Diário do Alentejo

Serviço médico

01 de novembro 2025 - 08:00
Recém-formados das faculdades de Lisboa, Porto e Coimbra cumpriram, obrigatoriamente, entre 1975 e 1982, um ano de trabalho nas zonas mais periféricas do País

Entre 1975 e 1982 grupos de jovens médicos formados nas faculdades de Lisboa, Porto e Coimbra cumpriram o Serviço Médico na Periferia (SMP), de cariz obrigatório, com a duração de um ano, que visava dotar as zonas mais periféricas do País de cuidados de saúde de proximidade e que, em alguns casos, acabou por ajudar a fixar profissionais no interior. A pretexto dos 50 anos da entrada em funcionamento do SMP, “um passo decisivo para a construção” do Serviço Nacional de Saúde (SNS), e considerando que um número significativo de utentes continua sem médico de família atribuído, o “Diário do Alentejo” dá a conhecer a história de três profissionais que escolheram fazer o referido serviço nos concelhos de Moura e Serpa e que acabaram por ficar na região.

 

Texto  Nélia Pedrosa Fotos Ricardo Zambujo

 

As pessoas eram muito carentes de cuidados médicos”, mas não havia grandes sinais exteriores “de pobreza”. À distância de 44 anos é esta a memória que a médica Conceição Soares guarda dos habitantes da então Aldeia Nova de São Bento – atual vila –, no concelho de Serpa, onde chegou em janeiro de 1981 para cumprir o seu ano de Serviço Médico na Periferia (SMP). Uma resposta criada por despacho da Secretaria de Estado da Saúde em 23 de junho de 1975, considerando que havia “necessidade premente de dotar a periferia do País com médicos a fim de melhorar a prestação de cuidados de base, quer do tipo curativo, quer de saúde pública”. Referia o mesmo documento que “os médicos que, tendo terminado o internato de policlínica, desejem prosseguir na carreira prestarão um ano de serviço na periferia, a nível concelhio ou local, como médicos policlínicos, em centros de saúde, hospitais concelhios e postos clínicos”. Um ano depois, o Governo fazia um balanço “extremamente positivo da experiência”, na “medida em que contribuiu para a resolução de algumas deficiências de cobertura sanitária que não têm podido ser supridas através dos médicos residentes, atentas as carências que neste domínio se evidenciam”.Então com 28 anos, Conceição Soares fazia parte de um grupo de seis médicos que tinha acabado de concluir o seu internato geral no Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja. Natural de Portalegre, chegou à capital do Baixo Alentejo em 1979, vinda de Lisboa, onde terminou a licenciatura em Medicina iniciada na Faculdade de Coimbra. “Um dos meus irmãos era advogado em Beja. O hospital tinha umas excelentes referências. O meu marido dava aulas e ficarmos os dois colocados em Lisboa era muito complicado. Decidimos vir para o Alentejo. Já tínhamos dois filhos. Portanto, aqui, era mais tranquilo”, justifica. Terminado o internato geral, Serpa apresentou-se-lhe como a melhor opção para o SMP, “porque tinha um hospital [de São Paulo] e dois colegas associados à cirurgia e à medicina interna, os doutores Palma Santos e Edgar Valadas”. Para além disso, “era mais perto” de Beja, onde continuou a residir e os filhos, ainda pequenos, frequentavam o colégio. “Cuba ou outros concelhos tinham hospitais, mas eram da misericórdia, não eram hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) como o de Serpa. E a estrada era boa, agora está cheia de buracos”. Nos 12 meses que durou o SMP, as manhãs de Conceição Soares e dos cinco colegas eram dedicadas às consultas nas aldeias, em grupos de dois médicos; as tardes ao hospital de São Paulo – que “estava bem equipado, com raio-x, ecografia, análises, eletrocardiograma” –, onde “tratavam do internamento” instalado no piso superior do antigo convento e asseguravam o serviço de urgência. À hora de almoço partilhavam “as realidades” com que cada um se deparava nas aldeias onde prestavam serviço e trocavam “opiniões, sugestões em termos de terapêutica, sobre exames auxiliares de diagnóstico”.

