Diário do Alentejo

Tempo

05 de julho 2025 - 08:00
“Uma hora é igual a uma hora independentemente do serviço prestado” é o lema da agência
Foto | Ricardo ZambujoFoto | Ricardo Zambujo

Dar e receber. São estas as palavras que constroem a agência “Banco de Tempo” que, no início do mês de junho, abriu portas em Beja. Sob o conceito de que “troca-se tempo por tempo” e que “todas as horas têm o mesmo valor”, o projeto dá os primeiros passos numa cidade em que a “solidão” e a “individualidade” teimam em aparecer. O “Diário do Alentejo” foi conhecer o espaço físico da agência, bem como os primeiros membros que a integram.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa  Fotos Ricardo Zambujo

 

Numa das ruelas da cidade de Beja, em direção ao imponente castelo, o calor abrasador faz-se sentir até à sombra das paredes altas do antigo Hospital de Nossa Senhora da Piedade. Em tempos, entre os finais do século XV e princípios do XVI, o conhecido hospital da Misericórdia acolhia peregrinos e doentes, sendo o “tempo” um dos principais remédios de cura, espiritual ou física, de quem lá pernoitava.

Volvidos cerca de cinco séculos, a palavra “tempo” continua a ser um dos alicerces do edifício, desta vez sob a forma de “um sistema de trocas solidárias” promovido pela recém-criada agência “Banco de Tempo”.

“O ‘Banco de Tempo’ é um sistema de organização de trocas solidárias, no caso em que se promove um encontro entre a procura e a oferta de serviços entre os seus membros. No fundo, o que acontece é que todas as horas têm o mesmo valor [e] a moeda de troca é a hora”, começa por explicar, ao “Diário do Alentejo” (“DA”), a coordenadora do projeto, Catarina Serraninho.

A iniciativa, pioneira na região, vem tentar combater o isolamento social e, consequentemente, a solidão que se vive numa “comunidade pequena”, e, ao mesmo tempo, com “pouca proximidade”.

“Este projeto quer juntar, sinergicamente, o que de melhor cada um tem, tanto que estas trocas podem ser individuais ou coletivas, [mas] também trazer instituições e organizações para se poder trabalhar esta dimensão em rede [e] contribuir para objetivos comuns. Todos nós temos objetivos comuns relativamente à nossa cidade e [o ‘Banco de Tempo’] pode ser uma semente para trazer laços mais próximos entre todos e para Beja”, alude.

Foi a partir desta premissa que partiu o interesse de Helena Baltazar para integrar o programa que abriu portas no início do mês de junho. Ao “DA” conta que a sua perceção sobre o estado da cidade, mas, sobretudo, sobre as vivências pessoais das pessoas que nela habitam, foi o mote que a incentivou a aceitar o desafio de ser membro do “Banco de Tempo”.

“Preocupa-me muito a solidão que se vive nesta cidade, [nomeadamente] com pessoas idosas e reformadas e acho que este projeto vai, de certeza, trabalhar muito nesta dimensão. Vejo pessoas com vidas muito vazias e que precisam de ter entusiasmo com alguma coisa”, realça a professora de artes.

Por esse motivo, um dos serviços que oferece no “Banco de Tempo”, além da aprendizagem de práticas em “aguarela, cerâmica de autosecagem [e] pintura em qualquer técnica ou óleo”, é “fazer companhia para ir tomar um café” ou “ir buscar medicamentos para uma pessoa que precise”.

“Na minha área, [as atividades que ofereço] são altamente terapêuticas e as pessoas precisam de lavar um pouco a alma, mas sei que os outros pequenos serviços vão ser extremamente preciosos também”, reconhece, com um sorriso.

Cristina Coroa é outro membro do “Banco de Tempo”. Sem receio de falar, admite que desde que se tornou cuidadora informal do pai que, por vezes, “há momentos de muita solidão” e que, por isso, há muito que procurava um projeto deste tipo.

