de Ficalho, companheiro de Eça de Queirós, Ramalho Ortigão e outros literatos do grupo dos “Vencidos da Vida”. Entre os muitos e diversificados escritos da sua autoria, o Conde de Ficalho publicou em 1888 um conto, “A caçada do malhadeiro”, com uma estória que se desenrola no início do século XIX, durante as invasões napoleónicas.
Oito soldados franceses, fugindo em direção a Espanha, perdem-se na serra e chegam a uma malhada, onde exigem comida e vinho aos pobres moradores. Depois, bêbados, agridem e amarram o malhadeiro e o filho, violam as duas filhas e fogem. Libertados, o velho malhadeiro e o rapaz, ambos bons atiradores, pegam nas suas espingardas, perseguem os franceses por ásperos vales, cerros e barrancos, “como se a gente andasse à busca de um javardo ou de um veado”, e abatem-nos um a um.
Já nos nossos dias, João Mário Caldeira, excelente prosador alentejano, profundo conhecedor da Margem Esquerda do Guadiana, editou em 2004 o romance Quase só a voz do vento. Conta a história de uma família que migrou de uma ponta do concelho de Mértola para as “agruras” da serra de Serpa após a partilha desta em cinco mil lotes, no começo do século XX, que foram distribuídos por igual número de casais serpenses, “muitos dos quais foram obrigados a vendê-los por não poderem agricultá-los”.
No romance, “transparece a alienação tardia de um baldio público, a migração para o local de pequenos agricultores sedentos de terra, as relações de vizinhança, de afectividade e de amor entre os residentes, a crendice de muitos, a malevolência de alguns, as perturbações de outros, a instabilidade ocorrida nos primeiros tempos da República, a dualidade entre os da serra e os da planície…”.