O Grupo de Ajuda Mútua de Sobreviventes de AVC, com reuniões mensais desde junho passado, acolhe no hospital de Beja doentes, familiares e profissionais de saúde, com o objetivo de proporcionar um momento e um espaço de “partilha, de terapia complementar, de diálogo, de informação positiva, mas também de convívio e amizade”. O “Diário do Alentejo”, tendo assistido a três destas sessões, revela-lhe testemunhos, histórias de resiliência e superação, de quem sobreviveu à doença.
Texto | José SerranoIlustrações | Susa Monteiro
“Estava eu a caminhar na praia, descansado da vida, quando de um momento para o outro caí para a frente. Quis levantar-me mas já não consegui, perdi as forças todas…”. Quem recorda o episódio é Manuel Godinho, iniciando, assim, a sua apresentação aos restantes elementos do Grupo de Ajuda Mútua (GAM) de Sobreviventes de AVC, iniciativa conjunta da Portugal AVC e da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba) que decorre uma vez por mês, desde junho deste ano, na sala de conferências do Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja, contando com a presença de doentes, familiares e profissionais de saúde.Numa formação de cadeiras em meia-lua, o silêncio de quem escuta sentado é, invariavelmente absoluto, sempre que cada um dos sobreviventes se apresenta e conta aos restantes colegas o teor de um momento ímpar de uma situação que a todos é comum – terem sofrido acidente vascular cerebral (AVC), cujo dia mundial se assinala na próxima quarta-feira, dia 29, com o objetivo de aumentar a consciencialização sobre a doença. “Vi logo que havia qualquer coisa que não estava bem, que não me deixava erguer, e percebi que tinha todo o lado esquerdo do meu corpo paralisado. Perna, braço… nada mexia. Quando quis pedir ajuda à minha esposa, que ia à minha frente, também já as palavras não me saíram – ‘blo, blo, blo’… algo assim, nada mais”. A mulher, Ana Godinho, uma amiga do casal, a nadadora salvadora da praia da Vieirinha, em Porto Covo (Sines), “e um rapaz” que presenciou a situação prestaram-lhe os primeiros socorros. Chamou-se a ambulância. “Lembro-me que fiz todo o caminho consciente, dizendo, para comigo, os nomes dos meus filhos e da minha mulher, mas assim que cheguei ao hospital de Santiago do Cacém, onde já me esperavam, comecei com convulsões e ‘apaguei’ por completo – durante sete dias permaneci em coma induzido”, na unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano, recorda o contabilista, de 59 anos, vítima de AVC hemorrágico. Informando que o AVC ocorre, quando o fluxo sanguíneo para uma determinada parte do cérebro é interrompido, provocando danos ou destruição permanente de células cerebrais, por ausência de oxigénio ou nutrientes, devido a um entupimento ou rotura de uma artéria cerebral, Rosa Mendes, médica especialista em Medicina Interna e coordenadora da Unidade de Acidente Vascular Cerebral (UAVC) do hospital de Beja, “descodifica” para o grupo o slide agora projetado na sala, sobre os três tipos da doença cerebrovascular: O AVC isquémico – correspondendo a 80/85 por cento da totalidade, que ocorre quando as artérias cerebrais ficam entupidas, habitualmente associado ao excesso de gordura no sangue; o acidente isquémico transitório (AIT), em que se regista o entupimento momentâneo da artéria cerebral, e cujos sintomas (dormência, afasia, perda de visão ou visão dupla, dor de