 

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Conceição Soares  “É obsceno uma pessoa precisar de ter um 18 ou 19 para entrar em Medicina”

 

Em Aldeia Nova de São Bento havia, então, um único médico residente, “tipo um João Semana [personagem retratada no romance As Pupilas do Senhor Reitor, de Júlio Dinis], o doutor Figueiredo, que toda a gente conhecia”, por isso, admite Conceição Soares, seriam raros os que nunca tivessem contactado com um médico. “Não vejo que fossem pessoas mais ignorantes. Não. Sabiam talvez mais os seus limites do que agora. Não abusavam tanto. Mas nós dávamos abertura e queríamos que contassem tudo”. Nos “chamados postos médicos” localizados nas aldeias, os recém-formados contavam também com a ajuda dos administrativos e dos enfermeiros locais, que, “conhecendo as pessoas, davam umas dicas”. Em Serpa havia mais “dois ou três” médicos a quem podiam recorrer, assim como no Hospital de São Paulo. “Tivemos uma boa integração com a ajuda desses colegas”, considera. As “portas” do Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja, “também estavam sempre abertas” para os casos encaminhados pelos jovens médicos. “Enviávamos doentes diretamente do hospital de Serpa ou das aldeias e eles sabiam que se a gente os mandava era porque tinham mesmo de ser vistos no hospital. Todo o pessoal, de Ginecologia, de Obstetrícia, de Pediatria, sabia. Não mandávamos porque sim. Mandávamos para descartar. Para ter ajuda. Para ter um feedback”.A “boa recetividade” não era, contudo, exclusiva dos colegas residentes mais velhos. Também as populações viam com bons olhos a chegada dos vários grupos de recém-formados. “Gostavam muito de nós, dos ‘pobres clínicos’ (policlínicos) como nos chamavam”. Policlínicos esses que não raras vezes eram presenteados com “dois ovos, meio pacotinho de açúcar, uma garrafa de água das pedras meia de azeite”. A verdade, crê Conceição Soares, é que o grupo que integrava era, efetivamente, “um bom grupo”, que se organizava “muito bem na divisão das tarefas”. Não havendo então, em Aldeia Nova de São Bento – e muito provavelmente em nenhuma das outras localidades – “qualquer noção de saúde familiar”, foi por iniciativa da médica, em conjunto com um colega, que começaram a ser criados processos agrupando as fichas “dos casais e dos filhos”, para “mais facilmente irmos conhecendo as pessoas”. Sempre que necessário faziam domicílios. E chegavam a ir buscar doentes a casa “para irem ao posto médico fazer fisioterapia”. “Era muito tranquilo. Não me lembro de nada de desagradável”, garante Conceição Soares.No entender da médica, que viria a optar pela carreira de Clínica Geral – que mais tarde evoluiu para a especialidade de Medicina Geral e Familiar –, o SMP foi “uma experiência espetacular para os médicos, para a sua formação”, obrigando-os “a sair do conforto”, contrapondo, assim, com o serviço nos hospitais mais centrais, em que “uma pessoa está sempre rodeada de colegas hierarquicamente superiores que dizem o que deve ou não fazer, o que não deixa autonomia, não deixa que se aprenda por tentativa e erro”. “A mim fez-me crescer bastante. Em termos de autonomia, de conhecimento. Com o apoio que tive [de outros colegas], mas não com ar superior. Era de igual para igual. De médico para médico. Não era de doutor… porque há diferença”, esclarece. Para as populações foi, claramente, uma mais-valia. “Tinham necessidade e de repente aparece um grupo de jovens médicos...”.

1975 é o ano do arranque do Serviço Médico na Periferia, que visava dotar algumas zonas do País com médicos “a fim de melhorar a prestação de cuidados de base, quer do tipo curativo, quer de saúde pública”.

