Diário do Alentejo

estigma

26 de outubro 2023 - 14:20
Santa Casa da Misericórdia de Beja apoia 23 utentes com doença mental grave Foto | Ricardo Zambujo

Maria e Miguel são dois dos utentes com doença mental grave que estão a ser acompanhados pela Equipa de Apoio Domiciliário em Saúde Mental da Santa Casa da Misericórdia de Beja, uma das três primeiras experiências--piloto criadas no Alentejo em outubro de 2020. Ao todo são apoiados 23 doentes, com uma média de idades “à volta dos 40”, sendo a esquizofrenia o tipo de doença com maior prevalência, seguindo da doença bipolar e da depressão. Entre outros objetivos, pretende-se que estes doentes, estabilizados clinicamente, ganhem uma maior autonomia. A Santa Casa da Misericórdia de Beja é uma das entidades que, até ao próximo dia 31, está a promover os “Dias da Saúde Mental”, com o objetivo de “contribuir para a redução do estigma existente, promovendo uma sociedade mais inclusiva e aberta à discussão sobre a temática”. 

 

Texto | Nélia Pedrosa 

 

Maria (nome fictício) sofre de depressão desde a infância. Uma infância marcada por maus-tratos infligidos pelos que lhe eram mais próximos e que lhe deixaram “traumas para a vida”. Ainda hoje, volvidas mais de quatro décadas, é-lhe extremamente penoso verbalizar o que quer que seja sobre esses tempos. “Prefiro não falar nisso”.

Há cerca de quatro anos, não sabe precisar bem quando, a sua situação clínica agravou-se. “Não me sentia bem, não dormia durante o dia, não dormia durante a noite”, recorda ao “Diário do Alentejo”. Procurou ajuda e acabou por ser internada no serviço de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba). Mas não se lembra de quanto tempo lá esteve. Nem do que os médicos disseram.

Nem do tratamento prescrito. Não tem memória do que quer que seja. Esse episódio, diz, foi o culminar de anos de sofrimento após a mãe ter sido diagnosticada com cancro no início da década de 2010.

Desde esse internamento que Maria é seguida pelo departamento de Psiquiatria e Saúde Mental da Ulsba. Em novembro de 2022, por sugestão dos profissionais que a acompanham, foi referenciada para a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados que, por sua vez, a encaminharam para a Equipa de Apoio Domiciliário (EAD) em Saúde Mental da Santa Casa da Misericórdia de Beja. Foi o melhor que lhe poderia ter acontecido, garante. “É por elas [profissionais que integram a equipa] que saio à rua”.

A Equipa de Apoio Domiciliário em Saúde Mental da Misericórdia de Beja é uma das três primeiras experiências-piloto criadas no Alentejo em outubro de 2020. Constituída por uma assistente social, uma enfermeira especialista em saúde mental, uma psicóloga e uma terapeuta ocupacional, acompanha atualmente 23 utentes com doença mental grave, estabilizados clinicamente e que necessitam de um programa de apoio adaptado à sua realidade, explica a coordenadora da equipa e assistente social, Ana Rita Guerreiro, adiantando que a capacidade máxima da equipa – “oito visitas diárias” – já foi atingida, pelo que “as referenciações futuras já ficarão em lista de espera”. O utente mais novo tem 26 anos, o mais velho 67, sendo a média de idades “à volta dos 40”. A esquizofrenia é o tipo de doença com maior prevalência, seguindo-se, em pé de igualdade, a doença bipolar e a depressão. Com exceção de um, não desempenham qualquer ocupação profissional e têm, na esmagadora maioria, “pouca retaguarda familiar”.

