Texto José D'Encarnação
Guarda-se no Museu Rainha Dona Leonor, com o n.º de inventário MRB.03006, o monumento funerário de um senhor romano que teve como nome Marmorário. Apesar de quase ilegível, o seu epitáfio traz-nos muitas revelações.
Foi Leite de Vasconcelos quem, numa vinda a Beja, acabou por tomar apontamentos acerca das novidades que encontrara, sobretudo da época romana –“Analecta archaeologica”, chamou-lhes ele, “fragmentos arqueológicos”, e delas acabou por, de imediato, dar conta, como era seu hábito, nas páginas d’ “O Arqueólogo Português”, a revista do que era então o “seu” museu, em Lisboa, e é hoje o Museu Nacional de Arqueologia. A revista ainda se publica.
Foi logo em 1903, no volume VIII. Apenas duas páginas (164-165). Começa por informar que a pedra (“lápide cupiforme” lhe chama) proviera “das muralhas da cidade”, como, aliás, aconteceu com muitas outras, sobretudo, as mais volumosas, que eram óptimas para o aparelho fortificado.
Do letreiro, “já muito gasto”, leu a habitual consagração aos deuses Manes, própria do começo dos epitáfios romanos; o nome do defunto, “Marmorarius”; a idade com que ele falecera já se não conseguia perceber bem, mas andaria pela casa dos 70 ou 80. O que, porém, mais interessou Leite de Vasconcelos, para além da singularidade do nome, foi haver gravada, ao lado do espaço reservado ao epitáfio, “a figura de um machado”.
O MARMORARIUS
Houve ocasião de rever o monumento, que é de mármore de Trigaches. Mede 31 centímetros de alto por 51,5 de comprimento; no topo, o diâmetro anda pelos 37 centímetros.
Tem a forma de barril; por isso Leite de Vasconcelos o classificou de “cupiforme”, ou seja, em forma de cupa, palavra que, em latim, significa barril. Não é, como pode ver-se pela imagem, um daqueles monumentos bonitos e bem proporcionados, o que nos induz, desde logo, a pensar que não terá sido obra do próprio defunto em vida. Poderia ter pensado nisso, porque esse era o seu ofício; não pensou.
O seu ofício? Então Marmorarius não era o nome dele? Era. Diga-me lá então: não conhece vossemecê por i vários homens que têm Abegão de apelido? Exacto: foi abegão o avô dele, ou o bisavô, e de “Abegão” se começaram a chamar os descendentes!
Esta transformação da designação duma profissão em nome próprio já vem do tempo dos romanos. E, neste caso, a fama do senhor foi tal que, mesmo no epitáfio, os descendentes omitiram o nome verdadeiro e puseram aquele por que ele era conhecido e famoso, pois então! Quiçá o mesmo poderá dizer-se de outra inscrição de Beja, achada na herdade da Represa: o nome do defunto – Mercator – pode ter derivado de ter sido essa a sua profissão: mercador.
Já numa inscrição achada em Terena, no Alandroal, onde houve um santuário a uma divindade, o Endovélico, temos a informação de que uma senhora importante, Aurélia Víbia Sabina, tivera um escravo chamado Hermes (o nome grego do deus Mercúrio), que era marmorário. Aqui, a palavra tem o seu sentido próprio e não admira, porque, junto a esse santuário, tinha de haver uma oficina de canteiro, para dar vazão às encomendas de ex-votos de mármore de Estremoz/ /Vila Viçosa que os devotos queriam oferecer!
Está no Museu de Cádis a lápide funerária de Albanius Artemidorus, que faleceu aos 46 anos e de quem se diz que, amado pelos seus, exerceu em vida a profissão de “medicus ocularius”, oftalmologista.
Ainda sobre os trabalhadores da pedra pode citar-se Públio Publício Fortunato, que, pelos seus méritos, a província da Bética (actual Andaluzia) libertou e em cujo epitáfio se lê que foi “marmorarius signuarius”: nada menos do que escultor de estátuas!...
Não é muito frequente haver num epitáfio – mesmo na actualidade – a menção da profissão exercida pelo defunto. Tomamos essa referência como sinal do prestígio que teve, de que os familiares se orgulham, como, num outro domínio, o da toponímia actual, não é raro que do homenageado com o nome de uma rua se explicite que foi médico, advogado, ator…
UM "MACHADO"?
Leite de Vasconcelos desenhou mesmo um machado quando quis mostrar o que lhe pareceu ver na pedra. Era seu hábito esboçar logo uma imagem; nessa altura, não havia a facilidade das máquinas fotográficas e – muito menos! – as possibilidades que hoje se têm com melhor iluminação e análise.
Em 1984, portanto, já se preferiu ver aí o desenho esquemático de um maço, porque, enquanto o machado tem lâmina só de um lado, havia aqui representação, em rectângulo, de ambos os lados do olho central em que o cabo se inseria. O maço, que poderia ser de madeira rija, servia para bater no badame ou na goiva para se abrirem os rasgos das letras: com o badame, usado sobretudo no mármore, obtinham-se rasgos em bisel, que – por efeito da luz – possibilitavam o claro-escuro necessário para que a letra fosse legível; com a goiva, preferida para arenitos, o rasgo era em meia-cana.
Acontece, porém, que a interpretação de “machado” servia às mil maravilhas a Leite de Vasconcelos para falar do nome latino do machado, “ascia”. Ora, essa palavra aparecia nas inscrições romanas, com ou sem a respectiva gravura esculpida, na fórmula, por vezes em siglas: S. A. D., “sub ascia dedicavit”, “dedicou sob a áscia”. No território actualmente português apenas se encontrou, até ao momento, um desses letreiros, que Estácio da Veiga deu a conhecer em janeiro de 1883: do mausoléu de Lúcio Ácio Niso se diz, no seu epitáfio, que “está sob a áscia”.
Já tive ocasião de propor que, pela forma por que habitualmente é representada, a áscia seja uma simples enxó de arrunhar, “asse” em francês – palavra directamente derivada da latina ascia. De instrumento de tanoeiro, usado para preparar os caixões, a áscia passou, pouco a pouco, a ser esse símbolo protector: com ela, o artífice moldava a madeira a seu bel-prazer e das suas mãos saíam obras-primas; sob ela, descansava o corpo e o espírito no Além…
Todavia, no caso do nosso marmorarius, o que temos é a representação do instrumento principal do seu ofício: o maço!