
Pedro Vasconcelos “Fazíamos o melhor que sabíamos, o melhor possível, dormindo bem com a nossa consciência à noite”
“O ano profissionalmente mais cansativo, mas que mais gozo me deu”
Pedro Vasconcelos foi dos últimos médicos a prestar serviço na periferia no concelho de Serpa, em 1982, ano em que o SMP terminou com a criação da carreira médica de Clínica Geral, tinha então 25 anos. O médico chegou à capital de distrito em 1980 para fazer os dois anos do “então denominado internato de policlínica, de medicina tutelada”. Beja não foi, contudo, a primeira opção. Natural do Porto, em cuja faculdade de Medicina se licenciou, Pedro Vasconcelos e o seu grupo de amigos tinham como destino pretendido o Hospital de Bragança, porque sabiam que “era um bom hospital” e, “normalmente, onde se trabalhava mais era nos hospitais distritais, não nos centrais”. Mas, “azar dos Távoras, nesse ano houve mais pedidos do que vagas”, lembra. “Pelas contas que fizemos, ia haver sorteios e provavelmente para o número que nós éramos – nove, se não estou em erro – algum de nós tinha de saltar do grupo e não queríamos isso. Sucede que, nesse ano, o curso do Norte era muito mais volumoso em termos de recém-licenciados do que os cursos do Centro e do Sul. E as zonas Centro e Sul abriram-nos vagas”. A escolha recaiu, então, no hospital de Beja, que sabiam “ter características idênticas ao de Bragança, um bom hospital onde se trabalhava bem, com médicos de referência”. “E, então, viemos todos. Como costumo dizer, a minha vinda para Beja é uma história de amizade”. Do Alentejo não conheciam “rigorosamente nada”. “Foi mesmo uma aventura. Na altura, aventura maior ainda, porque os acessos não eram os que são hoje. E a distância, na prática, era maior do que hoje em dia, não é? Portanto, foi assim um bocado às escuras, tirando as informações que tínhamos do hospital”, nota. No final dos dois anos de internato, alguns médicos do grupo de amigos regressaram ao Norte, outros optaram por ficar, como foi o seu caso. “Era um hospital em que uma pessoa se sentia realmente muito bem. Os colegas eram muito disponíveis, inclusivamente os mais velhos, que a gente olhava sempre, como é evidente, de baixo para cima. Eram disponíveis, respeitosos, com muito conhecimento. Tínhamos grandes mestres. Os doutores Escoval Lopes, Brito Lança, Horário Flores, Apolino Salveano. Não eram só médicos, eram colegas”. Não foi, por isso, “ingenuamente” que, ao fim desses dois anos, em vez de regressar ao Norte, “como era o plano inicial”, tenha ficado em Beja. Também por outras raízes que, entretanto, criou, como a música – fundou, em 1981, o Coro de Câmara de Beja, que ainda dirige – e o ter conhecido a mulher. “De facto poderia ter zarpado de novo ao Norte, mas não quis. Sentia-me bem. A saúde tinha uma dimensão muito boa em termos de oferta, em termos de qualidade. E desse ponto de vista uma pessoa sentia-se bem aqui. Aliás, uma frase que muitas vezes dizíamos era: ‘se eu adoecer em Lisboa, levam-me para Beja”, reforça.Seguiu-se, então, um ano de SMP no concelho de Serpa. Pedro Vasconcelos já não se recorda com precisão das razões que o levaram a optar por aquela cidade da margem esquerda do Guadiana, mas deverá terá sido, “essencialmente, pela proximidade”, uma vez que continuava a residir na capital de distrito. Tal como Conceição Soares, todas as manhãs assegurava consulta na extensão de saúde de Aldeia Nova de São Bento. À tarde trabalhava na enfermaria do Hospital de São Paulo, onde também fazia pequenas cirurgias. As segundas-feiras eram dedicadas a fazer urgência de 24 horas na mesma unidade hospitalar. Às terças, de quinze em quinze dias, ia dar consultas às povoações de Corte do Pinto e Mina de São Domingos, já no concelho vizinho de Mértola. “O meu horário era assim, a razão porque muitas vezes digo que este foi o ano profissionalmente mais cansativo da minha vida, mas que mais gozo me deu. Muito cansativo mesmo. Mas foi muito interessante, em termos da autonomia, em termos do contacto que se teve com uma realidade, apesar de tudo, diferente da que era a de Beja, e da diversidade de situações a que nós éramos sujeitos”. E prossegue: “O conhecimento destas realidades, a sensação que nós tínhamos de poder ser úteis para pessoas que, não fora assim, não teriam essa possibilidade de ter acesso a bens de saúde, a autonomia que isso nos criava, a responsabilização, era muito importante. O estarmos perante situações, por vezes complicadas e inesperadas, em que tínhamos de ir pesquisar, de falar com outros colegas, era uma mais-valia também, porque nos obrigava a puxar por nós, pelos nossos conhecimentos, pela nossa intuição, pelo nosso olho clínico”.Em termos de condições de acesso, nota, se para Serpa e Aldeia Nova de São Bento “não era muito mau”, já para Corte do Pinto e Mina de São Domingo “era um serpentear por uma estrada estreita que realmente não era cómoda”. As “instalações” médicas nas aldeias também eram insatisfatórias. Em Corte de Pinto, por exemplo, “era um gabinete muito pequenino, tudo muito acanhado”. “O Serviço Médico na Periferia foi uma extraordinária mais-valia para as populações, porque tinham um contacto com profissionais de saúde, contactos de proximidade nas suas comunidades. Claro que havia, justamente, nestas extensões, mesmo em Aldeia Nova, mas, sobretudo, nas outras de Mértola, condições que não eram as melhores do ponto de vista físico e de materiais, mas que acabavam por ser sobrelevadas, digamos, pelo benefício que as pessoas sentiam com o nosso trabalho. Nós fazíamos o melhor que sabíamos, o melhor possível, dormindo bem com a nossa consciência à noite, mas sabendo que podia ser melhor em termos de resposta, fossem essas condições também diferentes”, reconhece. Já em relação aos utentes, notava-se, claramente, que “havia alguns com dificuldades”, e “quanto mais isolados mais pobres se percebia que eram”. “Há realidades que uma pessoa consegue absorvê-las sem ter de entrar em perguntas… Mas isso não foi só por essa altura. Às vezes apercebíamo-nos que o dinheiro não chegaria para a medicação necessária, como muitas vezes as pessoas também abertamente diziam. O que nos punha problemas de temos de cumprir a nossa missão sabendo que, às vezes, isso esbarrava com uma dificuldade em pôr na prática os nossos conselhos terapêuticos”.À semelhança de Conceição Soares e Helena Arvelos, Pedro Vasconcelos acabaria por optar pela carreira médica de Clínica Geral, tendo trabalhado, até 2024, ano da sua aposentação, como médico de família na extensão de saúde da freguesia de Salvada e no Centro de Saúde de Beja. “Eu tinha dúvidas entre clínica geral, pela riqueza de patologias que isso nos dava, e cirurgia, porque sempre gostei muito de trabalhos cirúrgicos, de mãos, e parece que tenho algum jeito. A cirurgia obrigaria a estágios fora de Beja e aí a família falou mais alto”.