Diário do Alentejo

Cercibeja

29 de abril 2023 - 09:00
Cooperativa comemora em junho 45 anos de existência
Fotos | Ricardo ZambujoFotos | Ricardo Zambujo

A Cercibeja – Cooperativa para a Educação, Reabilitação, Capacitação e Inclusão de Beja assinala no próximo mês de junho o seu 45.º aniversário. As comemorações, que decorrerão durante todo o ano, tiveram início no passado dia 15.

 

Vera Lopes Neca, à frente dos destinos da instituição desde fevereiro de 2022, considera que a cooperativa tem vindo a fazer “um percurso bastante positivo”, não só ao nível da valorização da pessoa com deficiência, mas também da criação de respostas adequadas às suas necessidades.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

Onde durante mais de três décadas funcionou uma oficina de serralharia, que encerrou portas devido à escassez de formadores na área, nascerá, muito em breve, uma sala multiusos destinada a acolher os ensaios do grupo de teatro e do rancho folclórico da Cecibeja, assim como as aulas de ginástica adaptada e artística.

 

“Já só faltam os espelhos nas paredes, as cortinas pretas para os ensaios de teatro e transformar a antiga sala da forja numa casinha de maquilhagem e adereços”, diz ao “Diário do Alentejo” a presidente do conselho de administração da instituição, admitindo que a nova sala multiusos “é o orgulho” do momento.

 

As expressões artísticas, nas suas mais variadas formas, é uma das áreas em que aquela cooperativa para a educação, reabilitação, capacitação e inclusão, que assinala em junho o seu 45.º aniversário, tem vindo a apostar fortemente ao longo dos anos, e com resultados positivos bem visíveis.

 

Florival Candeias, conhecido por “Valito”, é um dos clientes que mais se tem destacado na área da pintura e do desenho, “com trabalhos reconhecidos” quer em concursos de âmbito nacional, quer internacional, preparando-se para participar, por estes dias, em mais uma exposição na Alemanha. E outros, como António Mósca, já lhe seguem as pisadas.

 

“Sempre trabalhámos esta área das artes – da dança, do teatro, da expressão corporal –, mas ultimamente temos investido um bocadinho mais. Temos um racho folclórico, um grupo de teatro. Temos alguns clientes que são reconhecidos pelos seus trabalhos na área da pintura e do desenho. Estamos também a dar muita atenção às artes e ofícios mais tradicionais. Já temos ido algumas vezes às oficinas de buinho que decorrem no Centro Unesco [de Beja] e estamos a tentar perceber se é uma área que eles gostam de trabalhar e para a qual também tem apetência. Temos também uma área de teares manuais e estamos abertos a outras formas de arte: à escultura, à fotografia, que são áreas que queremos que eles experimentem”, adianta a responsável, sublinhado que a já longa experiência lhes tem vindo a mostrar que as atividades desenvolvidas “neste contexto mais artístico, em que têm liberdade para expressarem os seus sentimentos”, proporcionam uma grande satisfação aos seus clientes. O principal foco da instituição, frisa Vera Lopes Neca, “é que os clientes possam estar ocupados, possam desenvolver as suas capacidades, terem condições de conforto e de segurança”.

 

Localizada na Quinta dos Britos, numa propriedade com 33 hectares, a Cercibeja foi criada a 29 de junho de 1978 por um grupo de pais de crianças com deficiência que se viam confrontados com a inexistência de respostas, na região, para as suas necessidades educativas, tendo iniciado, precisamente, com a valência educativa.

 

Com a integração das crianças e jovens com deficiência nas ditas escolas de ensino regular, onde permanecem, obrigatoriamente, até aos 18 anos, e com o surgimento de novas necessidades, a natureza das respostas disponibilizas pela Cercibeja também foi mudando ao longo dos tempos.

 

Atualmente dá resposta unicamente a clientes maiores de idade, que se distribuem por três valências: o CACI – Centro de Atividades para a Capacitação e Inclusão, que abrange 60 pessoas; os dois lares residenciais “Vidas Coloridas”, localizados na cidade e que alojam 38 clientes (sendo que 34 são comuns ao CACI); e a unidade de qualificação e emprego, que presta serviço a cerca de 300 pessoas com deficiência e incapacidade ou que se encontrem em situação de vulnerabilidade.

 

Vera Lopes Neca admite que o atual conselho de administração, em funções desde fevereiro do ano passado, tem “a grande ambição” de “criar novas respostas” face às necessidades manifestadas, nomeadamente, ao nível do alojamento, sendo que em fevereiro último a lista de espera para vaga nos lares residenciais da Cercibeja “era de 53 pessoas”.

 

Ainda que a construção de uma terceira residência possa vir a ser equacionada, a responsável diz, no entanto, que neste momento estão mais focados nas residências de autonomização e inclusão, apesar de “terem um número de vagas consideravelmente menor” e de nem todas as pessoas com deficiência serem elegíveis.

