Diário do Alentejo

Tão certo como a Feira de Castro…

20 de outubro 2023 - 09:35
Certame realizou-se nos passados dias 13, 14 e 15 Foto | CM Castro Verde

Farturas a cinco escudos, tendas encharcadas pela chuva e um nascimento, a Feira de Castro, com 403 anos de história, é um autêntico livro de recordações. O “Diário do Alentejo” dá voz a quem nas últimas décadas tem levado os seus negócios até à antiga feira em honra da igreja dos Remédios.

 

Texto | Ana Filipa Sousa de Sousa

 

A sexta-feira já vai longa. No largo da feira, atualmente denominado de Parque de Feiras e Exposições de Castro Verde, uma e outra barraca montada esperam que a chuva, por enquanto, dê tréguas. A rua perpendicular ao parque de terra, de onde surgem as bandeiras coloridas da feira, ainda se mantém circulável, embora o para-arranca das carrinhas repletas de mercadorias comece a ser cada vez mais frequente.

Em tempos, era na zona envolvente à igreja dos Remédios que feirantes, vendedores de gado, agricultores, principalmente, oriundos das terras algarvias, e mendigos interagiam com quem passava. Os “terrádegos”, ou seja, o atual pagamento dos espaços de venda, segundo explica ao “Diário do Alentejo” (“DA”) o autor do programa radiofónico “Património”, emitido na “Rádio Castrense” desde 1989, José Francisco Colaço, tinham como propósito o “restauro e consolidação de uma igrejinha que havia em Castro Verde e onde se diz ter sido o local de residência de um ermitão que fez parte do cenário do milagre de Ourique”.

“Estando essa igreja já completamente em ruína, alguns habitantes de Castro Verde moveram influências e fizeram alguma pressão sobre o poder régio, que nessa altura era espanhol, ou seja, no tempo de Filipe II. Tiveram como resposta que não havia verbas para acudir à emergência que eles apresentavam para o restauro da igrejinha, mas tanto insistiram que conseguiram que o rei deslocasse uma feira que já estava consolidada, afamada e muito frequentada na antiga vila de Padrões [para o velho povoado castrense]”, conta.

Desta forma, contrariamente à maioria das feiras, o “interesse económico” associado à Feira de Castro apareceu mais tarde, particularmente, por parte dos próprios residentes. A vila, anteriormente “um pequeno e pobre povoado só reconhecido pela importância da batalha que lhe associava”, aproveitou-se da importância que o certame lhe trazia e de ano para ano cresceu, tornando-se um “forte ponto turístico”.

“Os habitantes, por exemplo, aproveitavam a vinda dos feirantes para alugarem partes das suas casas para estes residirem durante aqueles dias. Aliás, foi um fenómeno idêntico ao que ocorreu no Algarve quando a febre das praias e do turismo chegou. Nessa primeira fase, a construção das casas [em Castro Verde] foi marcada, pensada e adaptada às necessidades da feira, com pessoas a construir grandes cavalariças nas suas casas para alugarem as argolas às pessoas que vinham vender ou comprar à feira”, revela.

O mais característico e tradicional da Feira de Castro, segundo ouviu desde sempre as outras gerações a recordar, era o cheiro dos animais, das castanhas assadas e das frutas algarvias, especialmente, dos “peros de espelhos”. Volvidos mais de quatro séculos, este último negócio é aquele que se mantém com maior procura junto dos clientes.

“A feira hoje em dia já existe por tradição, porque já ninguém está à espera [da Feira de Castro] para fazer compras. A única coisa que as pessoas podem comprar na feira que não encontram no seu dia a dia são os produtos regionais que sempre vieram da serra algarvia, por exemplo, os figos, as azeitonas, as nozes ou os peros. Esta componente algarvia é ainda aquela que se mantém como resposta às necessidades efetivas das pessoas, porque o que eles trazem não se encontra no supermercado”, explica José Francisco Colaço.