cabeça forte) não deverão ser ignorados, sendo fundamental recorrer ao hospital, uma vez que um AIT pode ser o primeiro sinal de um AVC com graves consequências; o AVC hemorrágico, que sucede quando há rotura de uma artéria cerebral, normalmente relacionado com a hipertensão arterial, principal fator de risco para a sua ocorrência, sendo que, de acordo com dados do Relatório Global sobre Hipertensão da Organização Mundial de Saúde, em 2024, sofriam desta doença crónica cerca de 2,5 milhões de adultos portugueses. Um destes portugueses é João Varela, de 61 anos, diagnosticado como hipertenso “há já uns tempinhos” e medicado “com um comprimido de manhã”, que sofreu, há quase um ano, um AVC hemorrágico – “a médica disse-me que ‘isto’ deve ter sido um ‘pico de tensão’”.É, exatamente, contando como aconteceu o “isto”, da manhã de dia 8 de novembro, que o tratorista se apresenta ao grupo. “Quando fui a sair da cama – já eram oito, uma hora mais tarde que o costume… não me apetecia muito levantar… –, reparei logo que não tinha forças nas pernas, mas ainda assim esforcei-me para ir à casa de banho, de ‘gangão’, de ‘gangão’, parecia que tinha uma bebedeira muito grande. Até que caí. Gritei à minha sogra a pedir-lhe o telemóvel e ainda consegui ligar à minha mulher, que já estava no trabalho: ‘Chama alguém, depressa’ – a minha fala sem se perceber bem. Depois, vieram os bombeiros que me trouxeram para aqui, para o hospital de Beja. Foi assim que se deu”. Na instituição, permaneceu internado um mês e meio, os primeiros 15 dias “muito complicados, com o lado esquerdo paralisado, a ‘boca ao lado’ e sem mexer nada. O pé, a perna, o braço, a mão… um dedo que fosse”. A revolta instalou-se-lhe, forte, no pensamento. “’O que é que eu estou cá fazendo? Sem me conseguir levantar, sem conseguir andar…’”. E chorava. “Tinham que me sentar na cadeira, que me levar à casa de banho, tinham que me fazer tudo, porque eu não conseguia fazer nada. A minha mulher, todos os dias ao meu lado, de manhã à noite, a dar-me esperança – da família era só ela, porque eu não queria visitas, nem sequer dos filhos ou dos netos, recusava que me vissem assim, inválido numa cama. E a senhora enfermeira, incansável, sempre a incutir-me força, a dizer-me que iria recuperar, que é 'preciso tempo'”. Incentivos que lhe eram transmitidos, aparentemente, em vão. “Eu não queria aceitar que me tinha dado aquilo. ‘Porquê?’, perguntava-me, tomando eu, sempre certinha, a medicação para a tensão alta, sem stresse de trabalho, fazendo desporto (sempre joguei à bola no Futebol Clube de Serpa, agora nos veteranos). Bebia umas cervejinhas, sim, mas só ao fim de semana, e não fumo há já 12 anos… ‘Porquê?’”.

Ainda que complexa, a resposta à dolorosa questão ligar-se-á, para lá dos fatores de risco generalizados (hipertensão arterial, diabetes, excesso de peso, colesterol alto, tabagismo, consumo de álcool em excesso, sedentarismo), a especificidades da região, elucida Rosa Mendes. “Sabemos que, tradicionalmente, a gastronomia alentejana inclui hábitos alimentares de maior risco, nomeadamente os enchidos, o presunto, os queijos e as carnes, cujo consumo tem aumentado, contribuindo para uma ingestão excessiva de sal e gordura saturada”, verificando-se, de forma inversa, “uma diminuição na ingestão de alimentos vegetais, associados a uma diminuição do risco cardiovascular, como as leguminosas”.
