No ano em que se assinalam seis décadas de funcionamento do Arquivo Distrital de Beja, o “Diário do Alentejo” dá a conhecer o “trabalho que não se vê” por detrás das salas escuras e frias que caracterizam a instituição. Assumindo um caráter de guardião do passado, o organismo revela, cada vez mais, um papel social importante para “garantir o funcionamento da democracia” e da evolução da sociedade.
Texto | Ana Filipa Sousa de Sousa Foto | Ricardo Zambujo
As pastas coloridas e desgastadas dos cartórios, ordenadas alfabeticamente nas estantes da sala de leitura, abrem caminho para o “mundo” de documentos que, uns andares acima, contam a “história do que foi acontecendo [na região] ao longo dos vários séculos”. Dos ofícios dos tribunais aos escritos das eleições, guardados nas escuras e frias salas do Arquivo Distrital de Beja, são um marco da “memória coletiva”, permitindo “posicionarmo-nos em relação aos acontecimentos e personalidades que existiram” e vincar “a nossa cultura [e] identidade”, começa por sublinhar, ao “Diário do Alentejo” (“DA”), a sua diretora, Anita Tinoco.
Com documentação com “mais de 100 anos”, o arquivo, coordenado pela Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, assume um papel de “instituição que guarda a documentação histórica com relevo para o distrito”, assim como de dimensão utilitária “voltada para as necessidades do cidadão”, com “documentação que são prova dos direitos e deveres do Estado e dos próprios cidadãos”.
“Por exemplo, um dos senhores que estava a ser atendido vem procurar, provavelmente, uma certidão que precisa para um processo de regularização de uma herança ou de uma propriedade [e] nós temos também essa importância de garantir o funcionamento da democracia”, admite a responsável.Do “trabalho que não se vê”, a chefe de divisão destaca a organização da documentação, o atendimento ao público, a prestação dos serviços de reprodução, de certificação, de pesquisa e do apoio à sala de leitura.
Nos últimos anos, o trabalho de “microfilmagem” de documentação relacionada com a genealogia, os registos paroquiais de batismo, casamento e óbito, permitiu digitalizar “mais de dois milhões de imagens”, com “170 a 180 mil registos descritivos”, o que, para Anita Tinoco, é uma marca importante.“Aparentemente não está a acontecer nada aqui, este é um sítio calmo, que não tem grande movimento, mas, na realidade, no ano passado, em termos de relatório de atividades, tivemos mais de 700 milhões de imagens visualizadas on line no mundo inteiro”, alude.
Esta “desmaterialização da documentação” é, “sem dúvida, trabalhosa” e segue “um conjunto de regras bastante específicas” quanto à sua organização, preparação, tratamento, identificação, contextualização e descrição.
“Depois, temos uma série de procedimentos relacionados com a metainformação que está associada, porque temos que garantir os requisitos para os documentos serem autênticos, pois não podemos correr o risco de se adulterar uma imagem”, afirma.
O trabalho feito “na sombra” Numa das salas de trabalho uma das funcionárias prepara “o material para o acondicionamento de documentos” para que, “depois, os mesmos sejam devidamente organizados dentro das caixas”. Dali seguirão, conforme explica a diretora, para os arquivos do andar de baixo, onde ficarão guardados e etiquetados para “não se estragarem”.
“Nós, pelo nome, não conseguimos identificar [todos os documentos], então, temos sempre este código e, assim, conseguimos facilmente saber onde os mesmos estão. Por exemplo, um livro no ‘D1’ está no depósito um, na estante 39 e na prateleira 22”, diz, enquanto aponta para um dos documentos. No andar térreo, na sala de leitura, os utilizadores têm ainda à sua disposição uma prateleira de “índices que eram produzidos nos próprios cartórios”, que permitem que “quem precisa de os ver não tenha que estar a ver o livro todo”.
Em simultâneo, os funcionários do arquivo fazem um trabalho de “conservação preventiva” para que alguns documentos tenham a possibilidade de ter uma manutenção “mínima” para não se deteriorarem gravemente.
“No ano passado, a nível central, conseguiram restaurar-se 12 documentos que estavam desfeitos, completamente descurados e que não podiam ir a consulta. Não foram muitos, mas ainda foram uns largos meses de trabalho”, admite Anita Tinoco. Esta intervenção resulta de uma “avaliação do estado de conservação dos documentos”, em que, com base “num semáforo”, se consegue perceber “os documentos que estão em mau estado”. “Avaliamos todos os documentos que mexemos e se for detetado algum que está num [estado] laranja ou vermelho são intervencionados”, explica a diretora.
A importância do papel social do arquivo Uns metros ao lado, numa outra sala, Sofia Silva, técnica do arquivo, insere cuidadosamente no computador “os nascimentos [ocorridos] na freguesia de São Barnabé [no concelho de Almodôvar] entre os anos de 1800 e 1900”. “É preciso muita atenção, porque há pormenores que podem alterar tudo, mas, por vezes, é muito difícil de se perceber a letra de quem escreveu”, assegura.
