Diário do Alentejo

Brincar

20 de junho 2025 - 19:00
Espaço Museológico da Brincadeira, com espólio de Rogério Fialho, é inaugurado amanhã, dia 21, no antigo lavadoura de Cabeça GordaFoto | Ricardo Zambujo

Brinquedos de madeira, lata e plástico, dos mais raros aos mais acessíveis, podem ser apreciados a partir de amanhã, sábado, no novo Espaço Museológico da Brincadeira, que será inaugurado no antigo lavadouro da freguesia de Cabeça Gorda. O vastíssimo e valioso espólio foi cedido por Rogério Fialho, fundador do Grupo de Teatro Jodicus (Jovens Dinamizadores da Cultura na Salvada).

 

Texto | Nélia Pedrosa Foto | Ricardo Zambujo

 

Durante a II Guerra Mundial, devido à escassez de chapa de folha de Flandres, os fabricantes de brinquedos portugueses viram-se obrigados a recorrer às fábricas de conservas para reciclar e aproveitar, na sua maioria, latas de sardinhas, para continuarem a sua produção. Alguns brinquedos dessa época, como baldes e pás de lata, em cujo interior são visíveis restos de chapa de embalagens de sardinhas, integram a vasta coleção de Rogério Fialho, que ficará disponível para visitação a partir de amanhã, sábado, dia 21, no Espaço Museológico da Brincadeira, um projeto da Junta de Freguesia de Cabeça Gorda, que conta com o apoio da Câmara Municipal de Beja.

Ocupando o antigo lavadouro de Cabeça Gorda, “um local requalificado [pela junta] que se transforma agora num espaço cultural e intergeracional único”, o novo espaço é a concretização de um sonho antigo de Rogério Fialho. Fundador, em 1978, do Grupo de Teatro Jodicus (Jovens Dinamizadores da Cultura na Salvada), com o qual “tem percorrido o País e além-fonteiras”, e funcionário do IPDJ (Instituto Português do Desporto e Juventude) há cerca de três décadas, Rogério Fialho começou a colecionar brinquedos há 22 anos, quando deixou “de fumar”. “Percebi que um brinquedo era o preço de um maço de tabaco na altura. E, então, comecei a colecionar, colecionar…”, conta ao “Diário do Alentejo”.

Aos brinquedos fabricados com restos de chapa de embalagens de sardinhas, dos anos Quarenta do século passado, expostos nas vitrinas do novo espaço museológico, juntam-se outros de madeira – desde mobiliário de sala de estar e quarto a piões, carroças e instrumentos musicais –, de alumínio – principalmente, equipamentos de cozinha, então destinados às meninas – e de plástico – eletrodomésticos, mais utensílios de cozinha (alguns já com mecanismos a pilhas), réplicas de automóveis e bonecas –, todos também de fabrico português, de empresas, na sua maioria, já extintas, e cuja história, realça Rogério Fialho, acaba também por ser contada através do “museu”.

“Ainda existem algumas fábricas que produzem, mas é mais para meios didáticos, não é para brincar porque [devido às atuais normas de segurança] acho que já não têm aquela qualidade [necessária]. A não ser a PEPE [considerada a maior produtora industrial de brinquedos em Portugal] que faz uns táxis para vender aos turistas, não existe mais ninguém a fabricar”, frisa o colecionador, sublinhando que, à exceção da Indústria de Plásticos Aliança Farense (IPAF), que funcionou em Faro até finais dos anos Oitenta, e pela qual tem um especial apreço, não só devido “às cores muito bonitas” dos brinquedos em plástico, mas também pela proximidade geográfica, todas as restantes eram do Norte e do Centro, a exemplo da já referida PEPE ou da Coelho de Sousa, uma das tais que foi obrigada a recorrer à indústria de conservas para manter a produção de brinquedos em lata no decorrer da II Guerra Mundial.O acervo de Rogério Fialho reúne, igualmente, peças estrangeiras de diversas épocas e materiais, desde máquinas de costura dos anos Cinquenta ou Sessenta – duas da marca Singer – a bonecas de porcelana, passando por soldadinhos de chumbo – uma vasta coleção adquirida pelo colecionador no Luxemburgo –, super-heróis “dos tempos mais modernos”, locomotivas, nomeadamente, da reconhecida norte-americana Mattel, e alguns jogos da era digital.

 

“É um negócio grande. As coisas triplicaram, quadruplicaram o seu valor” Ao todo serão “milhares” de brinquedos, admite Rogério Fialho. Uns comprados “em leilões on line”, “em feirinhas” e lojas de antiguidades, tanto em Portugal como fora, outros oferecidos. Entre os mais raros, encontram-se um “coelho sorveteiro“, em lata, muito provavelmente dos anos Quarenta, fabricado pela Coelho de Sousa, adquirido pelo colecionador há cerca de uma década – “paguei uns 40 euros, mas é tão raro que já mo quiseram comprar por quase mil, mas eu disse não” –; duas pequenas chávenas de chá também em lata, com a respetiva bandeja, da mesma fábrica, e possivelmente da mesma época, “compradas à peça”; um carrinho de gelados em plástico, que era oferecido como brinde pela marca Rajá – “também dizem que é muito valioso” –; duas bonecas feitas em papelão, uma portuguesa e outra inglesa, que levaram tempo a adquirir – “Andei atrás de bonecas de papelão muitos anos. Era o que faltava na minha coleção. Mas são raras porque as crianças brincavam com elas e lavavam-nas, então estragavam-se”, diz. Outro brinquedo raro, mas este com “grande valor sentimental”, e que assume especial destaque num expositor à entrada do espaço museológico junto aos adereços usados pelo Mágico Roger – uma das personagens mais emblemáticas, e acarinhadas, de Rogério Fialho –, é uma pequena camioneta vermelha e azul, com seis garrafas de “gás mobil”, igual ao primeiro brinquedo que recebeu, “teria uns seis ou sete anos”, e que, “a muito custo”, conseguiu adquirir há pouco mais de dois anos. “Queria muito ter esse brinquedo. Eu era tão magro e pequenino que tirava as garrafas de gás, sentava-me na camioneta e empurravam-se [em Baleizão] pela rua da Laranja abaixo, até que a parti”, lembra, sublinhando que existe, atualmente, “um movimento de pessoas que compram brinquedos como investimento”, o que dificulta, naturalmente, a sua aquisição, sendo que há peças que, pela sua raridade, atingem “valores exorbitantes”. “Não é porque gostam de brinquedos, é para investir. São vendedores profissionais, que sabem o valor das coisas. Compram, e ao fim de cinco ou seis anos vendem. É um negócio grande. As coisas triplicaram, quadruplicaram o seu valor. Por exemplo, coisas que comprei por cinco euros há mais de duas décadas hoje valem 20”.