Existe ainda, sublinha, uma forte componente cultural de consumo de pão que, normalmente, “acompanha todas as refeições e que sendo uma excelente base culinária, quando consumido em excesso, pode contribuir para o aumento de peso”. Outro dos fatores de risco intrínsecos ao território – “ainda que a ingestão moderada de vinho tinto faça parte dos princípios da dieta mediterrânica” – é o consumo excessivo de álcool, “numerosas vezes em idades muito jovens”.Aliás, ainda que a doença predomine, na região, nas faixas etárias dos 60/70 anos, tem-se vindo a verificar, revela a médica ao coletivo de sobreviventes, uma maior incidência de AVC em pessoas “com menos idade”, com razões “alicerçadas em escolhas erradas, que podem e devem” ser alteradas. “Os adultos mais jovens recorrem pouco ao seu médico de família e, por isso, não há uma avaliação e controlo dos fatores de risco cerebrovasculares”. Acresce o stresse do dia a dia, que propicia “menos tempo para cumprir uma dieta alimentar equilibrada” e o recurso “fácil e prejudicial a fast food, a alimentos pré-cozinhados, a bebidas energéticas gaseificadas, ao consumo excessivo de sal, de gorduras e açúcar”, não se equacionando sequer, muitas das vezes, a prática de exercício físico. Contrariando essa tendência, foi precisamente “a ir para a ginástica”, que Maria da Conceição Carvalho, de 68 anos, empresária reformada, sentiu os primeiros sintomas da doença, como contou, não sem antes advertir ao grupo, na sua apresentação – “Se eu não me lembrar de algumas palavras… eu no meu cérebro estou-me a lembrar delas, mas depois ficam um bocadinho… fugidias”. Foi em novembro passado. “Vai fazer um ano. Saí de casa normalmente, numa tarde que parecia ser igual às outras, mas no caminho para o ginásio começou-me a dar uma má disposição. A meio da aula, tive que ir à casa de banho, agoniada, e vomitei o que parecia ser uma espuma, uma água…Não disse a ninguém. Meti-me no meu carrinho e regressei a casa, conduzi perfeitamente, ninguém me buzinou. Tomei banho e deitei-me logo, o que não era costume, porque não me estava a sentir bem. Quando a minha neta me telefonou – tem esse hábito diário porque eu vivo sozinha –, a miúda sentiu, pela minha voz, que alguma coisa não estava bem. Quando ela e o meu filho chegaram ao pé de mim já eu estava com a ‘boca ao lado’ e um olho fechado. Veio o 112 para me levar para o hospital [de Beja], mas disso não me lembro de quase nada. Só tenho a breve ideia de, nas urgências, a médica estar-me a observar e a falar muito alto, muito alto, a tentar que eu respondesse ao que me perguntava. Mas eu já não respondia a nada”.Conceição é uma das sete mulheres presentes no GAM, número inferior comparativamente ao dos homens, 18, sendo que esta diferença, explica Rosa Mendes, reflete “o ligeiro aumento de internamentos”, que se verifica na unidade de AVC do hospital de Beja, do sexo masculino em relação ao feminino. “Isto deve-se a que os homens têm, normalmente, pior controlo dos fatores de risco, porque vão menos ao médico de família, porque são maiores consumidores de álcool e de tabaco, porque têm menos cuidados com a alimentação”, esclarece.Tendo-lhe sido diagnosticado um AVC isquémico, Conceição foi internada no 3.º piso – Medicina I (a exemplo de todos os participantes do GAM), serviço que nas suas valências comporta, desde o ano passado, uma Unidade de Acidente Vascular Cerebral que permite uma “assistência diferenciada aos doentes cerebrovasculares por uma equipa multidisciplinar, com (…) início precoce do tratamento e da reabilitação com vista a reduzir as incapacidades causadas pelo AVC e prolongando a vida com qualidade”, de acordo com a Ulsba. Maria da Conceição prossegue, de forma pragmática e sumária, o seu relato. “Estive lá 10 dias. Dos primeiros pouco me recordo, sentia que estava lá deitada, mais nada…. Mas depois a memória foi-se reavivando, pouco a pouco. E a autonomia também. Estou mais lenta, aceito, mas já vou fazendo a minha vida, de forma mais calma – fui sempre muito ativa, sempre trabalhei demasiado –, medindo a tensão (nunca a media e nunca ia ao médico), comendo menos bolos, bebendo menos cafés”. E não deixando de tomar, escrupulosamente, a medicação que lhe foi prescrita – “Quero viver e não quero voltar a passar pelo mesmo”.É exatamente sobre adesão terapêutica, definida pela Organização Mundial de Saúde como o grau comportamental de uma pessoa em relação “à toma da medicação, cumprimento da dieta, alteração de hábitos ou estilos de vida”, coincidente com as recomendações dos profissionais de saúde, que a médica discorre com o grupo, apoiada por mais um slide projetado, sublinhando a importância do cumprimento da prescrição medicamentosa no controlo da doença crónica e na diminuição da mortalidade a longo prazo, principalmente em doenças cerebrais e cardiovasculares. Contudo, tornando a médica a frisar que a adesão à medicação após um AVC, principal causa de morte entre os portugueses (em 2023 morreram em Portugal 9200 pessoas por doença cerebrovascular, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística), é “fundamental para prevenir recorrências”, essa indicação é, não raras vezes, negligenciada na região, devido a várias fragilidades inerentes aos habitantes do território, nomeadamente, económicas. “A nossa população, envelhecida e vulnerável, com reformas pequenas e rendimentos médios mais baixos do que a média nacional, é muitas vezes obrigada a optar por usar o dinheiro na compra de bens alimentares e no pagamento dos encargos com a habitação, ficando a aquisição da medicação para segundo plano” sendo que, não se colocando a questão monetária, “a falta de rede familiar ou comunitária, capaz de ajudar a organizar a medicação”, tem, também, como consequência, por vezes, a falta de toma da mesma.

