Diário do Alentejo

O orgulho de ser pacense

12 de janeiro 2025 - 08:00

José d’Encarnação Arqueólogo

 

Desta feita, o monumento epigráfico romano de que nos vamos ocupar detém especial encanto, mormente para todos – e serão muitos! – os que têm orgulho em apresentar, na cédula pessoal, a cidade de Beja como sua terra natal.

É que – ao contrário do que acontece e já vamos explicar porquê – os parentes de Quinto Cássio Vetoniano, falecido aos 26 anos de idade, quiseram que, no seu epitáfio, figurasse a menção da sua naturalidade: pacense.

 

A indicação da naturalidade

 

É raro, ainda hoje, ver-se indicada, na lousa fria da sepultura do cemitério, a terra donde o defunto era natural. Tinha morrido ali, ali estava sepultado, donde viera ou onde vivera já nada interessava saber. E mesmo em S. Brás de Alportel, onde se criou o hábito de pôr um topónimo, esse é o nome da terra onde o defunto viveu e não obrigatoriamente o seu lugar natal.

Compreende-se, porém, que, para o historiador, a menção da naturalidade detém mui particular interesse. Para quê? Para os estudos demográficos, ou seja, a análise dos movimentos populacionais em determinada época. Donde veio? E quando? E porquê? Estará o leitor porventura recordado que, na edição de 30 de abril de 2021, ao depararmos com a existência, em Pax Iulia, de uma associação de bracarenses, logo nos perguntámos: que vieram eles cá fazer?

Tem, na verdade, muito que se lhe diga. Imaginemos numa escola: só se dá a alcunha de “alentejano” ao aluno que for do Alentejo; essa escola, porém, só pode ser numa terra fora do Alentejo. Por outro lado, é possível, no entanto, erigir-se estátua a um bejense ilustre na própria cidade de Beja, porque os promotores da homenagem têm orgulho em o contar entre os seus filhos.

Nesse caso, estando nós aqui, em Pax Iulia, diante do epitáfio de um romano de 26 anos – é um epitáfio de tipo familiar, um altar funerário para assinalar a sepultura e não o pedestal duma estátua a colocar em lugar público –, o que é que terá acontecido?

 

Um pacense que veio de fora? Não, de fora não poderia ter vindo, porque, nesse caso, não seria pacense com direito garantido ao adjetivo.

Importa, pois, voltar a debruçar-nos sobre o modo como o defunto foi identificado. Desconhecemos quem lhe mandou fazer o monumento. Alicia-nos a hipótese de terem sido seus pais, ainda que, no texto, essa informação tenha sido propositadamente omitida.

Quinto é o seu primeiro nome e são tantos os que tal nome tiveram que, hoje em dia, já nem se põe a hipótese de querer dizer que foi o quinto filho a nascer. Contudo, não deixa de ser curioso o nome de família: Cassius. Claro – como, na atualidade, seria estultícia considerar todos os Raposos pertencentes à mesma família – estes Cassii de Beja nada terão a ver, seguramente, com o Lucius Cassius Celer que, no termo romano de Tavira, pagou a construção de uma porção (100 pés) do pódio do circo. E também dificilmente se relacionará com a quase dezena de Cassii de que há notícia na Lisboa romana, um dos quais, Marcus Cassius Sempronianus de seu nome, se notabilizou em Sevilha como grande negociante de azeite (diffusor olearius).

Sucede, porém, que, até ao momento, de mais nenhum romano Cassius se encontrou rasto em Pax Iulia. Por isso, os investigadores atentaram no cognome deste, ou seja, o seu terceiro nome: Vettonianus. E por aí se foi, porque esse nome poderá, na verdade, resolver o mistério, uma vez que, nessa altura, havia os Lusitanos e havia os Vetões, estes um povo que fazia fronteira com a Lusitânia, mas se localizava para as bandas das espanholas Zamora, Toledo, Ávila, Salamanca…

Por conseguinte, torna-se plausível dar a seguinte explicação: os pais de Quinto eram vetões e emigraram para a região de Beja. Aí lhes nasceu o filhote em cujo nome quiseram plasmar a sua origem, de que tinham orgulho, e a naturalidade do filho, de que também tinham gosto em se orgulhar. Portanto: Quintus Cassius Vettonianus Pacensis!

Para essa conclusão já apontara, em 1958, Irene Arias, num artigo que hoje poderemos considerar inovador para a época, porque, servindo-se da mais variada documentação, se refere a contactos entre cidades, mestiçagens de povos e de gentes, pactos de hospitalidade e patronato… Esses e outros elementos passíveis de serem “Factores de união entre os antigos hispanos” (in Cuadernos de Historia de España 27, 1958). Esta inscrição vem citada na página 76.

Três notas finais O monumento em causa é uma ara (altar) de mármore cinzento de Trigaches; mede 80,5 centímetros de altura, 53/47 de largura e 33/35 de espessura máxima no capitel e na base. O capitel tem fóculo (a cavidade para se queimarem incensos) em relevo e toros laterais. As letras rondam os 4,5/5 centímetros de altura.

Foi encontrado incorporado na muralha da cidade quando se procedeu à sua demolição para, no espaço deixado livre, se erguer o edifício do governo civil e repartições adjacentes. Informação veiculada por Abel Viana, na página 433 do II volume (1945) d’O Arquivo de Beja, sem que especifique a data do achamento. A Direção das Obras Públicas diligenciou no sentido de o monumento vir a ser depositado no Museu Rainha D. Leonor, onde lhe foi atribuído o n.º B 113, pintado na superfície frontal da base.

Finalmente, acrescentar-se-á que continua a ser relativamente rara a ocorrência do nome Vettonianus, porque, garantidamente, apenas se identificou em mais três localidades: em Nîmes (sul da França), em Forlimpopoli (perto de Bolonha, na Itália) e em Ain Zana (antiga Diana Veteranorum, na Numídia, norte de África).

Um documento, por conseguinte, que, na sua aparente simplicidade, muito tem para nos contar!

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