Luísa e António Santos são, atualmente, um dos grandes exemplos de tal façanha. Há “mais de 45 anos” que repetidamente, no terceiro fim de semana de outubro, vêm de Silves vender os seus produtos, principalmente, os figos, as amêndoas e as azeitonas.

“Ainda há muito o hábito de vir e de comprar na feira. Ainda hoje de manhã estava fechada e apareceu uma senhora a puxar o pano [da barraca] para baixo, a dizer-me que no ano passado tinha comprado umas amêndoas e umas nozes e que neste ano veio de propósito comprar outra vez. Deixou-me cá 41 euros”, comenta a vendedora.

O casal, que em tempos também foi proprietário de uma barraca de brinquedos, nota que ano após ano a Feira de Castro tem “menos pessoas e excursões”, mas que o negócio dos frutos secos continua a ser rentável.

“A nossa tradição é vir à Feira de Castro e a de alguns clientes é de nos virem comprar coisas todos os anos. Vemos que as pessoas continuam a vir à nossa procura e que depois fora daqui vão aos mercados ter connosco”, refere.

Do outro lado da rua o cheiro das farturas acabadas de fritar faz desaparecer o aroma suave dos “frutos do Algarve”. Entre um e outro freguês que chega, a rapidez e a simpatia com que prepara os pedidos são sinónimos dos largos anos que Glória Campos traz destas andanças. “Por minha conta faço esta feira há 34 anos, mas já fazia antes com os meus pais. Comecei a trabalhar aqui em cima de uma grade de cerveja a fazer trocos, era pequena e ainda se vendiam as farturas embrulhadas em papel pardo”, conta ao “DA” enquanto envolve uma nova fornada em açúcar e canela.

Inicialmente, a sua barraca, composta por um pequeno balcão, ficava em frente ao parque de feiras, numa das esquinas da rua Fialho de Almeida.Com o passar dos anos, e com a ameaça de acabar com a venda na calçada, Glória passou para a entrada do recinto de terra, onde se mantém até aos dias de hoje. “Castro é uma boa feira. Ainda hoje tiveram aí pessoas que vieram do Algarve de propósito. Há pessoas que têm como tradição vir à Feira de Castro. Vêm às nozes, aos figos, às cestas e, depois, de arrasto, levam as farturas. O pessoal antes comprava, mas era outro nível de vida. Lembro-me de vender farturas a cinco escudos, agora as pessoas vêm à feira e já compram à meia dúzia porque é mais barato”, recorda.

 

OS TEMPOS SÃO OUTROS

 

A proibição da exposição e venda de gado característica da Feira de Castro fez com que o certame perdesse parte da sua mística histórica e levasse “um grande tombo”. O cante do despique, que espontaneamente saía de um ajuntamento de feirantes que, “sem nada para fazer”, passavam o tempo, também deixou o seu cariz tradicional.

“Antigamente havia todo um folclore de cantares e danças ligados à feira, porque as pessoas estavam cá e tinham de ter alguma coisa com que se entreter e então os homens passavam a noite nos copos a cantar e as mulheres a dançar. Digamos que não havia carrosséis nem espetáculos musicais, mas eles próprios faziam as suas diversões”, explica José Francisco Colaço.

A estes momentos de lazer juntavam-se os mendigos tocadores e trovadores que, acompanhados por violas, “cantavam as quadras que faziam” para “pedirem e ganharem algum dinheiro”. Com o aparecimento da sonorização da feira, “com os megafones e as cornetas”, os pequenos espetáculos de rua que existiam, a voz e viola, deixaram de ter impacto.

“Com o tempo e com a eletrificação do espaço deixou de haver condições para os tocadores estarem a cantar a seco, deixou de ser um espaço propício ao cante e pouco a pouco foi acabando”, realça.

 

Nos últimos anos, a Câmara Municipal de Castro Verde tem estado a “reinventar” esta tradição e a retomar, para espaços apropriados e específicos, o cante e os momentos com a viola campaniça.

