A Cooperativa para a Educação, Reabilitação e Capacitação para a Inclusão (Cercicoa) assinala, neste mês, 45 anos de funcionamento. Ao “Diário do Alentejo”, o presidente da instituição, António Matias, fez um balanço das últimas décadas e perspetivou o futuro da instituição ao nível financeiro, demográfico e utilitário, daquela que é a “casa” e a “família” de muitos clientes.
Texto | Ana Filipa Sousa de SousaFoto | Ricardo Zambujo
As pequenas portas do grande edifício da Cooperativa para a Educação, Reabilitação e Capacitação para a Inclusão (Cercicoa), em Almodôvar, há muito que se abriram para “responder às necessidades das pessoas com deficiência, incapacidade ou doença mental [e] das [suas] famílias”. Numa das salas lúdicas junto à receção meia dúzia de clientes exploram criativamente alguns desenhos, colagens e novelos de lã. O silêncio não paira no ar.
Do lado de fora, Daniela Silva, cliente da Cercicoa há alguns anos, espera pelo “Diário do Alentejo” (“DA”) com um sorriso. “Quando é que isto sai?”, pergunta apressadamente.
A jovem de 30 anos, que atualmente se encontra numa das residências de autonomização e inclusão (RAI) da instituição, chegou à Cercicoa “descontrolada”, com alguns “negócios com computadores e telemóveis”, fugas de táxi e uma história de vida “um bocadinho difícil”. Ao “DA” conta que o período de adaptação foi “muito complicado”, mas que a pandemia da covid-19 e a permanência na instituição a fizeram mudar “completamente”.
“Os técnicos e todos, em geral, têm-me ajudado bastante, [principalmente] com a minha autoestima. Às vezes tenho as minhas crises de choro, [mas] isto é uma casa. É a minha segunda casa ou a primeira, não sei. É uma família”, garante.
Em 1979, data de fundação da entidade, o propósito assumido pela Cercicoa era o de ser uma escola de ensino especial vocacionada para crianças e jovens com necessidades educativas especiais de limitação à atividade e à participação, porém, depressa surgiu a urgência de se criarem “novas soluções adequadas às diferentes etapas de desenvolvimento dos clientes”. A resposta social onde Daniela Silva está inserida, criada em 2012, foi uma dessas adaptações.
“Neste momento temos 15 [valências] e costumamos dizer que trabalhamos dos zero aos 100. Temos uma equipa de intervenção precoce que trabalha ainda com grávidas e com crianças até aos seis anos e depois os lares residenciais não têm limite de idade, [assim como] os centros de atividades e capacitação para a inclusão (CACI) e os centros de apoio à vida independente (CAVI)”, explica o presidente da Cercicoa, António Matias.
Para a entidade, o principal objetivo deste tipo de intervenções passa por desenvolver nos clientes “o gosto por aprender”, capacitando-os para “realizar as suas tarefas” de forma autónoma e responsável, a fim de “ultrapassar as [suas] dificuldades [e] explorando ao máximo os seus talentos, aptidões e relações”.
No ano em que se assinalam 45 anos desde o início do seu funcionamento, para António Matias, o balanço do trabalho da instituição é “bastante positivo”. A criação de “novas respostas”, em especial, na última década, é um sinal de que “a organização está atenta às necessidades da comunidade e vai criando respostas para que possa, de alguma forma, minimizar o impacto que as deficiências ou doenças mentais têm na vida das pessoas”.
“Temos crescido, mas adaptando as respostas àquilo que são as necessidades dos nossos clientes e das listas que temos. Nós tivemos a escolaridade, que depois terminou, mas estas crianças na altura já precisavam de outro tipo de resposta, não podiam ficar sem nada. E foi assim que fomos crescendo”, relembra Ana Filipa Guerreiro, diretora do CACI.
Atualmente, a Cercicoa conta com seis instalações de apoio aos serviços – Lar D. Dinis, em Ourique, centro de apoio técnico administrativo (CATA), em Almodôvar, sede, também em Almodôvar, RAI, em Almodôvar e Castro Verde, CACI, em Grandaços (Ourique) – e 110 trabalhadores, apoiando anualmente entre 700 e 800 clientes.
