Diário do Alentejo

Um ano após o início da guerra, cidadãos ucranianos só querem que o conflito "acabe o mais depressa possível"

03 de março 2023 - 10:00
Esperança...
Ilustração | Susa MonteiroIlustração | Susa Monteiro

No final de fevereiro de 2022, poucos dias após o lançamento da ofensiva militar na Ucrânia, Maksym, Mariya, Maryna e Mariia, quatro cidadãos ucranianos residentes no distrito de Beja, revelavam, ao “Diário do Alentejo”, os seus receios. Um ano depois, o maior desejo é que a guerra chegue ao fim o mais depressa possível.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

Volvido um ano desde o início da ofensiva militar lançada pela Rússia na Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022, Maksym Simka diz que o susto inicial, justificado pelo desconhecimento, foi-se esbatendo ao longo do tempo.

 

“Já não é tão assustador”, admite, “porque é algo” a que as pessoas se foram habituando “um pouco”, mas “continua a ser muito mau”, reforça. O técnico de som de 28 anos, que chegou a Beja em 2009, onde a mãe reside desde 2001, relembra que “há um ano falava-se que o conflito ia terminar muito mais cedo, em três dias, em duas semanas…”. Afinal, acabou “por se ir esticando e esticando e mantém-se até hoje”.

 

Nas “redes sociais, nas notícias ucranianas” que vai acompanhando, frisa, “as pessoas falam, com esperança, que um dia isto vai acabar”. Maksym prefere não fazer previsões. “Não sei, já se fala nisso há um tempo, mas não se vê o fim. É claro que queremos que isto acabe o mais rápido possível, mas não sei”.

 

O pai, com quem mantém contacto regular, continua a viver em Lviv, na zona mais ocidental da Ucrânia, até agora poupada pela guerra. Com pouco mais de 50 anos está impedido pela lei marcial de abandonar o país, assim como todos os homens com idades entre os 18 e os 60 anos. Antes da ofensiva era construtor civil, agora está desempregado. Vai-se “desenrascando” com alguns trabalhos que vão surgindo “aqui e ali”.

 

“Obviamente, não há trabalho nessa área”, sublinha Maksym, frisando que “o desemprego subiu muito”, pelas razões óbvias, e que a situação se complica mais pelo facto de “as pessoas que estão nas zonas conflituosas” procurarem refúgio “nas zonas mais calmas”, o que acaba por levar a que a oferta existente seja insuficiente. E o aumento dos preços dos alimentos contribui para piorar ainda mais o cenário.

 

Apesar dos cortes de luz algo frequentes em Lviv, Maksym diz não ter dificuldade em falar com o pai. Já o mesmo não se poderá dizer em relação ao tio materno que reside na zona de Khmelnitsky, uma cidade localizada na região central do país.

 

“O meu pai, em Lviv, na cidade, poderá ter umas 16 horas de luz por dia. O irmão da minha mãe, que mora numa aldeia, tem mais ou menos meia hora. Está a ser muito difícil falar com ele. Agora no inverno, só com meia hora de luz por dia, é complicado. Os dias são mais curtos e se não tiver luz à noite não tem nada para fazer, nem pode ler um livro, nada”.

 

Alguns dos amigos de escola de Maksym, que no início da guerra tinham fugido de Kiev, onde viviam, rumo às suas cidades de origem, também já regressaram à capital. “Fazem a vida normal, mas já há algum tempo, há uns quatro ou cinco meses”, conlui.

 

AS PESSOAS “FORAM-SE ADAPTANDO”Mariya Stefanysnyn, nascida há 48 anos na cidade de Kolomyya, na região de Ivano-Frankivsk, perto da Polónia e a cerca de 600 quilómetros de Kiev, uma “zona mais calma”, mas cuja base aérea foi “bombardeada” nos primeiros dias da invasão, considera que, passado um ano, não há muito a dizer.

 

“No princípio foi um choque. Foi assustador. Mas agora parece que as pessoas estão a habituar- se à guerra”, diz a funcionária de uma imobiliária em Beja, realçando que não deixa de ser surpreendente o facto de as pessoas saírem à rua, apesar do ambiente que se vive no país.

 

“Eu pergunto: então, vocês saem de casa? E eles respondem: sim, saímos. Pronto, estão a viver, mesmo que seja o último dia da sua vida. Foram-se adequando àquilo que está. Não têm luz, não têm. Mas ter luz é uma coisa, quando a pessoa morre é outra. A luz liga-se e desliga-se, mas quando a pessoa está debaixo dos mísseis, aí não há volta”.