Tal como Maria da Conceição, também José Pedro Oliveira foi vítima de AVC isquémico, revela o psicólogo, de 66 anos, na sua apresentação ao grupo. “Comecei no início de 2024 mais uma dose ‘grande’ de quimioterapia e, dois meses depois, a 3 de fevereiro, tive um AVC. O que o terá provocado não sei. Terá sido da ‘quimio’? Terá sido do stresse de um ano muito complicado – recidivas, tratamentos, operações? O que sei é que a minha mulher acordou, a meio da noite, e percebeu de imediato o estado em que eu estava. Chamou o 112, e de Beja, pela gravidade da situação, mandaram-me de helicóptero para o hospital Garcia de Orta [entidade pública de saúde galardoada internacionalmente, em 2023, com o prémio “ESO Angels”, pelo trabalho desenvolvido na área do AVC]. Lá, salvaram-me a vida. Tive sorte, muita sorte”, sublinha.
Desse período de 24 horas, em que permaneceu no hospital da Unidade Local de Saúde de Almada-Seixal, as recordações são escassas. “Tenho uma série de confusões na cabeça, uma névoa. O que me ficou desse período foi a voz de alguém, ao longe, a dizer-me ‘esteja quieto com a perna’ e de ver o meu irmão à saída do hospital (fiz-lhe ‘fixe’ com o polegar), quando entrei para a ambulância que me trouxe novamente a Beja, para o terceiro piso, onde permaneci internado durante 13 dias”. Ainda que as faculdades motoras não lhe tenham sido significativamente afetadas – “Devagarinho, recomecei a andar, a ir à casa de banho sozinho” –, o distúrbio da linguagem, decorrente da lesão, manifestou-se-lhe relevante. “Nos dias seguintes ao sucedido, eu não dizia uma palavra, o que me preocupou sobremaneira, pois, sendo eu psicólogo, a fala é o meu principal instrumento, preciso de comunicar verbalmente – sem voz o que é que eu faço?”. Questionava-se, desassossegado. No entanto, “lentamente”, a fala foi regressando, curiosamente numa outra língua que não a materna. “À medida que os dias iam passando, as palavras começavam a surgir-me, pouco a pouco, uma após outra”, cada uma, uma vitória. “Mas, insolitamente, só conseguia falar em inglês. Pensava em português mas o discurso vinha em inglês. Terá sido uma resposta qualquer, daqui de dentro, não sei…. A enfermeira fartava-se de rir (carinhosamente, claro) pelo insólito da situação”.Mas a substituição verbal do idioma de “terras de sua majestade” para a republicana língua portuguesa foi, paulatinamente, encontrando bom caminho.“A partir daí foi uma ‘festa’, essa é a parte boa, pois comecei a aperceber-me que, depois de ter ‘caído lá em baixo’, o cenário ia mudando, que era possível acreditar em melhorias e reaprender a falar – com a minha força de vontade, novamente encontrada, com as sessões de terapia da fala e com a ajuda inestimável de todos os trabalhadores da saúde que encontrei no hospital de Beja”. José Pedro faz, então, questão de sublinhar a importância do “tratamento humano” que experienciou, facto corroborado de imediato por todos os elementos do grupo. “Há inequivocamente, neste hospital, para lá do profissionalismo com que somos tratados, uma cultura de proximidade aos doentes, que se manifesta, por toda a gente, no carinho que nos é dispensado, na forma boa como somos ‘servidos’. Garanto-vos que foi esse carinho que fez mais por mim que tudo o resto. Sem esse carinho eu não estava aqui…”.