 

Diminuir internamentos

 

“[Este apoio] tem vários objetivos, maioritariamente, dirigidos ao utente, visando a sua melhoraria e inserção, deixá-lo mais autónomo em todas as áreas de vida, mas também trabalhamos com os cuidadores e com as famílias”, sublinha, por sua vez, a terapeuta ocupacional da equipa, Maria João Horta, acrescentando que “alguns objetivos mais específicos” poderão passar “pela gestão medicamentosa, pelo treino de atividades da vida diária (AVD), como vestir e despir, alimentação e higiene pessoal, e de atividades instrumentais da vida diária (AIVD), que permitem a integração na comunidade, como a gestão financeira, a gestão da casa e cozinhar”. Para além disso, frisa, também é trabalhada “a parte emocional, a estabilização”.

Ana Rita Guerreiro acrescenta que, “a par da maximização da autonomia” do utente, da “melhoria das suas relações interpessoais”, outro dos grandes objetivos da equipa “é diminuir os internamentos”, porque “os serviços hospitalares nos dias de hoje estão sobrecarregados” e “estas equipas conseguem fazer um trabalho de proximidade muito maior, embora estes utentes tenham, todos eles, uma boa relação com o departamento de Psiquiatria e o frequentem com alguma frequência, nem que seja através [da administração] dos injetáveis”.

“Nós conseguimos fazer um trabalho de proximidade quase diário, com alguns destes doentes é mesmo diário, ou pela gestão da medicação ou até porque eles nos procuram. Na entrada de cada doente na equipa é delineado um plano individual de intervenção, definido pela equipa em conjunto com o doente, mas nem sempre é cumprido por diversos motivos, mas mais porque eles precisam sempre mais do que aquilo que o plano permite. Se ficar definido que um utente tem terapia três vezes por semana, muito possivelmente ele vai procurar-nos cinco, seis vezes por semana”, prossegue a coordenadora da equipa, sublinhando que uma das justificações para tal é a existência “de poucas respostas para estes doentes”. Em Beja, por exemplo, adianta, falta uma unidade socio-ocupacional (USO), uma resposta incluída também nos cuidados continuados integrados em saúde mental, destinada a adultos com doença mental grave e que visa a promoção da autonomia, da estabilidade emocional e a participação social com vista à integração social, familiar e profissional. Ana Rita Guerreiro revela que a Santa Casa da Misericórdia de Beja já fez uma candidatura com vista à criação de uma USO, mas “as instalações [o antigo hospital da Misericórdia] não foram aprovadas”.

“A maior parte destes doentes, ao não ter uma ocupação, está fechada em casa um dia inteiro ou a deambular e a unidade ia acabar por dar essa resposta que nós não damos. Neste momento temos 23 doentes, as terapias acabam por ser uma hora, uma hora e meia e não todos os dias, a unidade ia dar essa resposta. Eles estariam ocupados todos os dias, com atividades, com terapias, com uma equipa multidisciplinar que tem exatamente aquilo que eles precisam no momento. Uma USO seria o mais indicado, mas a EAD é já uma ajuda fundamental para estes doentes”, reforça a assistente social, frisando que, por exemplo, “quando em 23 utentes dizemos que só um é que tem ocupação, não pode ser visto como sendo pouca vontade da parte deles, pelo contrário, não há é respostas, a sociedade civil não tem respostas para este tipo de doenças, e eles querem. Maioritariamente estão motivados”.

 

Acompanhamento sete dias por semana

 

O acompanhamento aos utentes da Misericórdia de Beja, disponível sete dias por semana, de segunda-feira a domingo, pode ser feito no domicílio ou nas instalações da Santa Casa. Depende de “muitos fatores”, frisa a psicóloga da equipa, Diana Gomes: “Da autonomia, se têm transporte, a facilidade com que se deslocam, o tipo de atividades” desenvolvidas. No seu caso em concreto, as sessões de psicologia, “sempre que possível”, são realizadas nas instalações da Misericórdia, “porque em casa, às vezes, existem entraves”, como a presença da família, que acaba por retirar alguma “privacidade”. Maria João Horta refere que muitas vezes são os próprios utentes que pedem para irem ter com a equipa, “porque são pessoas que estão muito fechadas, muito sozinhas”, pelo que “as relações interpessoais, as relações com os pares, só são possíveis tirando-os do domicílio”.