 

A viver em Beja há duas décadas, mantém-se em contacto com os tios, primos e sobrinhas, que também residem mais próximos da Polónia. Estão todos bem, afirma, apesar de ser “complicado”, mas “não tanto como o que se está a viver do outro lado [na zona leste]”.

 

“No princípio as coisas estavam mais descontroladas. Agora as pessoas, por exemplo, já sabem a que horas vão desligar a luz. Não é tão grave como no outro lado do país”. Mariya admite que nunca pensou que o conflito “se prolongasse por tanto tempo”, contudo, mantém- se confiante na vitória da Ucrânia. Diz, convicta, “que vai ficar tudo bem, mas para chegar ao bem vai demorar ainda um tempo”.

 

“A parte leste [do país] já está destruída, pelo menos que a outra metade fique como está e que siga em frente. Mas o nosso maior desejo é que a guerra acabe, ponto final. E, claro, que a glória seja da Ucrânia, sem dúvida”.

 

“O QUE DESEJAMOS TODOS É QUE ACABE A FAVOR DA UCRÂNIA”

À semelhança de Mariya, também Maryna Pukayevych, de 42 anos e a viver há 22 em Beja, não previa que a guerra se arrastasse por tanto tempo. Um ano depois, a assistente operacional diz que o sentimento é de tristeza, “por durar há tanto e por morrer tanta gente”, e também de muito receio “que as coisas se agravem ainda mais”.

 

“O filho de uma amiga, com vinte e poucos anos, morreu em combate, o irmão de outra também. O tio de uma outra amiga, que era polícia, e que morava em Bucha [uma das cidades à volta de Kiev], foi encontrado morto em casa, com os braços atrás das costas”, lamenta.

 

A mãe de Maryna também não deixou a sua cidade, Odessa, mais a sul do país, na costa, uma das zonas atingidas pelos mísseis russos no primeiro dia de invasão. Continua a trabalhar em limpezas. Quando soam as sirenes que avisam a população para o risco de um ataque aéreo, esconde-se nas garagens subterrâneas, caso esteja a trabalhar. Se estiver em casa, não sai, porque os abrigos antiaéreos “ficam muito longe”.

 

Nas prateleiras dos supermercados, vai relatando nas conversas que tem com a filha, vão faltando alguns bem essenciais, como farinha, açúcar, arroz e massa. E os que não escasseiam, encareceram bastante. As falhas de electricidade também são constantes. Muito recentemente esteve “sem luz e sem água durante cinco dias”, o que, numa altura do inverno em que as temperaturas costumam descer alguns graus abaixo de zero, ainda se torna mais complicado.

 

“Ficou esse tempo todo sem aquecimento”, diz a assistente operacional. Mas, apesar das várias insistências de Maryna, a mãe recusa-se a deixar a Ucrânia. “Já disse que vou buscá-la, e ela diz-me que não vale a pena porque depois volto para trás sozinha. Há pouco disse-me que não pode pensar que viveu 70 anos num país e que vai morrer para outro e essas palavras tocaram-me um bocadinho mais. Pronto, é o que ela quer. Mas há dias em que ouvimos qualquer coisa que acontece em Odessa, ou perto, e voltamos à mesma conversa para ela vir para Portugal e choramos e ela diz que não vem”, conta.

 

O irmão e os sobrinhos também continuam a viver nos arredores de Odessa, numa aldeia. Como é pai de 10 filhos, oito deles menores, “ainda não foi chamado para combater”. Os sogros e os cunhados residem mais a sul da Ucrânia, próximo da fronteira com a Moldávia, numa zona “muito calma por agora”, mais rural, e onde vários refugiados ucranianos procuraram abrigo. Mas quando há quebras de luz, salienta, “desliga-se em toda a Ucrânia, não é por zonas”.

 

Maryna diz que a guerra não lhe “sai da cabeça há um ano”. Que não a deixa dormir. Apesar de viver a mais de quatro mil quilómetros da Ucrânia e de não estar de muitas conterrâneas que foram obrigadas a abandonar o país com os filhos, não deixa de ser angustiante.“Estamos em Beja há 22 anos, já podíamos ter nacionalidade portuguesa há muitos anos, e nunca optámos por isso porque somos ucranianos”, reforça.

 

Neste último ano acabou por dedicar algum do seu tempo a ações de voluntariado, quer promovendo a recolha de bens alimentares e de higiene para enviar para os soldados e população ucraniana, que encheram “um camião e um atrelado” – “Beja tem sido muito solidária com os ucranianos” –, quer servindo, a convite da Câmara de Beja, de intérprete das refugiadas que foram chegando à capital de distrito.