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Helena Arvelos  “Fomos sempre muito bem recebidos pelos colegas, pela população, porque, na verdade, havia carência”

 

Encontrar uma mulher “que fizesse um anticoncetivo oral era quase uma raridade”

 

Opinião idêntica tem Helena Arvelos, para quem a vinda de recém-formados para a periferia acabou por ser “um balão de oxigénio” para os médicos residentes, sem mãos a medir para as solicitações. “Fomos sempre muito bem recebidos pelos colegas, pela população, porque, na verdade, havia carência, embora os nossos colegas residentes fossem verdadeiros lutadores e um exemplo para nós”, afirma. A médica chegou à cidade de Moura em 1980, para cumprir os 12 meses de SMP, tinha, então, 27 anos. Antes passou pelos hospitais de Lisboa, para o internato geral, e ainda por Montemor-o-Novo, para a componente “de saúde pública”. Nascida em Angola, mas com raízes em Tábua, no distrito de Coimbra, cidade onde cursou Medicina, “conhecia mal” o Alentejo, porém, a experiência em Montemor foi tão positiva que, findo o internato, quando um colega de curso lhe propôs fazerem também o SMP na região Helena Arvelos não hesitou. “Eu já era casada, mas ainda não tinha filhos, e pensei: ‘como temos de estar um ano longe, vamos conhecer outra terra do Alentejo’. O meu colega, que também tinha estado comigo em Montemor, deu uma volta pela região e quando regressou disse-me que se conseguíssemos ficar em Moura iria ser muito bom, porque tinha um hotel muito agradável – que ainda hoje existe e onde fiquei a viver durante cinco anos –, que recebia os médicos e que fazia um preço mais ou menos simpático durante o ano em que lá estivéssemos. Portanto, escolhemos cinco concelhos, Moura, Serpa… o último sei que foi Barrancos, e ficámos em Moura. E o que deveria ser um ano transformou-se… nunca mais saí de cá”. Durante o SMP, recorda que não se importavam “muito com os horários”, queriam “era fazer coisas, ver resultados”. Da parte da manhã trabalhavam no hospital da misericórdia, que ocupava o Convento de Nossa Senhora do Carmo e que funcionou até 1982, dando depois lugar ao centro de saúde que se manteve naquelas instalações até meados de 1995. “O hospital tinha internamento e éramos nós que seguíamos os doentes. Tudo o que se podia fazer no hospital fazia-se. Tinha até uma enfermaria de Ginecologia e Obstetrícia. Não havia obstetras, mas havia uma freira que era parteira, a irmã Florinda. Foi a mulher que fez o parto da maioria dos mourenses e dos arredores durante anos. Como era um hospital da misericórdia, quando chegámos quem estava, mais ou menos, a dar todo o apoio eram as freiras que viviam lá. Lembro-me que quando cheguei tinha acabado de ser inaugurado o serviço de raio-x, porque o grupo anterior [de médicos do SMP] achou que era tão importante ter um aparelho e fez uma força enorme. E o técnico era um rapaz que tinha sido criado pelas freiras, que tinha muito interesse e começou a aprender. Também assegurávamos as urgências”, recorda. No período da tarde iam fazer consultas nos postos médicos das aldeias. Helena Arvelos sublinha que na época não havia “consultas de prevenção” e as pessoas “só iam ao médico se estivessem doentes”. “Não havia consulta de saúde infantil, de planeamento familiar, de saúde materna, de hipertensão”. Consultas essas que só viriam a ser criadas “quando se começou realmente a pensar na carreira de Clínica Geral e Medicina Familiar e em fixar médicos que pudessem assegurar isso”. O que para a médica, que também viria a optar pela carreira de Clínica Geral, “se tornou, depois, um desafio”. A escassez de enfermeiros residentes também era um problema, principalmente, nas extensões das aldeias – “Eram pessoas multifacetadas que tinham aprendido alguma coisa, e que iam aprendendo connosco, que nos ajudavam a fazer os pensos e depois, se fosse preciso, no dia a seguir, mudarem o penso, já o sabiam. Os enfermeiros só vieram mais tarde”. Existiam, igualmente, lacunas em questões relacionadas com a saúde “das mulheres e das crianças”. Encontrar uma mulher “que então fizesse um anticoncetivo oral – que já havia – era quase uma raridade”. Ainda assim, frisa, “tudo se ia fazendo de uma forma ou de outra”. “Penso que se se fosse fazer um inquérito, em relação a esses anos [do SMP e início do SNS], para saber se as pessoas estavam satisfeitas ou não, acho que estavam. Agora, é melhor não fazer”. A sua experiência do SMP “foi muito boa, excecional”, contudo, Helena Arvelos admite que para alguns colegas tenha sido algo complicado. “A pessoa fez seis anos de curso, mais dois anos de estágio e depois mais outro, são nove anos. Se calhar, a nível familiar, para quem quer organizar a sua vida, acrescentar mais aquele ano… acredito que muitos colegas meus tenham achado que ia ser muito mau. Mas, para mim, um ano passa muito rapidamente e a experiência que íamos ter em trabalhar de uma forma diferente no Serviço Médico na Periferia, com estas valências, com esta abrangência do todo, era só vantagens”.