Com o aumento da imigração no País, mas, sobretudo, na região, a diretora do arquivo distrital admite que nos últimos tempos tem aumentado a procura de serviços para a obtenção de “documentação genealógica com mais de 100 anos”. “Temos pessoas espalhadas pelo mundo inteiro e, então, as gerações seguintes, como querem ter a nacionalidade portuguesa, procuram-nos para terem esses documentos dos familiares que nasceram cá e que emigraram, sobretudo, cidadãos brasileiros”, realça.Este é outro dos papéis que o Arquivo Distrital de Beja tem adquirido nos últimos tempos, que permite testemunhar a evolução das sociedades na região e perpetuar o que de outra forma seria esquecido. Para tal, segundo Anita Tinoco, o organismo está a preparar uma ampliação dos espaços de acervo e uma “duplicação” da capacidade de resposta, uma vez que existem “pedidos de incorporação das conservatórias e tribunais” que seguem a legislação que indica que “ao fim de determinados anos [as pastas] têm de vir para os arquivos”. “Portanto, vamos conseguir aumentar a capacidade em 40 ou 50 por cento [e] estamos a falar num investimento na ordem dos 50 a 60 mil euros”, afirma.
Paralelamente, face às verbas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), está prevista “a desmaterialização de outro milhão de imagens no espaço de três anos”, o que permitirá “mais 10 por cento” de documentos digitalizados. “Estas são tarefas administrativas que não são visíveis, mas que são importantes para cumprir com a nossa missão”, assegura a diretora.
“Não é reconhecida ainda uma relevância social aos arquivos” Numa das salas inferiores das instalações, Sandra Mosca, uma das funcionárias mais antigas do Arquivo Distrital de Beja, ajeita alguns papéis na secretária. De sorriso no rosto, conta ao “DA” que trabalha no organismo há 29 anos e que “é conhecedora das transformações todas” que foram ocorrendo.
“Aqui já não falta mudar nada, só o edifício, porque os procedimentos já mudaram todos. Quando cá cheguei era tudo manual, as aplicações, as entradas e saídas, os pedidos de reposições eram todos em papel [e agora] quase que nem vemos os nossos utilizadores”, graceja.
A diretora concorda. O balanço que Anita Tinoco faz dos últimos 60 anos é “positivo”, precisamente, pelas “transformações brutais” que foram surgindo tanto ao nível logístico, como da ligação para com o arquivo.
“Se, no passado, havia uma abordagem que era dada aos arquivos numa ótica historial, em que nós éramos meros guardiões da documentação e só um público muito especializado é que nos consultava, na última década a lógica passou a ser de abertura à comunidade, de ceder gratuitamente, de disponibilizar conteúdos, desde descrições arquivísticas às representações digitais”, recorda.
A ideia exclusiva de que o organismo serve apenas de “salvaguarda [e] preservação” está a cair em desuso, sendo cada vez mais frequente a assinatura de “parcerias com várias instituições” e a prestação de “apoio técnico de consultoria a entidades que necessitam”.
Exemplo disso é a exposição, em parceria com o Instituto Politécnico de Beja (IPBeja), patente no átrio do Arquivo Distrital de Beja, e que dá a conhecer profissões extintas na região com base em documentos do acervo distrital.
“Esta exposição resulta de um trabalho interno de pesquisa que foi solicitado a uma das colaboradoras, no contexto de pandemia, para a identificação destas profissões. [O intuito] era compreender a função em termos históricos, mas também perceber o contexto social da época e as transformações que foram acontecendo”, explica Anita Tinoco.
Daí, seguiu-se uma análise destas “transformações” à luz da possibilidade do desperecimento da profissão de professor devido ao crescimento da inteligência artificial, assim como a relação entre os diferentes ofícios extintos e obras de arte.
“Esta documentação foi utilizada como recurso didático-pedagógico, mas também como um dispositivo para a promoção do pensamento crítico e do pensamento criativo, porque, através da visualização daquela evidência de que aquela profissão existia e agora já não existe, o que é que poderá também acontecer com esta questão da inteligência artificial?”.
Ainda assim, no ano em que se assinalam as seis décadas de funcionamento do arquivo distrital da região, Anita Tinoco, dirigente da instituição há 11 anos, admite que, “localmente, ainda há um trabalho de abertura até à comunidade” que precisa de ser feito.
“Pelo posicionamento que assumimos não somos uma entidade que habitualmente apareça com grande destaque. Obviamente que entre a comunidade especialista somos reconhecidos e temos utilizadores pelo mundo inteiro, mas assume-se que ainda há um trabalho de fundo a ser feito”, reconhece. Acrescentando de seguida: “Temos trabalhado com um sentido de dever, de missão e de valorizar aquilo que é o nosso património, porque se nós próprios [que trabalhamos no arquivo] não fizermos esse trabalho, a comunidade também não o faz”.
Dia Internacional dos Arquivos Assinalou-se na passada segunda-feira, dia 9, o Dia Internacional dos Arquivos, uma forma de “consciencializar para a sua importância, a sua relevância como fonte de prova e também de investigação”. No distrito de Beja, a efeméride está a ser comemorada com a “Festa dos Arquivos” que uniu, além do arquivo distrital, os arquivos municipais de Aljustrel, Almodôvar, Alvito, Ferreira do Alentejo, Odemira, Mértola, Serpa e Vidigueira, com conferências, mostras, dias abertos e visitas de estudo às instalações. No âmbito dos festejos, continuam patentes as exposições “Profissões em Transformação – um olhar através dos arquivos e da arte” (Arquivo Distrital de Beja, até ao dia 26), “Pergaminhos” (Biblioteca Municipal Luís de Camões, em Alvito, até sábado, dia 14) e “Associações do Concelho de Serpa” (Arquivo Municipal de Serpa, até ao dia 20).