Recuperar é preciso Quando Ana Godinho olhou para trás, despertada pelo som de pedido de ajuda do marido, correu para ele. “Quando o vi, à distância, no chão, não me apercebi do que se passava. Pensei que pudesse ter torcido um pé. Só quando a ele cheguei é que entendi o que se estava a passar – tinha a ‘boca ao lado’, a voz ‘arrastada’ e todo o lado esquerdo do corpo paralisado. Percebi que a situação era grave”. Já no hospital do Litoral Alentejano, localizado a cerca de cinco quilómetros da cidade de Santiago do Cacém, os médicos informaram-na que, pelo quadro clínico que apresentava, tinha havido necessidade de colocar Manuel Godinho em coma induzido – um estado de inconsciência controlado, provocado por medicamentos sedativos, utilizado para proteger o cérebro em casos de trauma grave. Comunicaram-lhe, ainda, que “em cima da mesa” se lhes apresentavam quatro desfechos possíveis, relativamente ao paciente: morte, dependência total, dependência parcial ou recuperação. “De imediato, foi como se me tivessem dado um brutal murro no estômago. Mas, logo a seguir, agarrei-me, com todas as forças, à quarta hipótese. Sabíamos que o meu marido estava em boas mãos, a ser bem tratado, e tendo eu, os meus filhos, toda a família, os amigos, consciência da gravidade da situação, todos acreditámos – e rezámos e pedimos a Deus – na sua recuperação. Tínhamos de ter essa perspetiva, essa firme esperança de que tudo iria correr bem, porque as ‘boas energias’ geram ondas positivas”, frisa Ana Godinho, no acompanhamento do cônjuge à sessão do GAM. E essa “positividade”, diz, começou “a exibir os seus frutos”, através de “pequenos indícios que se iam manifestando”, pouco a pouco. “Após sete dias de ter tido o AVC, o meu marido começou a tentar apertar a minha mão, a tentar virar a cara, a tentar abrir os olhos, significando cada um destes sinais, ocorridos em dias diferentes, pequenos ganhos, vitórias que ele ia obtendo”.Entre o hospital do Litoral Alentejano e o hospital de Beja, Manuel Godinho permaneceu ventilado, em observação, nas duas unidades de cuidados intensivos, subindo, 12 dias após o AVC, no primeiro dia de agosto, para o terceiro piso, da Unidade de Acidente Vascular Cerebral – um “fogo posto” de renovada confiança, para todos. Deste período, de quase duas semanas, diz ter acordado “muito confuso”, sem saber onde estava ou o que é que lhe tinha acontecido, assumindo este tempo como se de um momento fantasioso, vivido na sua mente, se tivesse tratado – “Tenho a ideia de ouvir as vozes da minha mulher, dos meus filhos, das enfermeiras, como se todos estivessem dentro de um sonho meu. Um sonho que me era tranquilo”. Como tranquilo ficou quando, por fim, acordou e tomou consciência do sucedido. “Não cheguei a sentir-me revoltado. Compreendi que tinha passado por uma enorme provação e que a tinha conseguido ultrapassar. Sabia que estava bem acompanhado – todo o pessoal do piso me transmitiu essa enorme serenidade – e que tinha de continuar, junto com o apoio profissional e da família, a fazer a minha parte, no caminho da minha autonomia. Nunca me deixei ir abaixo, sabia que a partir dali só podia ser melhor”. E a verdade é que foi – “Os médicos até me disseram que eu devia ser um caso de estudo, pelas rápidas progressões que tive. Depois de um ano, estou hoje quase a 100 por cento, física e psicologicamente, não sentindo nada que me impeça de fazer ou de dizer alguma coisa…ando bem, mexo bem o braço e a mão e a memória está boa. Pelo menos é assim que eu me sinto”.Sobre as causas do AVC que sofreu, Manuel Godinho, admitindo que o stresse por excesso de trabalho pode ter tido a sua quota-parte – “Não dormia descansado, constantemente preocupado com o muito que tinha de fazer, com os prazos de entrega…” –, não hesita em colocar a responsabilidade maioritária à sua incúria, face à observação médica. “O meu pai teve três AVC, tenho tios que