Diário do Alentejo

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26 de outubro 2024 - 08:00
60 anos passaram desde a instalação da Base Aérea N.º 11 em Beja. Que influências trouxeram os alemães à cidade durante a sua permanência, até 1993? “Diário do Alentejo”/Arquivo

No mês em que se comemoram seis décadas sobre a deliberação de se construir uma base aérea em Beja, consequente de um acordo entre o Estado português e as Forças Armadas da República Federal da Alemanha, vários “atores” dessa decisão revelam ao “Diário do Alentejo” as transformações que esse entendimento luso-alemão operou nas suas vidas e na transformação da cidade que, materialmente, o acolheu.

 

Texto | José Serrano

 

“Foi um dia muito triste”. 16 de dezembro de 1993, Beja, Base Aérea N.º 11 (BA11) – na cerimónia de despedida do destacamento alemão, ao fim de três décadas de permanência no Baixo Alentejo, estiveram presentes, entre outras entidades civis e militares, os ministros da Defesa Nacional e os chefes do Estado Maior da Força Aérea de ambos os países. Os discursos são pautados pelo sublinhar do “bom ambiente” e das excelentes relações sociais e de cooperação entre portugueses e alemães, que prevaleceram ao longo deste período. “Eu estava lá… e senti uma tristeza muito grande, muito grande”. Repete, comovida, ao recordar-se daquele dia, Sebastiana Machado, e de quando começou a trabalhar na BA11, onde permaneceu durante 24 anos.

“Quando acabei o Curso de Formação Feminina da Escola Industrial e Comercial de Beja [hoje Escola Secundária D. Manuel I], fiquei um ano sem arranjar trabalho – dava, em casa, explicações a alunas do 9.º ano. Quando soube que estavam a chamar pessoas para trabalhar na base, em vários tipos de empregos, concorri para telefonista. Pouco tempo depois chamaram-me para uma entrevista e fui aceite. Os entrevistadores eram portugueses e ligavam, sobretudo, à maneira da pessoa ‘estar’. Vim a ter conhecimento, anos mais tarde, que para este procedimento a PIDE questionou a junta de freguesia da minha terra (nasci em Vera Cruz, em Portel) acerca do ‘bom comportamento’ que seria manifestado por mim e pela minha família…”.

Sebastiana Machado começou, então, com 18 anos, a subir para o autocarro, “sempre carregado de gente”, que apanhava, manhã cedo, em vários pontos da cidade, muitos dos portugueses que trabalhavam na base aérea de Beja. Estávamos em 1969 e a recente telefonista da BA11, juntamente com as outras quatro colegas portuguesas, recebiam, por parte de professores alemães, com a ajuda de um tradutor, a necessária formação para o desempenho do cargo – “era uma central telefónica enorme e nós tínhamos linhas diretas para a [República Federal da] Alemanha e para muitos outros países, em vários continentes” – frequentando, logo de início, um curso de telecomunicações, na língua germânica. Dos seus “chefes”, todos eles alemães, Sebastiana Machado elogia-lhes o rigor no trabalho e a educação, “sempre muito respeitadores, não havia dia nenhum que nós chegássemos e não fôssemos cumprimentadas”, acentuando a cordialidade e o “bom ambiente” entre colegas, chefias e subalternos como um dos atrativos de se trabalhar na base, entre outros. Em particular os salários – “em comparação com os ordenados praticados na cidade, numa loja, oficina, ou num escritório, eu ganhava, pelo menos, o dobro”, diz Sebastiana Machado, que para além de telefonista exerceu, ainda, funções de serviço administrativo, pelas quais foi distinguida com vários louvores institucionais, durante a segunda metade do tempo que trabalhou na BA11.