O SMP foi “uma experiência espetacular para os médicos, para a sua formação”, obrigando-os “a sair do conforto”, contrapondo, assim, com o serviço nos hospitais mais centrais, em que “uma pessoa está sempre rodeada de colegas hierarquicamente superiores que dizem o que deve ou não fazer, o que não deixa autonomia, não deixa que se aprenda por tentativa e erro”.

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Pedro Vasconcelos  “Fazíamos o melhor que sabíamos, o melhor possível, dormindo bem com a nossa consciência à noite”

 

“O ano profissionalmente mais cansativo, mas que mais gozo me deu”

 

Pedro Vasconcelos foi dos últimos médicos a prestar serviço na periferia no concelho de Serpa, em 1982, ano em que o SMP terminou com a criação da carreira médica de Clínica Geral, tinha então 25 anos. O médico chegou à capital de distrito em 1980 para fazer os dois anos do “então denominado internato de policlínica, de medicina tutelada”. Beja não foi, contudo, a primeira opção. Natural do Porto, em cuja faculdade de Medicina se licenciou, Pedro Vasconcelos e o seu grupo de amigos tinham como destino pretendido o Hospital de Bragança, porque sabiam que “era um bom hospital” e, “normalmente, onde se trabalhava mais era nos hospitais distritais, não nos centrais”. Mas, “azar dos Távoras, nesse ano houve mais pedidos do que vagas”, lembra. “Pelas contas que fizemos, ia haver sorteios e provavelmente para o número que nós éramos – nove, se não estou em erro – algum de nós tinha de saltar do grupo e não queríamos isso. Sucede que, nesse ano, o curso do Norte era muito mais volumoso em termos de recém-licenciados do que os cursos do Centro e do Sul. E as zonas Centro e Sul abriram-nos vagas”. A escolha recaiu, então, no hospital de Beja, que sabiam “ter características idênticas ao de Bragança, um bom hospital onde se trabalhava bem, com médicos de referência”. “E, então, viemos todos. Como costumo dizer, a minha vinda para Beja é uma história de amizade”. Do Alentejo não conheciam “rigorosamente nada”. “Foi mesmo uma aventura. Na altura, aventura maior ainda, porque os acessos não eram os que são hoje. E a distância, na prática, era maior do que hoje em dia, não é? Portanto, foi assim um bocado às escuras, tirando as informações que tínhamos do hospital”, nota. No final dos dois anos de internato, alguns médicos do grupo de amigos regressaram ao Norte, outros optaram por ficar, como foi o seu caso. “Era um hospital em que uma pessoa se sentia realmente muito bem. Os colegas eram muito disponíveis, inclusivamente os mais velhos, que a gente olhava sempre, como é evidente, de baixo para cima. Eram disponíveis, respeitosos, com muito conhecimento. Tínhamos grandes mestres. Os doutores Escoval Lopes, Brito Lança, Horário Flores, Apolino Salveano. Não eram só médicos, eram colegas”. Não foi, por isso, “ingenuamente” que, ao fim desses dois anos, em vez de regressar ao Norte, “como era o plano inicial”, tenha ficado em Beja. Também por outras raízes que, entretanto, criou, como a música – fundou, em 1981, o Coro de Câmara de Beja, que ainda dirige – e o ter conhecido a mulher. “De facto poderia ter zarpado de novo ao Norte, mas não quis. Sentia-me bem. A saúde tinha uma dimensão muito boa em termos de oferta, em termos de qualidade. E desse ponto de vista uma pessoa sentia-se bem aqui. Aliás, uma frase que muitas vezes dizíamos era: ‘se eu adoecer em Lisboa, levam-me para Beja”, reforça.Seguiu-se, então, um ano de SMP no concelho de Serpa. Pedro Vasconcelos já não se recorda com precisão das razões que o levaram a optar por aquela cidade da margem esquerda do Guadiana, mas deverá terá