também os tiveram e eu, tendo assistido a tudo isso e sabendo que a ‘história familiar’ é um fator de risco, em vez de fazer análises de rotina não as fazia. Ainda para mais tendo a tensão alta, detetada cada vez que ia fazer os exames da ‘medicina do trabalho’ – possivelmente até foi este o motivo desencadeador. E tinha outros sintomas…a dormência dos dedos da mão, a vista desfocada e a dobrar. Eram episódios momentâneos, que depois de passarem não lhe atribuía significado. Mas aquilo era o meu corpo a dar sinais de que não estava bem. Agora compreendo que, realmente, as coisas não podem ser feitas assim, ignorando, correndo riscos…se tivesse sido medicado, talvez isto não tivesse acontecido”.Instantes depois de um novo membro do grupo, em internamento no piso 3, chegar, de cadeira de rodas à sala de conferências, acompanhado por uma enfermeira, a bola colorida de borracha, que vai passando por cada um dos intervenientes das sessões, indicando a sua vez de contar a sua história, de manifestar o seu ponto de vista, de desabafar perante os colegas de grupo, está agora, novamente, nas mão de João Varela. Desta vez, informando a plateia acerca da transformação que foi verificando em si próprio, particularmente, na diminuição, e posterior extinção, da descrença na sua recuperação, que inicialmente erigiu. “Com as conversas que fui tendo com o psicólogo do hospital, comecei a perceber que tinha de ser mais otimista e com os exercícios que ia fazendo na fisioterapia compreendi que a recuperação física era possível – comecei a pôr-me de pé, a andar, a mexer os dedos, o braço. Tinha de encontrar forças para seguir em frente, pois o pessimismo não me iria, nunca, ajudar. Percebi, finalmente, como se se tivesse feito luz, que a senhora enfermeira estava certa naquilo que me tinha dito – ‘É preciso dar tempo ao tempo’”. E fala, com entusiasmo, da sua recuperação, da sua readquirida capacidade de andar sem ajuda, do regresso do sorriso e do ânimo – “Ainda não jogo à bola, mas já vou assistir aos treinos de futebol do meu neto e olho para a vida como mais uma oportunidade que me foi dada”.Sobre episódios vitoriosos, ainda que com alguns condicionalismos, fala-nos José Pedro Oliveira. “Reaprendi a falar e voltei a trabalhar. O que ainda noto é dificuldade de memória, sobretudo para nomes, o que às vezes me provoca alguma irritabilidade. E no vocabulário, como se tivesse uma parede à minha frente que me impede de chegar à palavra que quero…tenho, então, – isto foi-me ensinado em terapia da fala – de ir contornando esse muro, através de outros significados da palavra, para a conseguir agarrar. E canso-me com mais facilidade… Mas é tão bom podermos sorrir. Eu estou feliz. Se conseguir ficar melhor ótimo, mas estou feliz”.

A importância do GAM A presença assídua dos vários participantes do GAM é notória, ainda mais sublinhada pela antecipação da maioria à hora marcada, indiciando não se querer perder um instante que seja de cada uma das sessões. De acordo com Rosa Mendes, tal verifica-se pela facilitação que a iniciativa permite à “integração dos sobreviventes na retoma da rotina do dia-a-dia”, ajudando-os a ultrapassar, através da partilha, em comunhão, “as limitações impostas pela doença, aos níveis individual, familiar e/ou social”, ajudando, paralelamente, “a combater a solidão, a fortalecer a autoestima e a dar esperança”, designadamente, através de exemplos de superação que ali, na primeira pessoa, são relatados. Igualmente, cada sessão viabiliza adquirir novos conhecimentos sobre a doença, sobre reabilitação e direitos dos doentes e, “muito importante”, frisa a médica, sobre a prevenção secundária, que passa por um conjunto de procedimentos, que visam reduzir o risco de recorrência e que devem incluir, entre outras medidas, um exigente controlo dos níveis de colesterol, tensão arterial e diabetes e a manutenção de um estilo de vida saudável.