A história desta unidade remete para os anos 50 do seculo XX, em plena “Guerra Fria”, quando, pela saturação do seu espaço aéreo, a República Federal da Alemanha (RFA) sentiu a necessidade de encontrar um outro espaço, reservado ao treino operacional de missões que envolvessem aeronaves, dando-se início ao estudo de uma alternativa fora do país. Depois de várias possibilidades ponderadas, de entre alguns países europeus membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN/NATO), a escolha acabou por recair em Portugal, oficializando-se em 1960, por assinatura entre os ministros da Defesa dos dois países, o “Acordo Base das Facilidades Concedidas por Portugal às Forças Armadas Federais Alemãs”, prevendo a construção de uma base aérea em território português e o direito à sua utilização pelas Forças Armadas da RFA, para atividades de treino operacional e apoio logístico.

De acordo com o artigo histórico “O Acordo Luso-Alemão – 60 Anos Sobre a Assinatura da Convenção que Criou a Base Aérea N.º 11”, assinado por Pedro Ventura, capitão da polícia aérea, os objetivos estratégicos de ambas as nações eram claros. “Se a RFA pretendia obter a utilização de instalações militares e redes de apoio logístico de retaguarda, da maior importância em caso de guerra com a União Soviética, já Portugal procurava modernizar-se militarmente, fosse pela cedência, a título de empréstimo ou mediante compra, em condições favoráveis, de material de guerra diverso (…), fosse pelo fabrico, em instalações nacionais, de material de guerra destinado à RFA, ou pela manutenção e reparação de aviões” deste país.

O documento fazia, sobretudo, referência à “construção de uma base aérea com uma pista de quatro quilómetros de extensão, instalação para duas esquadras de aviões de combate e respetivas áreas de apoio e manutenção (…), instalação de duas esquadras de aeronaves de transporte e capacidade de manutenção das mesmas (…) e, ainda, os indispensáveis edifícios de comando, operacionais, aquartelamento e serviços administrativos”.

Eram ainda contemplados os edifícios de cariz social, assistência sanitária e residenciais, dando estes últimos origem, mais tarde, ao bairro residencial da base aérea, vulgarmente conhecido por “bairro alemão”, capaz de acomodar os militares e civis alemães destacados e as suas famílias, num número que ascenderia a 5000 cidadãos da RFA. Eram ainda definidos os limites percentuais de pessoal nacional e estrangeiro a prestar serviço “nas operações de voo, telecomunicações, meteorologia e demais serviços de aeródromo (no máximo 50 por cento do pessoal destas áreas deveria ser português), bem como os limites percentuais para os serviços de transporte rodoviário, o que deveria ser assegurado, preferencialmente, por pessoal exclusivamente nacional”. Quatro anos mais tarde, em 1964, a BA11, ocupando uma área de cerca de 800 hectares, constitui-se formalmente, pela portaria n.º 20856 de 21 de outubro, data que passou a ser considerada como o Dia da Unidade.

O jornal alemão “Der Spiegel” resumiria, na sua edição de 11 de abril de 1966, com base em indicadores meteorológicos e geográficos, a escolha estratégica de Beja: “No clima ensolarado e sem neblina, os pilotos da força aérea podem aprender a navegar e praticar o voo a baixa altitude sobre áreas pouco povoadas. A Oeste, o Atlântico estende-se sem fronteiras soberanas. A base também tem uma vantagem estratégica. Foi amplamente removida das influências soviéticas. Portugal está fora da faixa de 3000 quilómetros de mísseis de médio alcance da Rússia”.Multimédia0

 

