A associação, sem fins lucrativos, Just a Change, que reconstrói casas de pessoas carenciadas em Portugal, tem estado presente, à semelhança dos dois anos anteriores, no concelho de Odemira, com 35 voluntários a trabalhar, em articulação com a câmara municipal, na reabilitação de quatro imóveis, em tantas outras freguesias do concelho.
Texto e fotos | José Serrano
Agosto. Na estrada que serpenteia pelo caminho, o estio entra pelo vidro aberto do automóvel, ainda que a proximidade à costa alentejana permita, ali, a existência de uma branda fresca aragem, com odor a mar, reconfortante para quem vem de Beja, onde a ventilação natural da atual estação é, geralmente, mais rara.
Junto à Aldeia da Bemposta, localizada a pouco mais de um par de quilómetros da vila de Odemira, do lado esquerdo da estrada, perto do alcatrão da Nacional 263, é bem percetível, para quem por ali passa, uma casa térrea em obras. Os capacetes brancos dos trabalhadores a assomarem-se por entre os buracos do telhado. Junto à entrada da casa sem porta, a clássica e barulhenta betoneira a girar na função. Um vai e vem de pessoas em labores de obras. À primeira vista a intervenção parece uma mais, igual a tantas outras. Mas não é. Faz, esta, parte de um programa de voluntariado de reabilitação de imóveis, proporcionado pela Just a Change, associação sem fins lucrativos que reconstrói casas de pessoas carenciadas em Portugal, mobilizando, para tal, voluntários portugueses e internacionais. Assim, neste ano, um grupo de 35 jovens, divididos em vários grupos de trabalho, propôs-se reabilitar, numa iniciativa que contou com o apoio do município – que contribuiu financeiramente com 28 mil euros –, quatro casas no concelho de Odemira, nas freguesias de Longueira/Almograve, São Luís, São Salvador e Santa Maria e São Teotónio, promovendo reparações, pinturas e a melhoria geral dos espaços. As habitações selecionadas resultaram de sinalizações por parte de várias entidades com intervenção social no território, referentes a agregados familiares em situações económicas desfavorecidas.
Maria Coelho, lisboeta de 24 anos, voluntária e diretora-adjunta do programa no concelho, com licenciatura em Psicologia e a frequentar o doutoramento em Neuropsicologia, elucida-nos, um pouco mais, acerca da iniciativa, que neste ano terá procedido, na região, à construção, “de raiz”, de casas de banho, cozinhas e telhados nas moradias intervencionadas. “A Just a Change tem, ao longo do ano, vários programas, com o objetivo principal de tentar combater a pobreza habitacional que se vive em Portugal. Este é o programa de verão, intensivo de duas semanas, que designamos por ‘Camp In’, maioritariamente, para alunos universitários, que está presente, nesta altura, em vários concelhos do País. Aqui, em Odemira, estamos a atuar pelo terceiro verão consecutivo, em casas cujos beneficiários vivem, [ou viveram, antes da reabilitação], em situações muito difíceis, sem as necessidades básicas a serem cumpridas, em casas que, muitas vezes, nunca tiveram canalização, nem eletricidade. Infelizmente, é uma condição que existe muito em Portugal”, sublinha.
Com exceção de domingo, dia de folga, os voluntários presentes no território, alojados na Escola Básica de São Teotónio, “pegam ao trabalho” às 09:00 horas e saem às 18:00, trabalhando em equipa sob a supervisão de um coordenador responsável – “também voluntário, mas já com alguma experiência de campo” – e de um técnico profissional que guia a obra e ensina os vários procedimentos necessários a serem executados, uma vez que a maior parte dos voluntários nunca, anteriormente, teve contacto com a realidade da “arte” de pedreiro.