Maria Rosa e José Simões desde 1976 que montam a sua pista de carros de choque no recinto da Feira de Castro. Dos primeiros anos, lembram-se das “grandes excursões” que vinham passear à feira e da “boa organização” dos espaços disponíveis para cada feirante.

“Antigamente, nós ao sábado, às 08:00 horas, olhávamos aí para a frente e em tudo o quanto é sítio havia carros e pessoas, mas agora já não. Hoje podemos faturar um bocadinho mais, mas as nossas despesas também triplicaram”, refere o proprietário. A mulher completa: “Ali ao pé do moinho montávamos duas pistas de automóveis. Esta era uma grande feira, a maior talvez. Vinham excursões e excursões de gente, mesmo com grandes chuvas”.

 

AS MEMÓRIAS DE UMA VIDA

 

O tempo chuvoso e frio a que a Feira de Castro habituou os feirantes e visitantes é também uma das grandes recordações, tanto de quem a visita, como de quem a faz. “Tenho apanhado aqui grandes chuvas. Há uns anos, estávamos aqui a trabalhar e estávamos todos com medo de que o vento escavacasse a pista toda. Lembro-me de estar no dilema se parava de montar e desmanchava o que estava feito ou se continuava”, diz José Simões. “Olhe, arriscámos e não voou”, frisa.

Também Glória Campos tem memórias semelhantes dos dias tempestuosos passados na feira, principalmente, de fugir dos tachos com óleo quando a sua barraca não aguentava a chuva.

“Agora, em outubro, tem estado muito calor, mas recordo-me de estar aqui e virem aquelas chuvadas e a água cair dentro da sertã e nós só termos tempo de fugir para não nos queimarmos ou de, com quatro ou cinco anos, a minha mãe esquecer-se que eu estava a dormir nas sacas da farinha debaixo do balcão e quando se lembrava já a farinha tinha ido rua abaixo e eu no meio das sacas”, diz sorrindo.As memórias que Luísa e António Santos têm de Castro Verde são diferentes. Com os olhos a brilhar, a vendedora conta ao “DA” que o seu filho mais novo nasceu aquando da Feira de Castro, de seis meses, e que por isso esta tem um sabor especial para a família.

“Há 24 anos estava aqui na feira e tive que abalar. Comecei com quebras de tensão e passadas algumas horas o meu filho nasceu na maternidade Alfredo da Costa [em Lisboa], com seis meses. Foi muito difícil”, revela. O marido, com um ar brincalhão riposta: “E esteve grávida só 23 dias”.

“Eu não sabia que estava grávida, tinha descoberto há muito pouco tempo, no final das Festas da Moita e depois foi de repente. Hoje o rapaz já faz 24 anos e é o único dos filhos que segue com este negócio das feiras”, afirma Luísa, visivelmente orgulhosa.

A tradicional Feira de Castro que em tempos encheu ruas, como Paulo Abreu de Lima escreveu, de gentes que queriam comprar um par de meias, umas chanatas e um par de brincos, tem atravessado as mudanças dos tempos. Ligado a ela está um livro de memórias e de vidas que a compõem e que, apesar do decréscimo económico que ela atualmente traduz, são ainda o que a mantém viva, com o mesmo espírito de há 400 anos.

 

MENOS FEIRANTES, MAS “MILHARES DE VISITANTES”

A Feira de Castro, que decorreu nos passados dia 13, 14 e 15, terminou com um balanço “ótimo”, ainda que, segundo António José de Brito, presidente da Câmara Municipal de Castro Verde, se tenha registado “uma menor expressão no número de vendedores”. Ainda assim, o autarca assegura, em declarações ao “DA”, que “em termos de visitantes foram dias e noites com muita gente nas ruas da vila, [sendo que] no domingo, como é tradição, houve milhares de visitantes em Castro Verde e a animação foi muito boa”. Para a edição do próximo ano, António José de Brito garante que irá “refletir em conjunto com a comunidade a assunção de novos desafios que façam da feira um espaço de identidade e promoção do concelho ainda mais forte”.

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