Sobre a importância que a participação nas sessões do GAM tem para José Pedro Oliveira, o psicólogo discorre. “Todos nós, que sofremos AVC e estamos aqui, atravessámos um caminho de pedras. Todos nós tivemos a fase de nos questionarmos, ‘Que merda, como é que isto me aconteceu?’. São fases inevitáveis, até percebermos uma coisa tão simples como esta: estamos vivos e agora já consigo andar, já consigo falar, já me consigo rir… E esse entendimento, em grupo, partilhando entre todos as histórias de cada um, partilhando as provas pelas quais passámos e, sobretudo, a nossa situação atual e como estamos, pouco a pouco, a sair da fossa e a regressar à vida outra vez. Partilhar ajuda-nos imenso, dá-nos uma enorme força. E, depois, permite-nos compreender, através das informações e dos conselhos técnicos, como é que podemos ficar melhores. As pessoas vêm aqui, porque daqui recebem coisas boas. Estas reuniões permitem-me perceber que não sou um infeliz”.Também Maria da Conceição, acentua “o bem-estar” que sente em ser um dos membros do GAM, em participar nas reuniões, quer pela informação que tem vindo a receber – “Da médica, da enfermeira, da assistente social, porque eu agora sei muitas coisas úteis, importantes, que dantes não sabia ou às quais não ligava” –, quer pela partilha das histórias de cada um. “Eu tenho gostado muito de relatar os vários episódios da minha história e de ouvir os outros a contar as suas experiências. Percebo que não estou sozinha e que aquelas pessoas entendem perfeitamente aquilo pelo qual eu passei, as minhas vitórias e os meus receios. E eu também as entendo. É importante falarmos sobre o que nos aconteceu”. Porém, há quem tenha mais dificuldade em dar esse passo, considera. “Infelizmente, conheço pessoas que tiveram AVC e que deixaram de se relacionar socialmente, que se isolaram por completo. Já as tentei trazer para o grupo, mas não querem vir. Como se carregassem um estigma, como se tivessem vergonha. Mas vergonha do quê? Esta é uma doença como outra qualquer e o que temos de fazer é tentar ultrapassá-la”, enfatiza.Um episódio de recolhimento social semelhante ao anteriormente relatado é-nos também contado por João Varela, corroborando as palavras de Maria da Conceição relativamente ao que parece ser, em alguns casos, o sentimento de reserva no assumir da doença perante os outros. “Estou a frequentar um centro particular de fisioterapia e tenho lá um colega, com a minha idade, que teve um AVC há quatro anos. Ainda está um bocado ‘apanhado’, sobretudo na parte da locomoção, a perna ainda não dobra, o braço a mesma coisa. E parece-me que tem alguns problemas em ser visto na rua assim. Já lhe disse que era bom para ele assistir às sessões do GAM – ‘Mesmo que ao princípio não queiras falar, ouves o que lá é dito, que é importante, e vais ver que te vais sentir bem’. Ele diz-me sempre que sim, que vem, mas depois chega-se ao dia…. Tenho pena que não venha, porque estas reuniões permitem-nos entender que não nos devemos sentir excluídos de nada, que somos, nesta sociedade, pessoas iguais a todas as outras. Aconteceu-nos o que nos aconteceu, mas há que continuar, que prosseguir a vida. E estas reuniões, pela partilha e informação que proporcionam, dão-nos muito alento”.Este conforto proporcionado por este espaço de “partilha, de terapia complementar, de diálogo, de informação positiva, mas também de convívio e amizade”, de acordo com a Ulsba – que tem lugar, a partir das 17:30 horas, na primeira terça-feira de cada mês –, está imbuído de uma reciprocidade inequívoca, se tomarmos em conta as palavras de Rosa Mendes.