Dietmar Lehmann, vindo da base aérea de Oldenburg, localizada no norte da Alemanha, foi um dos militares destacados para Portugal. “Soube que precisavam de alguém, em Beja, com as minhas funções (sargento na área da logística). Concorri. Ganhava-se um pouco mais, por se estar fora da Alemanha, eu era solteiro e esta parecia-me ser uma boa aventura e uma boa forma de conhecer outro país”. Chegado a Beja, dia 12 de março de 1972, com um contrato por três anos, a primeira coisa que o entusiasmou no Alentejo foi o sol – “saí da Alemanha debaixo de imensa chuva e com muito frio. Chego aqui e estão mais de 20 graus e um solinho maravilhoso. Isso foi logo bom, gostei muito disso”. Disso – do “tempo” –, e da camaradagem que encontrou entre os seus pares, todos eles militares destacados para a recente criada base aérea portuguesa. E apreciou Beja, a fazer-lhe lembrar a sua cidade natal, “pequena e bonita”, que calcorreava, em grupo, praticamente todos os fins de tarde, observando-lhe, de preferência sentado a uma mesa do Luiz da Rocha, “a energia que se sentia nas ruas” e o movimento das suas gentes, portuguesas e alemãs. E foi fazendo amigos portugueses: “um dos meus primeiros amigos de cá era filho do Travassos”, famoso futebolista do Sporting e da seleção portuguesa, “que me deu a conhecer a família dele, os hábitos locais e Lisboa”. Passear por Portugal era, aliás, nos dias de folga, a principal atividade do seu grupo. “Corríamos o País todo, de norte a sul. O Porto, o rio Douro, Aveiro, Nazaré, com muitos fins de semana passados no Algarve e na costa alentejana – que caldeirada maravilhosa se comia em Sines. Era uma vida boa”.

Essa aprazível existência, presente ao longo dos 13 anos que trabalhou na BA11 como motorista, é também, sublinhada por João Cruz. “Eu estava numa conhecida empresa alimentar de Beja – ia a Lisboa levar ovelhas, vacas e farinhas –, quando uns conterrâneos meus [Santa Clara de Louredo, Beja], bombeiros na base, me disseram que estavam abertas três vagas para lá se trabalhar. Fui entrevistado (ali no ‘bairro alemão’) e admitido, de imediato, para a secção dos transportes, que empregava, fazendo contas comigo, 10 motoristas portugueses. Já lá dentro tirei a carta de pesados específica para transporte de passageiros e tinha aulas de alemão uma vez por semana –”, recorda.

Dentro das suas funções profissionais, João Cruz, começou a exercer, a partir de 1980, a serviço da BA11, três trabalhos distintos. O serviço de táxi, que consistia em ir levar civis e militares, de umas secções da base para outras, o transporte de material militar desde a Base Aérea do Montijo e de Tróia até Beja – “chegavam a ser colunas de 10 camiões, escoltados pela guarda e pela força aérea”, e um serviço de cariz mais lúdico, transportando pessoal alemão da base, e as suas famílias, em passeios de lazer. “Durante a semana, quase todos os finais de tarde, transportava um grupo até ao ‘Tonico da Cuba’ [restaurante “O Lucas”].

Quando lá chegávamos, aí às oito horas, já as sangrias, as febras grelhadas e as travessas cheias de gambas grelhadas, estavam em cima da mesa. Eram grandes jantaradas, muito animadas. Eles ficavam na sala e a gente ia para o balcão, comer – eles pagavam tudo – e ver a televisão, até se eles lembrarem de querer ir embora. Também os cheguei a levar, algumas vezes, à barragem do Roxo – havia lá um homenzinho que tinha um barracão onde fazia umas codornizes fritas de que eles gostavam muito. E aos fins de semana ia levá-los a Lisboa, a Albufeira, a muitos lados, e eu ficava alojado, às suas ordens, no mesmo hotel que eles. Estava sempre desejoso de ir fazer esse tipo de serviços, para lá do horário regular, porque significa horas extraordinárias. Que eram bem pagas mas bem pagas. Eu chegava a tirar de ordenado 200 contos por mês, quando a média em Beja, seriam uns 50, se calhar nem tanto. Que vida tão boa que aquilo era, praticamente dentro de casa, as chefias amáveis, sempre de bom trato. Não há e nunca vai haver uma empresa como aquela…”, acentua João Cruz.