 

“Cada vez mais se fala na questão da autonomização e da desinstitucionalização, em promover a autonomia das pessoas com deficiência, isso é extremamente importante e nós tentamos fazer isso com aqueles que têm condições para tal”, acrescenta, revelando que já manifestaram, junto de “alguns dos municípios” onde dão resposta, a vontade de criar essas residências. Atualmente, a Cerecibeja intervém em 10 concelhos – Aljustrel, Alvito, Barrancos, Beja, Cuba, Ferreira do Alentejo, Mértola, Moura, Serpa e Vidigueira.

 

Vera Lopes Neca reforça, no entanto, que estas residências de autonomização e inclusão não irão resolver a grande lacuna existente ao nível do alojamento para pessoas com deficiência, sentida quer na região, quer a nível nacional, situação que, no caso particular da Cercibeja, tenderá a agravar-se devido ao envelhecimento dos clientes e dos seus familiares.

 

“Todos os dias recebemos encaminhamentos [de pedidos de alojamento] de todos os lados do País. As pessoas quando nos vêm procurar é já numa situação de desespero e nós não conseguimos dar resposta. E depois temos pais que estão acamados que têm filhos com deficiência que não são autónomos, temos irmãos com deficiência que já não têm pais, porque morreram, nem outros familiares. Todas as situações são urgentes. É uma coisa que já vamos gerindo, mas, às vezes, temos que balancear aqui a razão e a emoção”. 

 

Ao nível do CACI também existem listas de espera, se bem que menores, e a justificação é simples: “Há alguns anos todos os jovens que estavam nestas instituições tiveram que integrar as escolas ditas de ensino regular. Quando chegam ao final do percurso da escolaridade obrigatória, aos 18 anos, não têm respostas porque os CACI estão cheios com pessoas que já vêm de trás. Quando se entra para um CACI ou para um lar residencial, à partida aquela resposta é encarada como uma resposta até ao final da vida. Em princípio só irá surgir outra vaga quando falece alguém”.

 

O envelhecimento dos clientes – no caso da Cercibeja há pessoas que são apoiadas pela instituição há mais de 40 anos – é precisamente um dos grandes desafios com que se vão deparando as intuições que dão resposta a pessoas com deficiência, sublinha Vera Lopes Neca, uma vez que requerem “outras necessidades”, nomeadamente, ao nível da saúde.

 

“Vamos tendo um grupo em que nos temos que focar mais no aspeto da saúde, em manter alguma qualidade de vida enquanto cá estão. Esta questão do envelhecimento é algo que nos leva a pensar, e, se calhar, no futuro, poderemos vir a desenvolver outro tipo de respostas”.

 

Multimédia0Foto | Vera Lopes Neca, presidente da Cercibeja – Cooperativa para a Educação, Reabilitação, Capacitação e Inclusão

 

REQUALIFICAÇÃO DOS EDIFÍCIOS

No âmbito da requalificação dos espaços da Cercibeja, um dos projetos a curto prazo prende-se com a beneficiação do edifício que alberga o refeitório, uma sala de convívio e um ginásio, e ainda gabinetes técnicos, uma sala de CACI destinada à culinária e zona de arrumação.

 

A “intervenção de fundo” do edifício permitirá também, ainda que em moldes a definir, “criar novas respostas, novas áreas de trabalho, eventualmente, destinadas a outros públicos”.

 

O conselho de administração espera poder vir a candidatar o projeto de requalificação no âmbito da estratégia Portugal 2030 ou do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), pelo que estão já a trabalhar “em projetos de arquitetura e especialidade para que, quando houver oportunidades de financiamento”, possam “ter uma candidatura preparada” e pronta a ser submetida.

 

De acordo com Vera Lopes Neca, outro dos projetos a curso prazo, que já foi candidatado no âmbito do BPI Solidário, aguardando-se agora o resultado, está relacionado com a requalificação de um espaço que a Cercibeja detém num dos bairros sociais da cidade e que se destinaria a albergar um gabinete de apoio aos cuidadores informais, disponibilizando uma vertente “de formação ou de capacitação”, e servindo, igualmente, “como um ponto de contacto, na cidade, com a comunidade”.

 

“Sentimos que faltam respostas mais estruturadas direcionadas para os cuidadores informais. Achamos que seria uma aposta que poderia promover o bem-estar das pessoas com deficiência e das suas famílias, porque a ideia é orientá-los e mostrar-lhes aquilo que existe ao seu dispor. As pessoas, muitas vezes, não têm informação sobre os apoios que podem ter, não conhecem o estatuto do cuidador informar que saiu recentemente, precisam de apoio até ao nível jurídico, da procura dos produtos de apoio…”, explica a dirigente.

 

A par dos cuidadores informais, a saúde mental é outra das áreas prioritárias do conselho de administração da Cercibeja, adianta a presidente, frisando que, embora o projeto que submeteram nessa área não tenha sido aprovado, vão continuar “a insistir”.