É o caso de Maria, que vive sozinha. “Antes de ser acompanhada pela Santa Casa da Misericórdia não tinha vontade de sair de casa, só tinha vontade de estar deitada, não me apetecia falar com ninguém. Agora as atividades e as terapias [psicologia e ocupacional] fazem-me sair”. Em breve, diz, irá integrar novos ateliês propostos pela equipa, como hidroginástica, meditação, ioga, cozinha, horta, escrita e pintura. E nas sessões de terapia ocupacional está a atualizar o seu currículo, porque o que mais quer neste momento “é poder trabalhar”. “Desde 2012, depois de a minha mãe ter sido diagnosticada, que não trabalho. Mas antes disso, durante oito anos, fui administrativa numa empresa, fui caixa de supermercado e tive uma empresa de produtos esotéricos. Neste momento sinto-me bem e o que mais quero é arranjar um trabalho. Quero ir inscrever-me no centro de empego e procurar mais cursos, porque já fiz uma data deles durante este ano, em teletrabalho, é uma maneira de ocupar a minha cabeça”. Aos 47 anos, reconhece, no entanto, que não será tarefa fácil voltar ao mercado de trabalho. “Infelizmente, no nosso país, só querem juventude. Pessoas com a minha idade já são consideradas, entre aspas, velhas”.

 

Estigma “ainda está muito enraizado”

 

Ao fator idade, acresce um outro, frisa Ana Rita Guerreiro, o estigma associado à doença mental. “Quem é o empregador que, neste momento, vai dar emprego a um esquizofrénico, por exemplo”, questiona. “São utentes que, eventualmente, um dia ou outro, podem falhar, porque vão falhar, e já sabendo que isto vai acontecer as pessoas não estão disponíveis para lhes dar emprego, soluções”, acrescenta Maria João Horta.

O estigma associado à doença mental, realça a terapeuta ocupacional, “infelizmente, ainda está muito enraizado, toda a parte má da saúde mental”. Mas, felizmente, adianta, “já se deixou de falar de doença mental para se falar de saúde mental, porque é algo transversal a todos nós”.

A coordenadora da equipa salienta que “é esse estigma, essas situações enraizadas na sociedade”, que fazem com que as pessoas com doença mental grave “se fechem mais, se isolem, não queiram sair, porque não se sentem bem-vindas, porque se sentem olhadas”, daí, reforça, a importância de se dar “prioridade às atividades realizadas no exterior, fora do domicílio”, para “tentar ir derrubando esse estigma”. Ana Rita Guerreiro considera que, apesar de haver uma maior abertura para falar sobre saúde mental, “ainda falta” percorrer “um longo caminho”.

“O estigma também vem da falta de conhecimento acerca [da doença mental], do desconhecido”, diz, por sua vez, Diana Gomes. Por isso, “as ações de sensibilização, promovidas, talvez por instituições, nomeadamente, nas escolas”, poderão ser uma boa aposta, considera.

Miguel (nome fictício), que é acompanhado pela Equipa de Apoio Domiciliário em Saúde Mental da Misericórdia de Beja desde junho deste ano, já sentiu na pele, não raras vezes, a marca desse estigma. “As pessoas fazem pouco de mim. Sou muito gozado aqui em Beja. Às vezes vou na rua e dizem ‘lá vai o maluco, lá vai o atrasado”, lamenta.

Há seis anos, tinha então 20, foi diagnosticado com esquizofrenia e perturbação compulsiva, doenças que se vieram juntar a uma deficiência intelectual identificada desde tenra idade. “Fui extorquido durante dois anos por umas pessoas que ameaçavam a minha família. Fui com elas a tribunal, mas perdi a ação. Nem indemnização, nem dinheiro, nada. Depois fiquei nervoso, entrei em depressão…”. Foi esse evento stressor, diz, que levou ao seu primeiro internamento, durante duas semanas, no serviço de Psiquiatria da Ulsba, em 2017. Seis anos depois, em setembro último, voltou a ser internado, devido “a ideias suicidas”, motivadas, em parte, pelo “jogo compulsivo, pelas raspadinhas”. “Queria mandar-me dos silos”, admite.