“Há bastante tempo que tenho conhecimento pela Internet deste projeto e em termos pessoais faz-me todo o sentido, embora haja dificuldades em arrancar com estas coisas. [Mas] de repente, porque às vezes as coisas são assim e nós desejamos muito e não acontecem num certo tempo, o ‘Banco de Tempo’ já estava aqui perto de mim”, afirma.

Para oferecer, a também apicultora afirma que tem os saberes que o pai lhe foi transmitindo ao longo dos anos e que, nos dias de hoje, continuam. Além dos ofícios ligados ao “verdadeiro mel”, Cristina Coroa espera que a procurem para aprender ou praticar ping-pong, assim como para declamar poesia.

“O meu pai sabe, como é normal na sua idade, muita poesia de cor. Senti-me desafiada a aprender com ele alguns [poemas] desse tempo e outros novos e isso acho que deve ser transmitido. Depois, no desporto podemos começar já, porque a mesa está lá sempre armada e assim a casa teria mais movimento e eu não estava tão sozinha”, reconhece.

Estas atividades que permitem uma interação intergeracional, segundo Catarina Serraninho, são também “um dos objetivos estratégicos e principais” do projeto.

“Vemos hoje que nestas sociedades contemporâneas se assiste a um crescente individualismo, as tecnologias vêm deixar-nos hiperconectados, mas, ao mesmo tempo, pouco presentes. Por isso, nós enquanto agência do ‘Banco de Tempo’ tentaremos ter essa atenção de trazer propostas com essa dinâmica intergeracional”, reconhece a coordenadora.

Para Helena Baltazar, enquanto professora, este projeto deve conseguir “resgatar alguns valores que se estão a perder”, nomeadamente, em faixas etárias mais novas, como “a empatia, a solidariedade [ou] a preocupação com o outro”.

“As pessoas estão muito viradas para si próprias e só pensam: ‘O que é que eu quero?’, ‘O que é que eu preciso?’ ou ‘O que é que eu tenho?’. Vejo isto em todas as faixas etárias, mas nas escolas é cada vez mais frequente”, comenta.

 

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“É muito fácil dizer que estamos disponíveis para dar, [porque] querer receber vulnerabiliza-nos”

 

O conceito do “Banco de Tempo” assenta na ótica de construir uma “cultural do cuidado” e o estabelecimento de relações sociais “mais humanas e igualitárias”, resgatando “as relações de boa vizinhança” entre pessoas de diferentes gerações e origens, “um bocadinho como acontecia antigamente em que todos se ajudavam”.

Paralelamente, segundo explica a coordenadora, o projeto “estimula também os talentos e os recursos individuais de cada um”, respeitando “a pessoa e o seu tempo” e assegurando que “todas as horas têm o mesmo valor [e que] todos temos alguma coisa para dar e para receber”.

“É um projeto novo e inovador aqui para a nossa cidade e as pessoas têm interesse porque é uma dinâmica muito diferente daquilo que temos. As pessoas ficam curiosas e entram em contacto connosco para saber em primeira mão como é que funciona”, revela.

Assim, qualquer pessoa que se reveja na proposta do “Banco de Tempo” pode tornar-se membro e, consequentemente, passar a disponibilizar determinados serviços – “baseados na sua profissão ou em coisas que gosta de fazer” – e de receber outros. Para tal, continua a explicar Catarina Serraninho, quando um dos membros precisa de uma tarefa contacta a agência e esta procura um outro voluntário que a possa realizar.

Estas trocas são “completamente livres” e podem ser realizadas “no espaço físico do ‘Banco de Tempo’, mas podem acontecer noutros espaços públicos, ao domicílio ou em espaços que os membros acordem entre si”.

No fim da troca, o pagamento é feito através de um “cheque de tempo”, onde se regista a duração do serviço e, consequentemente, a pessoa que o disponibilizou “credita-o na sua conta”, sendo “debitado na conta do membro que o recebeu”.

“O que diferencia este projeto, no caso do voluntariado, é que as pessoas ajudam, mas também recebem, e isso é uma condição fundamental. Há um equilíbrio nas trocas”, relembra.