 

“Trabalhamos, especificamente, neste momento, a questão da deficiência. Mas cada vez é mais comum aparecer aquilo que chamamos de duplo diagnóstico: as pessoas terem deficiência, mas, por outro lado, terem questões de saúde mental associadas. Também há pessoas que procuram a nossa resposta que não têm deficiência, mas têm problemas de saúde mental. Neste momento já vão surgindo algumas respostas nessa área, mas ainda não são suficientes. A nossa ideia é muito no sentido de capacitar as pessoas para as incluir. Portanto, perceber primeiro as áreas em que as pessoas têm mais apetência ou mais gosto, capacitá-las nessas áreas e depois, em articulação com as entidades da comunidade, inclui-las, a par sempre do tal apoio psicossocial e acompanhamento psicológico”.

 

A outro nível, a Cercibeja tem ainda a pretensão de reforçar as iniciativas de carácter mais empresarial, nomeadamente, a transformação de fava e, mais recentemente, de amêndoa em aperitivo, sob a marca “Sabores com arte”, criada em 2018, e que é vendida para estabelecimentos da região. A transformação alimentar é uma das cinco áreas que integram o Centro de Atividades para a Capacitação e Inclusão.

 

Ainda na área agrícola, mas já ao abrigo da formação profissional, pretende-se intensificar, igualmente, o trabalho “no amendoal, que está em modo de conversão para produção biológica, no laranjal, nas produções hortícolas, com a produção de tomate, pepino, melão e abóbora, e no jardim”.

 

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No ano passado, até como parte integrante do processo de conversão do amendoal para produção biológica, deram início a uma nova atividade, a apicultura, que se revelou bastante positiva e que será para continuar a desenvolver.

 

Vera Lopes Neca reforça que a grande preocupação é que “os jovens clientes possam estar ocupados, que desenvolvam as suas competências, que sejam valorizados”. Se, aliado a isso, conseguirem “algum retorno financeiro para sustentar a atividade [da instituição], melhor ainda”.

 

Desadequada valorização do trabalho desenvolvido pelo terceiro setor A questão financeira, adianta a responsável, é, inevitavelmente, “um dos grandes desafios que se colocam à instituição”, ainda mais tendo em conta “a subida dos preços, quer dos combustíveis, quer dos produtos”, no entanto, há outro problema que condiciona a atividade da Cercibeja: a desadequada valorização do trabalho desenvolvido pelo terceiro setor.

 

“Notamos que a pandemia veio valorizar o trabalho que era feito pelas instituições do terceiro setor, mas ainda não foi o suficiente. Temos tabelas salariais que não valorizam aquilo que é o trabalho que nós desenvolvemos e isso cria-nos aqui grandes dificuldades, quer no recrutamento, quer na retenção dos recursos humanos de qualidade na nossa instituição. Entendemos que este trabalho deveria ser melhor valorizado. As pessoas podem gostar muito daquilo que fazem, mas é claro que a questão financeira é muito importante, e gostaríamos, como é óbvio, de poder retribuir financeiramente de outra forma as pessoas que trabalham nesta casa. O que acontece é que somos financiados com base nas nossas tabelas remuneratórias, portanto, mesmo que queiramos pagar mais, não é possível”. 

 

Volvidos quase 45 anos desde a fundação da instituição, Vera Lopes Neca considera que a Cercibeja tem vindo a contribuir para a valorização da pessoa com deficiência, para o reconhecimento das suas potencialidade, para a forma como “hoje é olhada”.

 

“Acho que temos feito um percurso bastante positivo, não só nesta questão da mudança de olhar que existe atualmente em relação à deficiência, mas também no desenvolvimento de respostas à medida que vão surgindo as necessidades”. E, ao nível, por exemplo, da integração dos próprios clientes em empresas e entidades da região, acrescenta, “tendo nós o tecido empresarial com as características que temos, ainda assim conseguimos que haja abertura por parte das entidades”.

 

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O PROGRAMA DAS COMEMORAÇÕES

As comemorações do 45.º aniversário da Cercibeja tiveram início no passado dia 15 com um “mega piquenique” nas instalações da instituição, destinado a clientes, colaboradores, sócios e familiares. Para dia 24 de maio está prevista a segunda edição da iniciativa “Sou solidário”, nas piscinas municipais de Beja, e em que “serão reconhecidas, de forma simbólica, todas as entidades que têm vindo a colaborar com a instituição ao longo dos últimos cinco anos”.

 

No dia 30 de junho terá lugar o já habitual sunset, que está de regresso à Quinta da Suratesta e que é aberto a toda comunidade. A 28 de julho, a Praia Fluvial dos 5 Reis acolherá uma “noite branca”, e, em dezembro, será realizada mais uma edição da “Noite Colorida”, um passeio pedestre pelas ruas da capital de distrito.

 

Está ainda prevista a realização de uma atividade final no Pax Júlia Teatro Municipal, em data ainda a definir, entre outubro e novembro, com a apresentação de um espetáculo criado no âmbito do “Desconfinarte”, que possa conjugar “as diferentes formas de manifestação artística trabalhadas ao longo do projeto”.

 

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