Um dos amigos portugueses, e bejense, que perdura na vida do alemão Dietmar Lehmann, é João Espinho. Quadro da Força Aérea Portuguesa, desde 1982, exercendo as funções de técnico profissional tradutor do Gabinete do Comando da Base Aérea N.º 11 “deve” a sua apetência para a aprendizagem da língua germânica e o consequente ingresso, primeiro, na Faculdade de Letras e, depois, no Goethe-Institut, de Lisboa, à vinda de população alemã para Beja. “Quando os alemães começaram a chegar, na segunda metade da década de 60, o ‘bairro’ ainda estava em construção e alguns alemães foram alojados em casas de famílias portuguesas que, com possibilidades, tinham abertura para esse acolhimento ‘internacional’. Em casa dos meus tios ficou um militar, sargento, e a sua mulher. Em casa dos meus pais ficou o primeiro médico da base, o doutor Tietz. Eu era miúdo e o convívio diário com a língua alemã, proporcionou-me a vontade de a aprender – ‘guten morgen’, ‘guten tag’, os termos usuais do dia-a-dia e por aí adiante”. Uns anos depois, em 1973, um casal alemão convidou-o para com eles passar férias na Alemanha. “Tive lá mais de um mês e a estadia consolidou o que eu já tinha aprendido. Tinha 15 anos e descodificava já, praticamente, todas as conversas – comecei a percebê-los quando entre eles, em alemão, falavam sobre a guerra colonial portuguesa e a censura que existia no País”. Curiosamente, João Espinho, poucos dias depois de ter ouvido, dita em alemão, a palavra “censura”, entendeu definitivamente o conceito a ela associado, pois, terminadas as férias em Kaufbeuren e na zona de Munique, acabado de chegar ao aeroporto de Faro foi-lhe apreendida um número da “Stern”, popular revista alemã, que na capa, como era usual na publicação, exibia uma rapariga posando em bikini, afrontando os cânones púdicos do regime político ditatorial português – “para a PIDE aquilo era demais”.

Ainda que não tenha sido censurado o pedido de transferência do militar, da Força Aérea Alemã, Nicola Di Nunzio, da base aérea onde estava colocado – Lechfeld, no estado federal de Baviera – a decisão da colocação, por parte das chefias militares, revelou-se-lhe surpreendente. O especialista em fotografia militar, que registava a partir de aviões e de helicópteros de determinadas zonas para posterior análise, tinha sido colocado na BA11, destino que não figurava nas suas primeiras opções. “Eu queria ir-me embora de Lechfeld, onde chegávamos a fazer ronda noturna com quase 30 graus negativos, e concorri para ser colocado no estrangeiro, pondo em primeiro lugar a opção de uma base italiana. Era para a Itália que estava convencido que ia ser transferido”. Apanhado de surpresa pela decisão tomada, a desilusão foi grande pois a única coisa que sabia sobre Beja era que o bairro onde estavam instalados os militares alemães tinha sido, recentemente, na madrugada de 1 de fevereiro de 1985, alvo de um atentado bombista reivindicado palas FP-25, que destruiu 18 viaturas de militares e civis, germânicos e portugueses. Contudo, entre ficar na Alemanha, com as condições que conhecia, “o frio era uma loucura”, e partir rumo ao desconhecido, prevaleceu a segunda opção. Foi assim que se fez à estrada, tentando conciliar a apresentação na base portuguesa, marcada para 1 de outubro desse ano, com o passeio de cerca de três mil quilómetros no seu desportivo automóvel particular, cuja particularidade residia na ausência “da marcha atrás”, por avaria da “aranha” italiana. “Ganhava-se muito mais se estivéssemos em funções num outro país, fora da Alemanha, mas a principal razão pela qual pedi transferência tinha a ver com o frio e com a falta de empatia que o meu comandante demonstrava para comigo. Por outro lado, queria-me divertir, partir à aventura”. Entrando em Portugal pela fronteira Badajoz/Elvas a paisagem, as primeiras localidades, em território português que se foram desenrolando à sua frente depressa o cativaram. “Passando todo aquele vazio espanhol, de repente chego a Borba, Vila Viçosa, Évora… Tudo verde, bonito e limpo. Casas branquinhas. Fiquei encantado. Entrei em Beja e deparei-me com uma cidade pequenina, muito arrumada, com muitas pessoas na rua. Andei pelas portas de Mértola e pela zona do museu e admirei-me com a arquitetura. Gostei muito da cidade”.A permanência assídua dos alemães na cidade veio, na opinião de João Espinho, beneficiá-la, oferecendo-lhe uma revolução económica e cultural, “um certo desenvolvimento que estagnou”, após a sua saída. “A sociedade da cidade de Beja estava muito fechada e com pouca dedicação à abertura de novos horizontes. De repente começa a conviver com a sociedade alemã, que frequenta, assiduamente, as lojas, os restaurantes, o mercado municipal, a piscina, as ruas da urbe. E isto traduziu-se numa revitalização. Beja deu um salto durante os anos de permanência, aqui, dos alemães, e transformou-se numa cidade mais animada”, socialmente mais interativa e cosmopolita.