Ainda numa “fase de arranque” e a aceitar inscrições, a também socióloga reconhece que existe alguma resistência em fazer com que os membros exteriorizem o que querem receber, uma vez que “é muito mais fácil dizer que estamos disponíveis para dar”.

“Querer receber vulnerabiliza-nos. É mais fácil dar do que pedir ou descobrir, em conjunto com as outras pessoas, o que é que precisamos. É toda uma desconstrução e isso é fundamental, [porque] às vezes nesses encontros vão-se descobrindo talentos e explorando possibilidades”, revela.

O “Banco de Tempo” acaba por ser um “projeto de construção” e em que “tudo é uma possibilidade”, desde “coisas mais simples, como fazer companhia, até coisas que nunca nos passou pela cabeça”. “Acho isso extremamente libertador, porque podemos criar uma série de respostas que não existem”, realça.

Helena Baltazar e Cristina Coroa corroboram a ideia. Ambas admitem que na entrevista de inscrição foi mais claro verbalizar o que tinham para “dar” comparativamente com o que queriam “receber”, mas ainda assim têm algumas ideias.

“O meu filho tem 30 anos e este era um casaquinho com manga reglan que a minha tia, que já cá não está, lhe fez. Há sempre uma amiga que diz que faz e que logo nos juntamos e marcamos um café, [mas] estou farta disso. Por isso, acredito que de certeza que em Beja há alguém que tem muito gosto em me ensinar isto e o ‘Banco de Tempo’ vai ajudar-me”, assegura.

Consciente das potencialidades que o projeto tem e, naturalmente, nas vantagens que o mesmo trará para a sua vida, Cristina Coroa admite ainda que gostava que este lhe proporcionasse momentos ao ar livre.“Um dos serviços que peço é que me ajudem a fazer pequenas sementeiras, porque se for [lá ao quintal] um grupo de pessoas que dá o seu tempo, eu depois sinto-me responsável por aquilo e não deixo que morram de certeza”, admite.

Helena Baltazar também quer “aprender a costurar” e fazer “aquela parte da costura criativa, como bonecos e bolsas”, e “receber serviços de costura” com “coisas mais complicadas”. “E depois coisas que me tragam liberdade. Lembrei-me da dança livre, com alguma orientação e com pessoas que saibam, mas leve e sem grandes preocupações, [porque] isso é tudo o que os professores precisam”, graceja.

 

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“Gostava muito que conseguíssemos criar uma rede sólida e coesa”

 

A funcionar há cerca de um mês em Beja, o “Banco de Tempo” é ainda um projeto embrionário. De momento, conforme descreve a coordenadora, as inscrições de membros são ainda “um número muito reduzido” e, por isso, as trocas de serviços ainda não se iniciaram.

“À medida que o tempo avança, certamente que teremos mais pessoas interessadas. Temos uma campanha estratégica de divulgação nas nossas redes sociais, mas sabemos que este tipo de iniciativas funciona muito de boca a boca”, assegura.

Com as trocas a terem início “muito em breve”, Catarina Serraninho revela que para começar haverá uma “aula de aguarela em grupo” para “trabalhar a dimensão da confiança que é muito importante para depois se fazerem as trocas individuais”.

“O nosso intuito, para além das trocas, é trazer também com alguma regularidade encontros abertos à comunidade para que as pessoas conheçam a nossa dinâmica, vejam como é que o projeto funciona e o integrem”, espera.

Quanto ao futuro do “Banco de Tempo”, a coordenadora deseja “ver as pessoas muito motivadas e interessadas em querer coisas novas para a cidade”, assim como “criar uma rede sólida e coesa de pessoas colaborativas, participativas e que querem fazer a diferença”.

“Queremos combater esta questão que nada tem que ver com a interioridade, mas que é geral. Nós estamos cada vez mais distantes uns dos outros, inclusive fisicamente, e este projeto obriga à necessidade de estarmos juntos a fazer coisas que nos dão gozo e prazer”, relembra.

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