sido, “essencialmente, pela proximidade”, uma vez que continuava a residir na capital de distrito. Tal como Conceição Soares, todas as manhãs assegurava consulta na extensão de saúde de Aldeia Nova de São Bento. À tarde trabalhava na enfermaria do Hospital de São Paulo, onde também fazia pequenas cirurgias. As segundas-feiras eram dedicadas a fazer urgência de 24 horas na mesma unidade hospitalar. Às terças, de quinze em quinze dias, ia dar consultas às povoações de Corte do Pinto e Mina de São Domingos, já no concelho vizinho de Mértola. “O meu horário era assim, a razão porque muitas vezes digo que este foi o ano profissionalmente mais cansativo da minha vida, mas que mais gozo me deu. Muito cansativo mesmo. Mas foi muito interessante, em termos da autonomia, em termos do contacto que se teve com uma realidade, apesar de tudo, diferente da que era a de Beja, e da diversidade de situações a que nós éramos sujeitos”. E prossegue: “O conhecimento destas realidades, a sensação que nós tínhamos de poder ser úteis para pessoas que, não fora assim, não teriam essa possibilidade de ter acesso a bens de saúde, a autonomia que isso nos criava, a responsabilização, era muito importante. O estarmos perante situações, por vezes complicadas e inesperadas, em que tínhamos de ir pesquisar, de falar com outros colegas, era uma mais-valia também, porque nos obrigava a puxar por nós, pelos nossos conhecimentos, pela nossa intuição, pelo nosso olho clínico”.Em termos de condições de acesso, nota, se para Serpa e Aldeia Nova de São Bento “não era muito mau”, já para Corte do Pinto e Mina de São Domingo “era um serpentear por uma estrada estreita que realmente não era cómoda”. As “instalações” médicas nas aldeias também eram insatisfatórias. Em Corte de Pinto, por exemplo, “era um gabinete muito pequenino, tudo muito acanhado”. “O Serviço Médico na Periferia foi uma extraordinária mais-valia para as populações, porque tinham um contacto com profissionais de saúde, contactos de proximidade nas suas comunidades. Claro que havia, justamente, nestas extensões, mesmo em Aldeia Nova, mas, sobretudo, nas outras de Mértola, condições que não eram as melhores do ponto de vista físico e de materiais, mas que acabavam por ser sobrelevadas, digamos, pelo benefício que as pessoas sentiam com o nosso trabalho. Nós fazíamos o melhor que sabíamos, o melhor possível, dormindo bem com a nossa consciência à noite, mas sabendo que podia ser melhor em termos de resposta, fossem essas condições também diferentes”, reconhece. Já em relação aos utentes, notava-se, claramente, que “havia alguns com dificuldades”, e “quanto mais isolados mais pobres se percebia que eram”. “Há realidades que uma pessoa consegue absorvê-las sem ter de entrar em perguntas… Mas isso não foi só por essa altura. Às vezes apercebíamo-nos que o dinheiro não chegaria para a medicação necessária, como muitas vezes as pessoas também abertamente diziam. O que nos punha problemas de temos de cumprir a nossa missão sabendo que, às vezes, isso esbarrava com uma dificuldade em pôr na prática os nossos conselhos terapêuticos”.À semelhança de Conceição Soares e Helena Arvelos, Pedro Vasconcelos acabaria por optar pela carreira médica de Clínica Geral, tendo trabalhado, até 2024, ano da sua aposentação, como médico de família na extensão de saúde da freguesia de Salvada e no Centro de Saúde de Beja. “Eu tinha dúvidas entre clínica geral, pela riqueza de patologias que isso nos dava, e cirurgia, porque sempre gostei muito de trabalhos cirúrgicos, de mãos, e parece que tenho algum jeito. A cirurgia obrigaria a estágios fora de Beja e aí a família falou mais alto”.

