Texto José D’encarnação, arqueólogo
Há pedras com letras do tempo dos romanos ilustradas com representações de cavalos. Pensa-se, até, que é assim a modos do símbolo do espírito do Homem a cavalgar por aí, após a morte. O que ora nos vai ocupar é, porém, um cavalo especial e que está sozinho nas romanas paragens pacenses!...
Na verdade, sendo o cavalo, desde sempre, um bom companheiro do Homem, não tem causado espécie vê-lo representado em monumentos funerários. Normalmente em locais onde o animal estivesse bem presente no quotidiano, também se lhe poderá atribuir um significado transcendente que, à primeira vista, essa relação concreta tornava menos evidente. Daí que, desde cedo, os investigadores atribuíssem à representação do cavalo o referido caráter simbólico de veículo para o além.
Guarda-se no Museu Rainha D. Leonor (número de inventário B-143) uma pequena placa epigrafada romana, de mármore branco do tipo Estremoz/Vila Viçosa, com 19 x 22,5 x 3 centímetros, achada no verão de 1939, em Val-de-Vinagre, freguesia de Baleizão, por ocasião dos trabalhos no âmbito do Campo Experimental dos Serviços da Campanha de Produção Agrícola. Foi oferecida pelo engenheiro agrónomo José de Mira Galvão, como Abel Viana e o padre Eugénio Jalhay tiveram o cuidado de informar, na primeira publicação que houve sobre este documento, no “Arquivo de Beja” (n.º 1, 1944, p. 41-42). Tem gravado o desenho de um cavalo.
Não teremos aqui o retrato de determinado cavalo, ao contrário do que se pensa, por exemplo, acerca das representações de cavalos no célebre mosaico de Torre de Palma (Monforte), onde tudo leva a crer que o senhor da villa quis mesmo perpetuar a imagem dos seus cavalos preferidos: Lenobatis, Hiberus, Leneus, Pelops e Inacus.
Apesar das suas diminutas dimensões, esta epígrafe não passou despercebida. A dra. Manuela Alves Dias teve oportunidade de sobre ela mui detidamente se debruçar, em minucioso artigo publicado na revista “Conimbriga” de 1979 (p. 203-226), propondo que se considere Lupus o nome do defunto e não Lucius Rusticus, como havia sido proposto. Aliás, o texto, em latim, é muito simples e pode traduzir-se assim:
“Consagrado aos deuses Manes. Aqui jaz Lobo, de 30 anos. Que a terra te seja leve”.
Recordando que a atividade mineira romana atraiu à região gente vinda do Norte da Hispânia e que o nome Lupus não é corrente aqui, Manuela Alves Dias sugere que esta placa, inclusive pela forma de representação do cavalo, a galope, muito semelhante a outras mais vulgares na zona vadiniense (da Cantábria), deva considerar-se o testemunho da presença, no território pacense, de elementos daí oriundos, hipótese deveras aceitável.
No âmbito das crenças pré-romanas, o cavalo usufruiu de especial importância. Num livro sobre a heroicização equestre, publicado em 1954, François Benoit cita, na p. 78, este testemunho de Beja, uma referência que José María Blázquez Martinez partilhará, apoiando-a, em 1977, no livro Imagen y Mito (p. 287), apontando este documento como mais um elemento comprovativo de que o cavalo representa entre a população hispano-romano a “heroicização do defunto”.
Tem, pois, razão Manuela Alves Dias em sublinhar a singularidade desta epígrafe no contexto da epigrafia de Pax Iulia e seus arredores. Inclusive pela tipologia. Não descurando a hipótese de ter havido reutilização de um pedaço de placa desperdiçado, o certo é que esta inscrição poderá ter sido inicialmente pensada para figurar num columbário (“pombal”, em linguagem corrente), nome que se dava ao edifício com gavetas, onde se depositavam as urnas cinerárias. A identificação do defunto gravava-se na placa que servia de tampa, tal como acontece nos cemitérios atuais.
A que propósito viria, por conseguinte, o desejo de os familiares de Lupus haveram querido gravar o desenho dum cavalo, aqui, em jeito de se lançar em galope? No mosaico de Torre de Palma compreende-se: o senhor da villa era criador de cavalos e, mui provavelmente, poderá incluir-se no rol dos famosos responsáveis pelo apuramento da raça lusitana, a das tais éguas tão velozes que se dizia serem… fecundadas pelo deus Vento!...
No cemitério de Montemor-o-Novo há o epitáfio de António José, nascido em 1890 e falecido em 1940. O seu retrato em jeito de camafeu aninhado no pescoço de mui garboso cavalo, de que apenas a cabeça se gravou em baixo-relevo. Compreende-se: para António José, de etnia cigana, o cavalo e o chicote foram seus fiéis companheiros em vida.
E aqui, nesta placa romana de Beja? Simbolismo ou realidade?
Simbolismo será, sem dúvida. A vontade de, em veloz cavalgada, Lupus ter seguido para mui venturoso além – qual vencedor da corrida no hipódromo da sua bem curta existência terrena!..