A mudança do perfil do cliente Além das transformações ao nível dos edifícios, as últimas décadas trouxeram também uma mudança no paradigma de quem procura a instituição. Se anteriormente os clientes da Cercicoa tinham, maioritariamente, “deficiências mais graves” e “mais profundas”, em que a solução era a “institucionalização”, hoje em dia há “diferentes pessoas a pedir auxílio”.
Em termos de perfil, nos últimos anos têm chegado à instituição pessoas “acima dos 40 anos”, “fisicamente autónomas”, mas sem determinado tipo de “capacidades” e, por isso, “muito dependentes” e cujo “agregado familiar se alterou”.
“Temos este padrão de pessoas acima dos 40 anos e cujos pais já têm uma idade avançada e que nos chegam muitas vezes aqui em situação de desespero, porque o equilíbrio do agregado alterou-se e, de repente, estão com esse problema”, realça António Matias.
Ainda assim, ao nível da intervenção precoce, contrariamente ao que seria de esperar face ao número reduzido de crianças no território, há “cada vez mais pedidos”. Para o presidente, a justificação para este fenómeno está relacionada com a maior sinalização por parte dos serviços médicos para este tipo de problemáticas, assim como com a procura destas respostas por parte da comunidade migrante.
Lurdes Costa, monitora do CACI, e Helena Louçã, responsável pelo serviço de lavandaria, têm acompanhado de perto este vai e vem de clientes. Estão na instituição há 45 e 19 anos, respetivamente, e têm visto de perto o crescimento da Cercicoa.
“Têm sido muitas as diferenças. Quando eu cheguei cá só havia um lar residencial e eu estava quase sempre sozinha [na lavandaria], agora tenho uma rapariga comigo, porque os clientes são mais e a roupa também é mais”, esclarece Helena Louçã.
Com alguma timidez à mistura, contam ao “DA” que são inúmeras as histórias que carregam consigo das últimas décadas e que, por isso, não conseguem destacar apenas uma.
“Isto é uma vida, realmente. Neste momento não temos clientes que estejam cá desde o início, mas temos já muitos que estão cá desde o início de algumas respostas, [porque] eram novinhos quando vieram. É [um trabalho] gratificante, mas cansativo. Chega a um ponto em que é muito difícil para a cabeça, mas gosto e estou cá”, revela Lurdes Costa. E acrescenta: “A Cercicoa tem feito um trabalho bom. Ultimamente tem criado mais oportunidades, [como] as residências, que é bom para a comunidade do distrito e [para a criação] de empregos”.
A LISTA DE ESPERA E AS DIFICULDADES FINANCEIRAS Pelos corredores da instituição as funcionárias apressam-se a deixar a limpeza e a higienização concluídas antes da hora de almoço. Os baldes de água e as esfregonas já percorreram a maioria dos quartos dos clientes e o cheiro a comida começa a espalhar-se pelo ar. A sala lúdica, que, anteriormente, se destacava por entre o silêncio dos restantes espaços, ficou agora vazia e escura.
Sentado num dos sofás, António Matias continua a percorrer a história da instituição. A descentralização da Cercicoa para os concelhos de Aljustrel, Castro Verde, Ferreira do Alentejo, Mértola, Ourique e Odemira permitiu alcançar novas comunidades e “aliviar um pouco as listas de espera”, todavia, não por muito tempo.
“Nos últimos 10 anos estava previsto, em plano estratégico, a descentralização de serviços, porque estávamos instalados em Almodôvar e a concentrar muito as respostas numa pequena zona urbana de um pequeno concelho e estávamos muito limitados. [Isto] representou objetivamente um aumento do número de pessoas que conseguimos apoiar e uma redução da lista de espera, [mas] que, neste momento, já está sobrecarregada outra vez”, adianta.
Atualmente, segundo revela, as listas de espera têm aumentado significativamente, tendo, por exemplo, “perto de 100 pessoas” a aguardar uma vaga para um dos lares residenciais. “Nos últimos dois anos, a nossa lista de espera duplicou, e é um dado preocupante num período em que a União Europeia não está a financiar a criação de lares residenciais, [porque] estamos num processo de desinstitucionalização. Num país como o nosso isto é grave, e, depois, estamos a falar de pessoas com deficiência que têm de esperar...”, garante.