Mas, afinal, o que leva estes jovens a trocarem, espontaneamente, a areia da praia pela das obras, os chinelos pelas botas de biqueira de aço? Maria Coelho, cujas funções, entre outras, passam por um trabalho logístico diário, em contacto direto com a câmara municipal, relativo ao fornecimento de materiais, a orçamentos, à provisão de refeições, considera: “É, de facto, uma regalia poder ter acesso à educação, a um teto, a refeições à mesa. Ao reconhecermos que existem outras realidades, acho que não nos devemos limitar à nossa bolha de privilégio, mas, sim, ajudar os mais vulneráveis, da forma que conseguirmos”. Esta linha de raciocínio altruísta é, de acordo com os discursos de outros jovens presentes na reabilitação da casa junto à Aldeia da Bemposta (na freguesia de São Salvador e Santa Maria), a base do trabalho voluntarioso “nas obras”.
Ana Lúcia, de 23 anos, natural de Baleizão, Beja, licenciada em Sociologia e a frequentar um mestrado em Estudos Internacionais, cuja primeira experiência na Just a Change ocorreu na região de Lisboa, em maio deste ano, revela que a principal motivação da sua presença na região, de forma diferente da que lhe tem sido comum – “em veraneio” –, é, precisamente, poder aprofundar o conhecimento de uma realidade que não é, “de todo”, a sua. Assim, valoriza sentir-se feliz por ter “agarrado”, uma vez mais, “a oportunidade” de “ajudar o próximo” de forma prática. “Este trabalho é diferente de enviar dinheiro, porque numa dádiva não chegamos a perceber bem o que é que realmente, por essa mesma dádiva, acontece. Estar aqui a pôr, literalmente, ‘as mãos na massa’, ajudando e, simultaneamente, aprendendo uma skill nova, um ofício que só se pode aprender praticando, é uma outra coisa”. O conjunto de tarefas apreendido tem-lhe permitido aceder “a uma muito melhor perceção”, in loco, sobre as necessidades imprescindíveis para o correto funcionamento de uma casa – canalizações, telhados, massas… “Esta não é uma tarefa fácil. Da próxima vez que me disserem ‘tiraste Sociologia, prepara-te para ires trabalhar para as obras’, vou considerar isso como um elogio”. Ao mesmo tempo, Ana Lúcia transmite a relevância da confraternização, da troca de ideias que tem ocorrido, relativas à reabilitação do imóvel, com o beneficiário desta ajuda. “Alguém que não tem água canalizada, não tem luz e não tem casa de banho em casa… É importante termos noção da existência desta realidade, que nos choca muito, mas perante a qual podemos ser proactivos. Sinto que essa atitude é o elo que une todos os voluntários desta equipa”, acentua.
Esta confraternização, diz Maria Coelho, vai para além do grupo e dos beneficiários do seu trabalho, sendo comum os voluntários conviverem com as comunidades locais. “Para além de Odemira, já estive [em voluntariado pela Just a Change] em Santarém, na Chamusca, em Portimão… as pessoas acham muito estranho pessoas da nossa idade estarem a trabalhar em obras. Acabamos por dar um bocadinho nas vistas, o que, felizmente, acaba por levar a novas amizades e a conhecer melhor a realidade de várias localidades, em diferentes regiões. As populações aproximam-se de nós e acabamos por ficar amigos do senhor do café, da senhora da escola que nos está a alojar…”.
Ao contrário de Maria Coelho, já habitué neste tipo de projetos, Elisabete, de 22 anos, natural de San Sebastian, na comunidade autónoma do País Basco, no norte de Espanha, é debutante. Aluna do quarto ano de Trabalho Social na universidade da sua cidade de origem, Eli, diminutivo pelo qual é comumente conhecida, foi seduzida pela possibilidade de fazer um voluntariado num outro país. A universidade apresentou-lhe o plano, “completamente diferente de todos os outros, centrado na construção, e perfeitamente ajustado com o calendário” das suas férias letivas, e decidiu-se a vir até Portugal, país que a atrai e do qual, até agora, só conhecia as duas maiores cidades e parte do Algarve. “Estava um pouco receosa de vir, nunca tinha estado num ambiente parecido. Mas ainda bem que vim. Tenho-me sentido muito bem a participar neste projeto social e, ao mesmo tempo, a conhecer outras pessoas e uma outra região portuguesa, muito bonita. O trabalho – a fazer cimento, a picar e a aplanar paredes, a subir aos telhados e a carregar tijolos – não é fácil, mas no fim do dia sinto-me muito confortável e durmo fenomenalmente”, frisa.