 

 

 

14,9 por cento, o equivalente a 18 100 utentes inscritos em cuidados de saúde primários da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo que não tinham, no mês de setembro, médico de família atribuído, segundo dados disponíveis no portal da transparência do Serviço Nacional de Saúde.

 

“Ser-se médico é uma devoção”

 

Os últimos dados disponíveis no portal da transparência do Serviço Nacional de Saúde indicam que, no mês de setembro, dos 121 420 utentes inscritos em cuidados de saúde primários da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba), 18 100 não tinham médico de família atribuído, ou seja, 14,9 por cento. Comparando com janeiro, são mais 3647 pessoas. Nos meses de abril e junho ultrapassaram mesmo a barreira dos 20 mil – 20 517 e 21335 utentes, respetivamente. Pedro Vasconcelos, que durante 14 anos foi presidente do Conselho Sub-regional de Beja da Ordem dos Médicos, embora ressalve que de momento não tem números atualizados, frisa que “há uns três, quatro anos para cá, a aposentação sucessiva de diversos colegas” não foi compensada com a vinda de novos profissionais. “Hoje há seguramente várias centenas de utentes sem médico de família e com dificuldades em aceder aos serviços de medicina familiar. Não consigo quantificar isso, portanto, não vou dizer se hoje é grave, se não é, mas sei que há dificuldades, isso sei”, reforça. Sublinhando que “não se fabricam médicos de família do ‘pé para a mão’”, porque, “para além dos seis anos de curso, há quatro anos de especialização”, considera “extraordinário como, às vezes, ouvimos políticos dizer que no espaço de um ano vamos ter médicos de família para todas as pessoas”. “O médico de família é uma especialidade, como é o cirurgião, como é o ortopedista, portanto, não se põe uma pessoa de bata branca e pronto, aí está um médico de família. Não há gente especializada, os concursos ficam desertos em boa parte das suas vagas”, nota. Perante este cenário, o ex-presidente do Conselho Sub-regional de Beja da Ordem dos Médicos entende que é fundamental, também, criar condições, nomeadamente, no distrito de Beja, que possam atrair médicos de família, “assim como empresas, professores ou outros quadros”. “Eu já nem falo da autoestrada, que, para mim, é a que menos falta faz. Faz muito mais falta um serviço ferroviário moderno. Porque nós temos um terreno que é plano, com um bom IP [itinerário principal], bem largo. Claro que, havendo, melhor ainda. Portanto, os acessos são o que são. Em termos de comércio, de restauração, em termos lúdicos, até culturais – embora nem tanto assim –, é preciso que tudo se congregue no sentido de que quem venha cá por qualquer razão arregale os olhos e pense: ‘espera lá, talvez seja interessante ficar aqui’. Qual é a família que faz as malas para vir para uma região em que vá ter menos do que tem de onde vem? O interior é uma espécie de insularidade sem mar. E ou se conseguem construir pontes para que as pessoas se sintam atraídas para cá estar ou as pessoas não vêm”. Para além disso, adverte, as condições de trabalho na área da saúde “também já não são o que eram” e, “portanto, aí entram também os incentivos pecuniários”. E seria necessário, igualmente, “que as condições, até do ponto de vista de instalações, de materiais, do Serviço Nacional de Saúde, fossem suficientemente cativantes para que as pessoas não optem pela privada, o que não é crime nenhum”. “É obsceno uma pessoa precisar de ter um 18 ou 19 para entrar em Medicina”, considera, por sua vez, Conceição Soares, porque, defende, “ser-se médico é uma devoção”. “Tenho uma neta que passou agora para o quinto ano em Santa Maria [hospital]. E ela sempre quis ir para Medicina. E teve dois ou três anos [à espera] porque lhe faltava uma décima. E todo o coração dela é ser médica. Tirar o curso de Medicina é trabalhar muito, estudar muito. Um fulano ter 18 faz dele