A opinião é corroborada por Sebastiana Machado, que considera a presença dos alemães e dos seus hábitos menos descomplexados o início de uma abertura de mentalidade por parte da sociedade bejense. “As alemãs trouxeram a minissaia, que nos anos 60 era mesmo mini, e em Beja, logo quando chegaram, não se podia ver uma rapariga com uma saia muito curta, que tudo isso era reparado e criticado. E iam ao café e bebiam uma cerveja e fumavam, que nesse tempo era moderno ter um cigarro estrangeiro na mão. Grande parte dos bejenses ficava chocada e criticavam. Mas depois tornou-se cada vez mais comum e as pessoas, aos poucos, deixaram de criticar”. “De criticar tanto”, diz Maria Teresa, bejense casada com Dietmar Lehmann, que o hábito da má-língua nunca se terá perdido por completo. “Quando se via um rapaz alemão a passear ou a namorar uma rapariga portuguesa apelidavam-na, muitas vezes de ‘maluca’. A mim nunca mo disseram diretamente, mas sei que isso se falava. Pois bem, eu e o meu marido estamos casados há 51 anos”, observa. “Conheci a Maria Teresa numa Feira de Agosto, em Beja no dia do meu 24.º aniversário. Estávamos a jantar na barraca dos frangos assados e uma amiga comum, portuguesa, que tinha casado um ano antes com um colega meu, alemão, apresentou-nos e andámos de carrocel. Um ano mais tarde casámos e nunca mais nos separámos”, valoriza Dietmar Lehmann. Para além de aqui ter “encontrado o amor”, o antigo sargento alemão revela que a vinda para Beja lhe proporcionou descobrir uma maneira de estar perante a vida, que até então desconhecia. “As pessoas eram mais abertas. Perguntavam-me ‘como tem passado?’, cumprimentavam-me, ‘bom dia’, ‘boa tarde...’. Na Alemanha era diferente, faltava-nos essa maneira de ser, esse relacionamento pessoal mais fácil, simples”. A “maneira de ser” ficou-lhe marcada e adotou-a ao longo da sua vida, ao ponto de se intitular “alemão alentejano”, epíteto pelo qual os amigos portugueses, “e tenho muitos”, o tratam. “Eu agradeço, pois é assim que eu me sinto, nem a boina eu dispenso, há algo de alentejano em mim. Porque, aqui, eu fui muito bem recebido”, enfatiza.Também Nicola Di Nunzio, casado com uma portuguesa e a viver em Beja, “o meu carro sem marcha atrás era um pronúncio”, recordando “a vida à grande” que Portugal proporcionava aos alemães deslocados – “ganhávamos bem e para nós tudo era barato, não pagávamos casa, o clima era fantástico, os restaurantes eram magníficos, com comida alentejana genuína, passeávamos facilmente pelo país, tudo era ótimo” –, enfatiza o principal sentimento que aqui encontrou. “De liberdade. E não estou a falar da liberdade económica, de poder ter um carro, de poder jantar todas as noites fora. Falo de uma liberdade mais profunda, que nos era transmitida no dia-a-dia, de nos podermos expressar e de poder ‘respirar’ livremente, que 10 anos depois do 25 de Abril ainda, aqui, se sentia nos portugueses, Na Alemanha predominavam os cartazes com a palavra ‘verboten’ [proibido]. ‘Proibido pisar a relva’, ‘proibido jogar à bola’, ‘proibido fazer barulho’, proibido, proibido… Cá não havia essas barreiras. Talvez seja difícil explicar isto a alguém que sempre aqui viveu mas eu senti profundamente, nessa altura, esses ventos de liberdade que a Revolução dos Cravos trouxe a este País. E foi espetacular”.

