Texto José d’Encarnação, Arqueólogo
E o senhor fechou a conversa garantindo-me:
– Não continuei as obras. Já viu? Paredes com mais de um metro de espessura têm pedras romanas lá dentro, só pode!
E tem razão, sabemo-lo bem. Não foi apenas nas muralhas que se utilizaram as pedras romanas. Ali estavam, à mão de semear, mesmo a pedir: “aproveitem-me!”. Também nas edificações antigas, quando às noções de património e de memória se não atribuía o valor que hoje lhes damos, até porque “pedras com letras” eram… pedras com letras, que o Diabo venha em pessoa descobrir-lhes o significado, que nós nisso não pomos as mãos!...
Algumas dessas pedras, porém, lá conseguiram escapar, o camartelo não as estilhaçou, o pedreiro até achou que vinha mesmo a calhar uma pedra assim, com esse tamanho, nem precisamos de mais. Por vezes, lá um dos ajudantes mais esperto adregou sugerir: “Então, se a gente deixasse as letras à mostra, o que é que vossemecês acham?”. Valeu-nos isso.
Hoje, por isso, como dizia o meu amigo, o melhor é não fazer obras, não vá esse mesmo Diabo tecê-las e saia monumento romano, é o cabo dos trabalhos, lá vêm os arqueólogos e os fiscais, obra embargada, custos dobrados…
Um matacão! Muito terá sido o esforço para conseguir retirar dali e, depois, levar para o museu o bloco que hoje nos ocupa. Mais uma daquelas pedras enormes a pôr sobre a sepultura e… “toma lá, que a terra te seja leve!”. Cínicos!
O certo é que aí temos esse enorme bloco, a querer imitar barril, deixando muito a desejar, por disforme que é. Mas tem letras e isso interessa e delas é que vamos tratar.
Para já, contar um pouco da sua história, como veio na edição de 17 de dezembro de 1892 de “O Bejense” (n.º 1667): “O cipus foi descoberto em escavações a que se está procedendo na fábrica de moagem ‘Beja’. Cobria uma grossa caixa de argamassa, de que se recolheram, no Museu da Câmara, dois fragmentos, e nela estava o esqueleto de uma criança, completo. Infelizmente os trabalhadores e o rapazio quebraram os ossos e espalharam-nos e apenas dois dos da cabeça e outro de um dos braços, e costelas puderam haver-se. Também foram recolhidos no museu da Câmara”.
O gerente da fábrica, Bernardo António dos Santos, fez a oferta, ao museu, desta pedra, que, acrescenta Abel Viana na publicação Museu Regional de Beja – Secção Lapidar (Beja, 1946, pág. 15, n.º 16), “é o mais volumoso desta avultada colecção”, porque, continua, “embora faltando-lhe o soco muito mutilado nos topos, mostra as seguintes dimensões: comp. – 1,m10; larg. – 0,m65; alt. – 0,m60”. Foi-lhe atribuído, no museu, B-61 como número de inventário.
Aliás, no Inventário, “grosso livro, encadernado, de papel almaço, branco, de 35 linhas, de 392 páginas, todas numeradas” (como, noutro local, se lhe refere Abel Viana), elaborado, com data de 1898, por Joaquim António Vargas, se precisa que o local do achamento desta pedra ficava no sítio de Ao Pé de Cruz.
O letreiro
Tempo é, pois, de nos debruçarmos sobre o que diz o letreiro, de que Abel Viana confessa: “No estado em que a pedra se encontra actualmente não me foi ainda possível ler toda a inscrição”.
Nós vamos tentar. Primeiro, à maneira “científica”, mostrando em maiúscula o que se lê e, entre parêntesis, o que cumpre completar. Os traços oblíquos indicam a mudança de linha:
D(is) M(anibus) S(acrum) / L(ucius) CLODIVS BARBARIO / AN(nis) L V(ixit) / H(ic) · S(itus) · E(st) · S(it) · T(ibi) · T(erra) · L(evis) · / L(ucius) · IVL(Ius). HERENNIANVS / FIL(ius) · PATRI · PIISSIMO · F(aciendum) C(uravit)
E agora a tradução do latim para português:
“Consagrado aos deuses Manes. Aqui jaz Lúcio Clódio Barbarião. Viveu cinquenta anos. Que a terra te seja leve. Lúcio Júlio Hereniano, o filho, mandou fazer ao pai, modelo de piedade”.
O defunto pertence à família Clódia, de que outros elementos se registam na epigrafia de Pax Iulia.
Ao seu cognome, Barbarião, tem sido atribuído o significado de “estrangeiro”; apenas se encontra documentado – e escassamente – na zona oriental do Império Romano e na Mauritânia Cesariense, isto é, no norte de África, o que induz a pensar numa provável origem africana dos seus parentes.
Ao filho, porém, foi dado diferente nome de família, o que, não sendo normal, levou já a pensar que o filho terá nascido ao tempo em que o pai ainda era escravo e foi posteriormente libertado por alguém da família Júlia, de quem terá, por conseguinte, recebido o nome Júlio. Esta diferença de nomes poderia apontar para estarmos em presença de um filho ilegítimo, que adoptara, sendo assim, o nome de família da mãe. Torna-se preferível, todavia, atendendo inclusive ao que se conhece da população de Pax Iulia, considerar que existiu aqui uma ação de libertação: deu-se ao servo libertado o nome da família de quem o libertara, na medida em que, oficialmente, dela começava a fazer parte.
Estranho é, também, à primeira vista, o facto de se haver assinalado o achamento, sob este monumento, do esqueleto de uma criança. O mais provável é que o enterramento da criança no mesmo túmulo tenha sido posterior ao de Barbarião. Não é fora do normal, em todos os tempos, a existência de sucessivas tumulações no mesmo espaço. Este é, seguramente, um desses casos.