Quem também se sente muito bem na sua “pele de voluntário”, e no seu aparado bigode esbranquiçado pelo pó, ao participar neste projeto, é Gonçalo, de 22 anos, natural de Lisboa, licenciado em Economia e estudante de um mestrado em Finanças. “Depois de ter vindo no ano passado, esta é a minha segunda participação no Just a Change. Acho muito interessante o projeto, que permite fazer o bem da forma certa, que me permite sentir, quase inexplicavelmente, depois de um dia inteiro de trabalho nas obras, com 40.º de temperatura, uma grande energia e boa disposição, muito menos cansado do que era suposto estar”. Uma imprevisibilidade que se deverá, diz, à ajuda “prestada aos nossos beneficiários, pessoas muito gratas que gostam de nos retribuir, de nos ajudar e de nos mimar. Esse conhecimento, entre as partes, acrescenta muito a toda esta experiência”.
Confessando, em tom de brincadeira, que é, hoje, um especialista em coberturas –“adoro fazer telhados” –, Gonçalo destaca o “bom ambiente” que se vive entre os vários elementos do grupo como outro dos trunfos importantes da experiência de voluntariado. “Acabamos sempre por conhecer pessoas boas. Sinto que quem vem fazer isto é sempre uma malta bem-disposta, com vontade de ajudar, com bons valores”.
Uma opinião partilhada por Maria Coelho, que, ainda que sublinhando ser “o serviço ao próximo” o desígnio maior do Just a Change, não considera displicente as estimas proporcionados pelo projeto. “Eu, que já estou neste programa desde 2019, sei que nós criamos, aqui, grandes grupos de amigos, amizades ‘para a vida’”, porque, para além da partilha da responsabilidade no trabalho, existem, depois das horas laborais cumpridas, momentos de convívio, dinâmicas de grupo. “Há, inclusive, pessoas cuja função é, além de garantir o bem-estar dos voluntários, animá-los, criar jogos para se conhecerem e integrarem. E, depois, ao domingo, temos o nosso dia de folga, em que, consoante a região do País onde estivermos, programamos diversos passeios e atividades lúdicas”, evidencia.
A aproximação entre voluntários é sublinhada por Eli, que refere, em concreto, o espírito de entreajuda que recebeu do grupo. “Quando cheguei, senti-me um pouco perdida, porque não entendia nada de português. Mas todos eles me ajudaram a ultrapassar a barreira linguística, traduzindo do português para o espanhol. Agora já entendo melhor a língua portuguesa e já sei dizer várias palavras e frases, uma aprendizagem que tem sido muito interessante”.
A “partilha de vivências e de histórias” que o projeto proporciona é, também, relevante para Ana Lúcia, que, considerando existir um défice de altruísmo nas sociedades contemporâneas, destaca as vantagens da participação cívica em programas de voluntariado, apelando à importância da consciencialização “dos cidadãos na participação social” enquanto voluntárias. E dá o seu exemplo: “Antes de fazer o voluntariado não tinha bem a noção de que havia pessoas privadas de casa de banho, de saneamento básico, sem capacidade para tal. Observar, de perto, essa realidade, permite-me ter uma outra noção das dificuldades pelas quais ainda passam muitas pessoas”.
O conselho de Ana Lúcia, de participação cívica voluntariosa, é “assinado” por Gonçalo, que revela a sua próxima participação num outro programa de voluntariado, da Just a Change, “ainda durante este verão”, em Lagoa, no Algarve. “Estou viciado nisto”, termina, gracejando.
Just a Change
Sob o lema “reabilitamos casas, reconstruimos vidas”, a associação Just a Change promoveu, desde 2010, mais de 450 intervenções de reabilitação, em cerca de 350 casas de família e 100 instituições sociais, divididas por 30 municípios do País, gerando impacto em mais de 15 250 beneficiários e envolvendo mais de 13 500 jovens voluntários universitários e corporativos.