um melhor médico? Não acredito nisso. Se calhar será melhor investigador. Melhor médico? Não acredito”. Face ao elevado número de utentes sem médico de família atribuído, a médica sustenta que se deve “incentivar a Medicina Familiar”, até porque irá “diminuir imenso os acessos ao hospital”, considerando que “para os hospitais vai tudo o que não tem de ir, o que tem a ver com a baixa literacia em saúde”, que “agora é muito mais acentuada, porque as pessoas vão ao ‘doutor Google’”. “Está-lhes a nascer uma borbulha e acham logo que é um cancro. O menino tossiu, ainda não tem febre, já está na urgência. Ainda não tem ranho, já está na urgência. Porquê? Por ignorância, por medo, por insegurança. Vão demais às urgências, porque acabam por não ter confiança, e no médico de família tinham. Recorrem aos serviços de urgência por tudo. Talvez porque não há médicos de família suficientes”, reconhece. Na época do SMP, lembra, “havia incentivos” para os jovens médicos que iam para a periferia. O despacho da Secretaria de Estado da Saúde de 23 de junho de 1975 referia que os médicos policlínicos receberiam “uma remuneração fixa, que consta do vencimento (…), acrescido do pagamento das horas semanais que excedam as trinta e seis horas de horário normal, de um subsídio de deslocação e de um subsídio de alojamento, nos casos em que este não seja gratuito”. “Quem vinha para o interior alentejano ou ia para o interior de Trás-os-Montes tinha um acréscimo, que ainda era jeitoso. Não me lembro agora quanto, ainda em contos, mas era jeitoso”, reforça Conceição Soares, salientando que, atualmente, a “população em geral sente que o doutor é o tipo que está no hospital, o cardiologista, esse é que é o especialista, mas a Medicina Familiar também é uma especialidade”. Trata-se assim, no seu entender, “de uma questão de prestígio”. “O nosso trabalho, se for bem feito… e há estudos que demonstram isso, a diminuição de morte perinatal, a enorme mais-valia que houve em termos de saúde materno-infantil com o incremento da Clínica Geral. Tiravam-se das urgências inúmeras coisas. Uma unha encravada, uma conjuntivite, uma coisa qualquer que vai para Beja e que fica lá horas e horas e horas. Portanto, há que incentivar a Medicina Familiar, mas terá de se mexer nos postos médicos, nas instalações que hoje estão obsoletas e melhorar o suporte de médicos das especialidades hospitalares, como Medicina Interna, Obstetrícia, Ginecologia ou Cirurgia, para [os recém-formados em Medicina Geral e Familiar] não serem lançados às feras, entre aspas”. Conceição Soares admite que na época em que iniciou a sua carreira os médicos “eram mais aventureiros do que agora são”. “Têm mais medo, porque também há mais queixas. Dantes o senhor doutor tinha sempre razão, não é? Mas a gente não matou ninguém”. Já Helena Arvelos é da opinião que poderia ser incrementado um serviço “dentro do género do SMP”. Afinal, salienta, o SMP acabou por permitir que “uma série de médicos” se fixasse no concelho de Moura. “Estamos a atravessar uma fase muito difícil e acredito que haja boa vontade de quem tem poder para resolver. Não creio que haja alguém que ache que é ótimo estarmos como estamos. Não acredito. Mas isto é um assunto puramente político e eu não quero entrar por aí, mas houve nos últimos 10, 15 anos um desinvestimento na saúde. E chegámos ao que chegámos. Se calhar alguns médicos acharam que todo o seu esforço, e tudo o que gastaram para chegar aonde chegaram, depois, a nível económico, não era muito compensador. Pelo menos há quem se queixe disso”. Aposentada da função pública há vários anos, Helena Arvelos continua a trabalhar numa clínica privada em Moura. Conceição Soares, que se reformou em 2019, regressou em janeiro último ao hospital de Serpa, agora sob gestão da santa casa da misericórdia local, para fazer “umas horas”.

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