Neste ponto, Ana Filipa Guerreiro, diretora do CACI, admite que é urgente “ter mais respostas, ter mais centros de atividades e capacitação para a inclusão e lares residenciais” e que esta procura também se deve ao “serviço de qualidade diferenciado” que tem sido prestado ao longo das últimas quatro décadas. “Nós conseguimos dar uma resposta muito específica às pessoas, [porque] tentamos ir ao encontro daquilo que é a sua procura no momento”, afirma.
Aliado às elevadas listas de espera está ainda a pouca atratividade do setor social, em que os baixos ordenados e a rotatividade de horários não são um incentivo para os trabalhadores. “É pena que o terceiro setor seja tão mal pago, tão pouco reconhecido e valorizado. E, de facto, esse é um dos motivos pelos quais o setor social não atrai mais pessoal. Por exemplo, os psicólogos fazem o mesmo trabalho aqui e nas escolas e têm salários completamente diferentes. Não é justo”, revela Diana Braz, psicóloga da instituição.
Ainda assim, para o presidente da Cercicoa são as “óbvias dificuldades financeiras” o calcanhar de Aquiles da entidade. À semelhança de outras instituições, a “tempestade perfeita” originada pela covid-19, que culminou no “boom da inflação” e na subida dos preços, assim como o aumento do salário mínimo nacional, deixou “todo o setor afetado”.
“Durante a pandemia o setor social foi considerado um dos serviços essenciais, foi quem deu o corpo às balas e quem aguentou firmemente o trabalho, mas, passados dois anos, já voltámos um bocadinho ao esquecimento. No geral, mas, sobretudo, no interior do País, o setor social deveria ter uma atenção especial e alguma discriminação positiva para garantir, pelo menos, a sua existência e saúde financeira”, defende António Matias.
Um olhar cauteloso para o futuro De volta à pequena sala junto à receção, e quase a terminar a visita, é Jacinta Silva quem espera, desta vez, o “DA”. De forma serena senta-se numa das cadeiras e aguarda que a questionem. A colega de RAI, Daniela Silva, observa-a com o mesmo sorriso de antes. “Agora tenho um contrato lá em Grandaços [no centro de atividades ocupacionais de Ourique – CAO Grandaços], em que entro às nove e saio às quatro. Tenho o tempo preenchido e essa experiência de estar com os colegas”, explica a cliente de 64 anos.
Jacinta Silva chegou à Cercicoa há 10 anos. Conta que a oportunidade surgiu por “convite” do serviço de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba), onde era seguida. Diz que não teve “uma família muito fácil” e que quando os pais faleceram ficou sozinha.“Perguntaram-me se gostaria de vir viver para aqui e eu não pensei duas vezes e disse logo que sim, porque já conhecia as instalações. [Agora] aqui é a minha família. Nós sabemos que não são a nossa família de sangue, mas são a nossa família de coração, [porque] é quem cuida de nós, quem nos apoia [e] quem nos dá o carinho que não temos”, avança.
Considerando o trabalho efetuado no terreno e o impacto que o mesmo tem nos clientes, o presidente da Cercicoa admite ter os pés bem assentes na terra em relação ao futuro. Embora sinta a necessidade de “consolidar o processo de descentralização” em “velocidade cruzeiro”, de momento a instituição não pode sonhar com “projetos ao nível da construção”.
“Temos de estabilizar o nosso funcionamento em termos de território. Agora temos de ter a capacidade de manter os nossos edifícios, renovar as frotas e garantir que as estruturas que estão em funcionamento continuam a trabalhar com os níveis de qualidade que nos são exigidos. E é nisto que não podemos baixar a guarda”, reforça António Matias.
Ao levantar-se da cadeira, e satisfeita pelos cinco minutos de conversa, Jacinta Silva responde a uma última questão. Com o olhar calmo e azul que a caracteriza, contrário a toda a sua história, confidencia: “Aqui [aprendi] a ser amada”.
Cercicoa não está “confortável”para avançar com larem Ferreira do AlentejoO presidente da Cercicoa, António Matias, admite ao “Diário do Alentejo” que “os muitos problemas de natureza financeira” não permitem avançar “com o lar residencial em Ferreira do Alentejo”. Apesar de o projeto se encontrar “aprovado”, a obra ainda não se iniciou. “Neste momento, não estamos confortáveis do ponto de vista financeiro para arriscarmos numa obra dessa natureza, [ou seja] uma obra que custa mais de um milhão de euros, porque o mercado não está estável e nós estamos num período bélico”, garante.