Texto Eduardo M. Raposo
“Desde que me conheço, há duas figuras que tenho como referências fundamentais éticas, estéticas e filosóficas: José Afonso e Cláudio Torres”. Foi desta forma que Eduardo M. Raposo justificou a edição da biografia do arqueólogo Cláudio Torres, agora apresentada no Centro Arqueológico Islâmico de Mértola. Intitulado Uma Vida com História: Cláudio Torres, o livro começou a ser pensado há 12 anos, em Badajoz, está estruturado em três parte e tem como base as conversas/entrevistas ao biografado, mas também à sua mãe, já falecida, Fernanda Figueiredo, à esposa, Manuela Barros, à filha mais velha, Nádia, e ao irmão Álvaro. Juntam-se-lhes 25 depoimentos escritos por diversas personalidades, alguns dos quais de “extraordinária riqueza, por vezes pingentes, entre eles o da irmã Paula e do sobrinho Miguel”, refere Eduardo M. Raposo, que aquando do lançamento da obra, apresentada por João Guerreiro, reitor da Universidade do Algarve, agradeceu a Cláudio Torres “a relação fraterna ao longo dos anos de realização do trabalho”.
No livro surgem 87 páginas de documentos fruto de aturada pesquisa realizada nos arquivos da PIDE/DGS na Torre do Tombo, abrangendo os períodos de 1961 a 1973. Apresenta ainda uma sólida cronologia biográfica, uma biografia de Cláudio Torres e sobre Cáudio Torres e fotos desde 1940 até ao século XXI. O “Diário do Alentejo” publica alguns excertos da introdução do livro, selecionados por Eduardo M. Raposo.
Cláudio, o menino que mudou a cor do cabelo nos primeiros meses, nasceu em Tondela (1939), o Gaúlo, como é conhecido na família, fugiu de casa aos cinco ou seis anos –quando vivia com a família em Algés –, apaixonado desde sempre, e até hoje, pela BD, colecionava “O Mosquito”, que levou na bagagem quando a família voltou para Tondela, aos oito anos. Recebe a influência do avô monárquico, que adorava, e chega a usar a respetiva bandeira na lapela, ao mesmo tempo que ia para o colégio de chancas. Leitor compulsivo dos realistas norte-americanos neorrealistas portugueses – estes últimos com quem a família privava –, aos 12 e 13 anos desafiou um professor de história sobre “o princípio da não contradição” e caricaturou, no quadro, o de inglês aos 17.
Quando tinha 19, trabalhador-estudante, recebe o pseudónimo de “Tiago”, enquanto militante comunista em Aveiro, preparando, com o seu camarada José Bento, uma receção “a preceito” ao recém-empossado Presidente da República Américo Tomás, denominado de “corta-fitas”. Estudante de Belas-Artes no Porto, aos 21 anos é preso pela PIDE, com os seus camaradas David e Marcela (a sua irmã) e alguns compagnons de route, entre eles a sua companheira de sempre, Manuela Barros. Acusado de “crimes contra a segurança do Estado” é sujeito a tortura do sono três vezes; na terceira vez, ao fim de sete dias sem dormir, fez o pino, o que desconcertou os seus carcereiros, muitos deles antigos seminaristas, “pobres diabos”, que o Cláudio espicaçava e “amedrontava” com o seu enorme sentido de humor e que, depois de liberto, cumprimentava em altos berros quando os encontrava nos transportes públicos, “denunciando-os” aos olhos de todos.
O Cláudio que sobreviveu com a Manuela, então grávida da Nádia, e os outros cinco companheiros, às várias peripécias no Atlântico e depois no Estreito de Gibraltar. O Cláudio que viajou no tejadilho de um comboio de Tânger para Rabat, onde, sem dinheiro, apanhava as beatas que os estrangeiros deitavam e se especializou em fazer arroz de polvo – de que não ficou enjoado – e arranjou dinheiro para subsistirem uns tempos com uma exposição com estruturas de ferro soldado e tecidos coladas, em colaboração com a Manuela, arranjou trabalho no Ministério do Urbanismo Marroquino, onde o único arquiteto era o ministro, dirigiu a secção de maquetes, foi expulso de um ateliê de um arquiteto russo – onde tinha um part-time – porque batizou a sua primeira filha de Nádia (“gota de orvalho” em árabe), pintou a nitrato de prata na parede da embaixada de Portugal “À bas Salazar assassin”, ajudou Humberto Delgado a conseguir um passaporte para entrar em Portugal aquando do assalto ao Quartel de Beja e conseguiu um encontro oficial entre este e Amílcar Cabral – com quem colaborou.
O Cláudio que discursou às tropas que iam libertar a Argélia, como representante da oposição portuguesa, foi o “José Ramos”, locutor e jornalista da secção em língua portuguesa da Rádio Bucareste durante uma década, viveu a primavera de Praga e a invasão soviética e saboreou a beleza do mundo rural romeno, aprendeu com os mestres gregos da Arte Bizantina na Faculdade de Belas-Artes de Bucareste, foi ajudante de enfermeiro em hospitais psiquiátricos parisienses, fazia desenhos para japoneses em hotéis e montava mosaicos à romana para piscinas em Paris, enquanto preparava o doutoramento na Sorbonne que o 25 de Abril interrompeu. Então, viajou no primeiro avião – no qual vinham Álvaro Cunhal e outros dirigentes comunistas, Luís Cília, José Mário Branco – de onde se escapuliu, mas o taxista que o transportou elegeu-o a herói, levando-o a celebrar a liberdade por diversas tascas lisboetas, tendo-lhe valido uma grande piela.
Entrou para a Faculdade de Letras, em votação de braço no ar, em outubro de 74, onde, com António Borges Coelho, marcou profundamente os estudantes da Faculdade de Letras, ao mesmo tempo que organizavam centros de apoio aos estudantes do interior, em Beja, Faro, e visitas político-culturais a UCP. Chegou a Mértola em 1978, a convite do seu aluno, o edil Serrão Martins, e lançou mãos à obra, mudando-se definitivamente para a vila raiana, após o afastamento da faculdade em 1985.