À semelhança de Maria, Miguel também prefere deslocar-se à Santa Casa da Misericórdia em vez se ser acompanhado em casa, onde vive com a mãe, a irmã e um sobrinho. Tem sessões de psicologia, de terapia ocupacional e, sempre que sente necessidade, fala com a assistente social. Agora está bastante entusiasmado com a possibilidade de frequentar os novos ateliês propostos pela equipa. “Costumava vir dois dias por semana, mas agora vamos ter mais atividades e vou estar mais ocupado. Assim não estou em casa, não penso em tanto problema. Não estou para aí a fazer asneira, a jogar, que é o pior que faço. Depois fica a faltar-me o dinheiro e começo a andar nervoso, mais desorientado”.

Quase três anos depois da criação da EAD em saúde mental, embora o primeiro utente só tenha sido admitido em meados de 2021, a coordenadora da equipa considera que o balanço “é muito positivo”. “A Maria João [Horta] está comigo na equipa desde o primeiro dia e nós não conseguimos, ainda que de forma inconsciente, não fazer a comparação do primeiro dia de entrada dos doentes com o dia de hoje. E, olhando para trás, é muito positivo o balanço”, diz Ana Rita Guerreiro, sublinhando que, “algo fundamental” é o facto de “todos os utentes, neste momento, saberem que está alguém com eles, que já não estão sozinhos, que já podem partilhar o que quiserem com alguém”. Maria João Horta acrescenta: “Temos utentes mais autónomos neste momento, mais recetivos. Estamos numa fase em que estão mais motivados para estarem inseridos em atividades e para terem uma rotina, porque quase todos eles não têm uma rotina estabelecida e o facto de estarem connosco, de terem atividades, permite-lhes ter os dias ocupados”.

O contrato assinado aquando da constituição da equipa de apoio domiciliário em saúde mental, em outubro de 2020, tem termo previsto para dezembro de 2023. Mas tudo indica que será renovado. “Pensamos que sim. Tem tudo para ser”, conclui a coordenadora.

 

Exposição retrata olhar dos utentes

 

Vinte e quatro fotografias da autoria de utentes com doença mental grave, nomeadamente, esquizofrenia, depressão, oligofrenia, perturbação bipolar, psicose afetiva e reação de ajustamento, compõem a exposição “Revelação”, que está patente ao público na Santa Casa da Misericórdia de Beja até ao final do mês. A mostra, inaugurada no âmbito dos Dias de Saúde Mental, nasceu do desafio lançado pela Equipa de Apoio Domiciliário em Saúde Mental aos utentes que acompanha. Foi, contudo, “um trabalho moroso”, lembra Ana Rita Guerreiro. “As primeiras vezes que falámos com eles sobre [o projeto], a resposta foi ‘eu não sou capaz’, ‘eu nunca tirei’”, adianta a coordenadora da equipa. Mas, depois, “foram interiorizando a ideia e quando pedimos duas ou três fotografias a cada um deles, houve utentes que trouxeram 40, houve doentes que descobriram que adoravam fotografia”. A terapeuta ocupacional Maria João Horta acrescenta: “A ideia era retratar o olhar das pessoas com doença mental grave, e quando se fala destes utentes, se calhar, espera-se que vejam alguma coisa diferente, depois vemos que é o mesmo” que as pessoas sem doença mental grave “tirariam”. O primeiro e o último painéis da mostra, para além das fotografias, incorporam um espelho, “para que os visitantes se vejam” e se lembrem que “qualquer um de nós poderia estar do outro lado”.

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