Para além da exposição, o espaço integra uma área de brincadeiras, uma pequena biblioteca e a recriação de uma loja de brinquedos e de uma livraria/papelaria com “alguns produtos que já não se vendem”, como sebentas antigas, garrafas de pirolito (da bola de vidro que se transformava em berlinde) e ainda de água da “Carasona”, “bacteriologicamente pura”, da zona de Cabeça Gorda.No centro do antigo lavadouro, que manteve os quatro tanques com 10 pedras cada – uma espécie “arqueologia contemporânea”, graceja Rogério Fialho –, ficarão patentes ao público exposições temporárias. A primeira, visitável nos próximos seis meses, é composta “por brinquedos feitos por artesãos”, maioritariamente, da região.

 

“Não é para meu deleite. Faço coleções para mostrar” O gosto de Rogério Fialho pelo colecionismo virá, muito provavelmente, dos tempos da adolescência, quando em 1979, então “com 16, 17 anos”, criou, na primeira sede do Jodicus, na aldeia de Salvada, de onde é natural, um “museu rural”, com “charruas, entre outras alfaias agrícolas e até o manto de Nossa Senhora da Conceição da Salvada”, e que encerrou passado um ano, quando a pessoa que cedeu a casa para servir de sede “a quis de volta”. Quase quatro décadas depois cria, em Beja, o espaço museológico do IPDJ, onde divulga e preserva a “memória dos 50 anos do FAOJ, IPJ e IPDJ”. O Espaço Museológico da Brincadeira é, assim, o seu terceiro “museu”, e não será, muito provavelmente, o último. “Faço coleções de muita coisa. De telemóveis, de máquinas fotográficas, de pacotes de açúcar, de separadores de livros, de presépios. Mas não gosto de as ter fechadas em casa. Não é para meu deleite. Faço coleções para mostrar”, diz, revelando que gostaria de fazer mais dois espaços museológicos, um dedicado às marionetas – “devo ter umas 200” – e “a tudo o que diz respeito ao 25 de Abril”.

Já a paixão pelo teatro vem da infância, reconhece. Teria uns cinco ou seis anos, vivia então em Baleizão, quando começou a construir marionetas e numa cadeira, “com os papéis dos chocolates, porque tinham brilho, fazia os cenários”, que iluminava “com um fox [lanterna]”. E de um género de armário para panelas, acoplado à lareira lá de casa, embelezado com “uma cortina vermelha e branca, de chita”, fazia “espetáculos de circo com animais que apanhava”. “Eu vi uns Robertos [fantoches de luva] na escola. Era tão pequenino, mas ficou-me na memória”, justifica.

O Espaço Museológico da Brincadeira, “que mais do que um museu tradicional é um espaço vivo” – “aqui não se limita a olhar: toca-se, explora-se, cria-se, brinca-se a sério” – e que será inaugurado às 17:00 horas de amanhã, destina-se a todos, “dos três aos 300”, diz Rogério Fialho, adiantando que “muitas pessoas, de mais idade, se irão rever nos brinquedos” expostos e “as crianças vão ver os brinquedos que eram dos avós e dos pais”. “As pessoas vão sentir nostalgia, e acho que também vão ficar surpreendidas, porque ninguém sabia o uso que iria dar ao antigo lavadouro”, reforça.

A Junta de freguesia de Cabeça Gorda, liderada por Lucília Simão, em nota de imprensa, refere que o museu “pretende dar a conhecer, preservar e dinamizar o universo das brincadeiras de outros tempos, promovendo o encontro entre gerações e reforçando a identidade comunitária”. “Este é um projeto que nasce do carinho por aquilo que nos une enquanto comunidade e da vontade de dar uma nova vida a um espaço emblemático, valorizando o saber popular, o brincar e as raízes da nossa infância coletiva”, acrescenta, ainda. O acervo de Rogério Fialho foi cedido por um período de 30 anos, findo o qual, caberá, depois, “aos herdeiros” verificar “se isto está sendo bem utilizado”, revela o colecionador.

O espaço estará aberto às quartas-feiras e no primeiro e terceiro fins de semana de cada mês, sendo que poderá também abrir “sempre que haja excursões”. As visitas serão guiadas por Rogério Fialho, que será ainda responsável pela dinamização mensal de ateliês. “O primeiro será de brinquedos feitos com latas de sardinha”.

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