Sobre nós, portugueses, a opinião generalizada, diz João Espinho, era francamente positiva: “Foi sempre isso que ouvi. Podiam, às vezes, dizer que uma rua estava mais suja que outra, mas nunca lhe ouvi grandes lamentos sobre a cidade de Beja. Tanto que houve uns que ficaram e outros que regressam com regularidade”.

As condições de trabalho dadas a quem vinha de fora, a agradabilidade do país, e em particular de Beja e das suas pessoas, percecionada pelos alemães ter-se-ia, inevitavelmente, espelhado na cidade. “Os alemães vinham normalmente com funções por três ou quatro anos, mas muitas vezes assinavam novos contratos, quando os primeiros chegavam ao fim. Muitos vinham porque não tinham uma vida muito avantajada na Alemanha, um país saído de uma guerra… Conheci alguns, com algumas dificuldades, que vieram para Beja para se conseguirem organizar.

Aqui existia o sonho de ter uma vida melhor, de ganhar mais dinheiro, de amealhar, de comprarem casa na Alemanha quando partissem. Para além dessas condições privilegiadas que cá tinham eu acho que eles gostavam muito de cá estar. Acho, até, que ficaram mais afáveis, mais abertos à conversa, pelo convívio que tinham connosco. E isso refletia-se em Beja, que enquanto eles cá estiveram era uma cidade muito mais alegre do que é hoje, com muito movimento de comércio, de pessoas, com muitas mães a empurrarem carrinhos de bebé…Havia cor”.

Contudo, a não renovação do Acordo Luso-Alemão sobre a utilização da Base Aérea N.º 11 situada nas proximidades da cidade de Beja, determinou, a 16 de dezembro de 1993, o fim da atividade da Força Aérea Alemã naquela unidade. E o princípio do fim, para muitos de uma mais aprazível realidade.“A cidade esvaziou-se, esmoreceu. E houve muita gente que ficou mal. Portugueses que saíram da base, muitos deles, com 50 anos e mais. E quem é que os quis? Ninguém os queria, as pessoas tinham vidas boas, e de repente… Houve também essa parte que não foi salvaguardada. Eu tinha 38 anos quando saí, fiquei mesmo até ao fim, até junho de 1994, e consegui refazer a minha vida. Fui trabalhar para uma empresa de transportes, em Almodôvar. Fiquei a ganhar menos de metade do que ganhava na base. Mas continuei a ter trabalho, até à reforma. Mas houve aí quem ficasse mal. Mal mas mal. Quem nunca se tivesse conseguido reerguer”, sublinha João Cruz.

No dia da cerimónia de despedida do destacamento alemão, um ministro – “tenho pena de não me recordar do nome” – falou com Sebastiana Machado. “Disse-me para não me preocupar, que estava tudo previsto e ‘vocês não vão ficar sem emprego’. Mas não cumpriu o que me disse e isso, para mim, foi uma mágoa. Muita gente foi para o desemprego. Como eu, que estive desempregada durante três anos. Depois fiquei como dona de casa e a apoiar o meu marido, no café e na oficina que ele tinha…Por isso, e como ainda sinto a saudade desses tempos em que os alemães cá estiveram, esse, para mim, foi um dia muito triste”.

 

 

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Bejatreffen Beja acolhe, hoje e amanhã, dias 25 e 26, o Bejatreffen, evento comemorativo dos 60 anos da BA11, que receberá, em convívio, antigos militares e funcionários civis, alemães e portugueses, que prestaram serviço na respetiva unidade. De acordo com a organização, o encontro será um momento “para recordar as diversas experiências”, aquando da presença da comunidade alemã na cidade.

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