“Como médica, tem sido uma experiência muito gratificante, uma vez que nos possibilita conhecermos os sobreviventes fora do internamento ou das consultas, ouvindo-os, pormenorizadamente, sobre o impacto emocional da doença e os desafios diários por que passam ao longo da sua recuperação – é um contacto mais próximo, mais humano”. A opinião apresentada, de recebimento de privilégio pessoal e profissional, é subscrita por Susana Góis, enfermeira da Ulsba especialista em enfermagem de reabilitação, palestrante, à semelhança da médica, das sessões do GAM.“Como enfermeira, tem sido muito importante ouvir este grupo, pois muitas vezes, na prática clínica, não temos oportunidade de acompanhar, tão de perto, as dificuldades que os doentes e as famílias enfrentam no dia a dia. Aqui, surgem partilhas que, até para nós, são novas, sobretudo, ligadas ao impacto emocional e social do AVC”. Desta forma, Susana Góis valoriza, sobremaneira, o enriquecimento de aprendizagem proporcionado pela dinâmica experienciada no GAM. “Este grupo lembra-nos a importância da escuta ativa e do apoio emocional, tão fundamentais quanto os tratamentos médicos, tornando-nos mais atentos e próximos das necessidades reais das pessoas e incentivando o enriquecimento da nossa forma de cuidar”.Passam agora 45 minutos das sete da tarde. A sessão prolongou-se, tal como nas anteriores, um “bocadinho mais” para lá do tempo previsto, uma vez que há sempre muito a dizer e sempre muito a escutar, atentamente. A luz do projetor desliga-se. Das cadeiras dispostas em meia-lua levantam-se, serenamente, os participantes. Um burburinho de conversas cruzadas conduz os sobreviventes até à porta da sala, que os voltará a acolher dali a um mês, unidos na satisfação de mais um momento de partilha. Por entre o rumor do grupo uma frase se destaca, como uma bandeira de resiliência hasteada ao vento das adversidades – “Estamos vivos”.

Capacidade da Ulsba no tratamento e recuperação de doentes vítimas de AVC
De acordo com Rosa Mendes, a Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba) “tem vindo a otimizar”, nos últimos anos, “o acompanhamento de todo o percurso de cuidados prestados a um doente com AVC”, desde que são ativados os serviços de emergência até à fase de reabilitação. A unidade de saúde tem ainda, refere a médica, “apostado na formação de profissionais na área do AVC (urgência e internamento) ”, modernizado “alguns dos meios de diagnóstico”, reformulado a Unidade de AVC, “anteriormente extinta”, recrutado profissionais nas áreas de enfermagem de reabilitação e de medicina física e reabilitação. Relativamente às necessidades mais prementes da Ulsba, neste âmbito, Rosa Mendes elucida: “Necessitamos de uma maior eficácia na transferência de doentes, para serviços de urgência na área metropolitana de Lisboa, que na fase aguda precisam de tratamento endovascular – chegamos a estar uma hora, duas horas, à espera de ambulância”. Seria ainda importante, sublinha, “reforçar o acesso à reabilitação especializada e assegurar melhor a continuidade de tratamentos de reabilitação no ambulatório”, uma vez que nem todos os doentes “têm a possibilidade de fazer programas prolongados (há centros de saúde sem terapeutas especializados nas diferentes valências da reabilitação do AVC). É, ainda, fundamental, expõe, “reduzir tempos de espera, melhorar a articulação entre hospital e cuidados de saúde primários”. Rosa Mendes manifesta, igualmente, a necessidade de “um apoio psicossocial mais estruturado para doentes e cuidadores”, idealmente, tendo “equipas multidisciplinares permanentes, capazes de acompanhar as pessoas ao longo de todo o processo de recuperação, criando, desta forma, um circuito estruturado para o acompanhamento dos doentes e das suas famílias”. Termina, frisando que a integração de doentes de AVC na comunidade “continua a ser um desafio da Ulsba e de todo a Alentejo”.