Texto José D'Encarnação, arqueólogo
Joaquim de Vargas, conservador do então designado Museu Municipal de Beja, escreveu a Leite de Vasconcelos a comunicar-lhe que “meses antes, demolindo-se parte da muralha de Beja para edificação do palácio das repartições públicas, se encontraram várias antiguidades romanas, como fragmentos de capitéis, de frisos e de fustes de colunas, uma cabeça de estátua de mármore, resto de pedras tumulares a outras”. Todos esses achados deram entrada no museu.
Tendo ido a Beja em outubro de 1901, Leite de Vasconcelos teve ocasião de estudar uma das inscrições recolhidas (n.º de inventário B-64), estudo que publicou na revista do seu Museu Ethnologico, “O Archeologo Português”, n.º VII (1902), p. 246-247.
Anote-se, desde já, o procedimento da época, hoje naturalmente repudiado, de se destruir uma muralha antiga só porque se considerou ser esse o melhor sítio para um palácio. Vá lá que, embora sem legislação que a tal o obrigasse, Joaquim de Vargas acompanhou as demolições e encaminhou para o seu museu o que lhe pareceu bem – honra lhe seja feita!
O MONUMENTO
Inclui-se esse fragmento no rol das muitas pedras que os construtores das muralhas haviam achado apropriadas para as consolidar, espalhadas por ali, numa necrópole romana. Poucas foram utilizadas inteiras; da maior parte, como é o caso da que ora nos ocupa, felizmente boa parte da inscrição foi poupada.
O epitáfio foi gravado dentro de um rectângulo limitado lateralmente pelos sulcos que representam os aros que, no barril, apertam as aduelas. Na verdade, estamos perante o que resta de uma pipa, o que, em linguagem epigráfica, designamos com o vocábulo vindo do latim por via erudita: cupa. É, já houve ocasião de o assinalar, um dos tipos de monumentos funerários mais comuns na cidade de Pax Iulia.
Há, porém, aqui, um pormenor não despiciendo: é que se nota claramente o minucioso trabalho do gradim, usado para afeiçoar a superfície a epigrafar.
A inscrição nele gravada, em latim como era habitual, pode traduzir-se assim, após se ter feito o desdobramento das costumeiras siglas e abreviaturas e reconstituindo-se o que, mui presumivelmente, desapareceu:
“Consagrado aos deuses Manes. Oriclão colocou o monumento a Flórica Ágata, marida modelo de piedade, com quem viveu em comum 2 anos e um mês”.
No formulário há que salientar a presença inicial da sigla P – em latim posuit, “pôs” – e o facto de, após a consagração aos deuses do Além, cuja protecção se invoca, vir logo o nome do dedicante, “Oricllo”. Um nome nada comum na onomástica documentada até ao momento. Está a palavra relacionada com aurícula, forma erudita de se dizer “orelha”.
Temos exemplos de personagens romanos que tiveram esse nome:
– De Marino, município romano situado nas proximidades de Roma, temos notícia de que Auricula, filho de uma liberta, Sariolena Atalante, colaborou na erecção do sepulcro de sua mãe;
– de Cirta, cidade da Numídia, no Norte de África, chegou-nos o epitáfio de Sextus Gargilius Oriculo, que viveu 90 anos;
– em Verona, Lucius Calvisius Oriculo dedicou um altar ao deus Mercúrio.
– na cidade romana de Limisa, actual Aïn-Lemsa junto a Kairouan, na Tunísia, uma menina falecida aos quatro anos, com nome de origem púnica, Berebal (“bênção de Baal”), está mencionada como “Oriclonis filia”, filha de Oriclão.
O nome quer dizer, à letra, “o Orelhas”, o “Orelhudo”, como “Nasica” queria dizer, em latim, “o de nariz afilado”. Podem ser designações em sentido pejorativo ou não; o seu portador pode ter sido, ou não, um… “orelhudo”!...
O certo é que os de orelhas grandes não deviam ser muitos, porque, como vimos, a palavra aparece escrita de várias maneiras: “Auriculus”, “Auriclus”, “Oricula”, “Oricla” ou, como aqui, “Oricllo”, com estranhos dois LL e quase à maneira grega. Dada, pois, a raridade do nome, o canteiro teve dificuldade em saber como se escreveria… Aliás, este antropónimo soou tão estranho que linguistas de renome, como María Lourdes Albertos, até chegaram a pôr a hipótese, relacionando-o com outro nome, Origenus¸ de ser, atendendo ao radical ori-, um “nome de típica formação celta”. Não é: é latino.
A MENSAGEM
O mais interessante, contudo, é que do texto ressumbra toda uma fragrância de ternura do marido para com a esposa, quer pelo uso (não muito frequente e mais familiar de “marida”), quer pela expressão “annos communes”, a sublinhar esses 42 anos e um mês (que preciosismo este “um mês!...”) de vida conjugal, expressão também ela nada usual, uma vez que nada, por enquanto, se encontrou de igual ou mesmo semelhante em textos epigráficos do Império romano. A felicidade da vida matrimonial vem expressa, quando o vem, através de frases mais simples: “com quem viveu X anos” ou mediante a junção de superlativos como “esposa exemplar” ou “marido incomparável”.
Note-se, finalmente, que também é rara a designação da defunta. Só se conhece mais uma Flórica e, por sinal, na epigrafia olisiponense e filha de Iulia Casiana, que se identifica como “clarissima femina”, ou seja, “mulher muito ilustre”, qualificativo que indica a sua pertença à nobre ordem senatorial! Uma inscrição de meados do século III, datação que poderá também aplicar-se ao epitáfio pacense.
Atente-se ainda que não vem indicada a idade de Ágata quando morreu: é que ao marido o que apenas interessou assinalar foi o número de anos que o seu feliz matrimónio durou!... Por outro lado, tanto Flórica como Ágata, literalmente, “a preciosa”, são nomes que, pela sua singularidade, denunciam estarmos em presença de um casal de libertos, meio social que, na epigrafia funerária, não raro quer deixar bem patente a harmonia e a felicidade da vida familiar.