 

“Só vieram mulheres e crianças, e algumas, passados dois, três, quatro meses, abalaram para a Ucrânia mesmo estando em guerra. Não aguentaram. Mas outras continuam cá e estão a trabalhar. Têm casa alugada e estão mais ou menos bem. Eu continuo a ajudar naquilo que posso, com documentos, com consultas médicas. Estou disponível para ajudar no que for preciso”.

 

Maryna não sabe quando poderá regressar à sua terra natal. Gostaria que fosse o mais breve possível. Significaria que a guerra tinha chegado ao fim. “O que eu gostaria, se calhar como toda a gente no mundo, é que isto acabe o mais rápido possível. Já em setembro dizíamos: mais um mês e acaba. Claro que vai acabar, mas vai acabar com tudo destruído, com pessoas sem casas, com muita gente morta. Mas o que desejamos todos é que acabe a favor da Ucrânia, com um final feliz para os ucranianos, porque eles já merecem”.

 

A ESPERANÇA “EXISTIRÁ SEMPRE PARA QUEM É UCRANIANO”

A cada dia que passa, admite Mariia Danchuk, de 20 anos, as palavras para expressar o que sente em relação a toda a situação vivida na Ucrânia vão “escasseando”. Enquanto no início da ocupação havia “uma esperança diferente”, agora “parece que o mundo está a tentar entrar na normalidade, a continuar a viver, ignorando o que se está a passar, como se [existir] guerra em 2023 fosse uma coisa bastante normal”, lamenta, sublinhando que, apesar de todo o apoio que a Ucrânia está a receber “ser maravilhoso”, não é o suficiente.

 

“Vejo muita gente a ajudar a Ucrânia. As pessoas estão com fome, dão-lhes comida, mas depois voltam a estar com fome, por isso a guerra é que tem de acabar”, defende, reforçando que a solução para o conflito não está na ajuda militar vinda de outros países.

 

À semelhança dos familiares de Maksym, Mariya e Maryna, o pai de Mariia Danchuk também não abandonou a sua residência, na região de Lviv. Agora trabalha “como segurança num terreno” e, “desde que esteja com a farda do serviço”, não é importunado pelos militares que percorrem as cidades à procura de homens aptos a lutar. “O meu pai tem uma deficiência num olho, por isso estará nos últimos casos [a recrutar], mas, como me explicou, se no início isso fazia sentido, agora quando precisam de alguém não olham a atestados [médicos], a menos que realmente a pessoa não tenha mobilidade”, diz a jovem, que em 2013 chegou a Garvão, em Ourique, acompanhada pela mãe e que atualmente reside em Albufeira, onde trabalha na área da restauração.

 

Já o seu tio, que antes do início da ofensiva militar tinha conseguido sair com a mulher para a Polónia e que já regressou a casa, a Chortkiv, na região de Ternopil, a cerca de 200 quilómetros de Lviv, “recebeu uma carta para ir combater”, apesar de ter uma deficiência numa mão. “Tem só dois dedos, supostamente tem uma deficiência, mas o que lhe disserem é que ele ainda tem os outros, por isso dá para ir para a guerra”, conta.

 

A prima, que é médica e mãe de uma criança pequena, e que foi impedida de deixar a Ucrânia porque poderá ser mobilizada para a guerra caso seja necessário, continua a trabalhar num hospital na região de Ternopil, mas deixou de ter “horário fixo”. “Vai quando a chamam, quando faz falta”.

 

Tanto em Lviv como na região de Ternopil, diz Mariia, as principais queixas prendem-se com os cortes de luz frequentes, que surgem “sem aviso” e que podem “demorar dois, três dias”, com todos os constrangimentos que isso implica, por exemplo, ao nível da confeção e conservação dos alimentos e do aquecimento das casas, “porque o inverno é muito rigoroso”. As sirenes continuam a soar, apesar de o risco ser maior em Lviv do que Ternopil, e o recolher obrigatório também se mantém, “mas ninguém deixa de andar na rua”.

 

A situação mais complicada continua, contudo, a ser a do avô materno, que vive em Sumy, na fronteira norte da Ucrânia e próximo de Kharkiv (a segunda maior cidade do país), que também já foi alvo de ataques. “O meu avô continua a não conseguir sair de casa, porque aquilo lá é muito complicado. Houve um tempo em que tentaram resgatar pessoas, só que ele não foi embora e agora já não dá para ir. A minha mãe tentou que ele viesse para Portugal ou para outro sítio mais seguro, mais perto da Polónia, só que ele não quer”.

 

Mariia diz que não há ocupantes russos na zona, mas nunca se sabe quando poderá “cair uma bomba”, por isso têm de “estar sempre alerta”. A esperança num desfecho favorável “existirá sempre para quem é ucraniano”, garante ainda a jovem, mas admite que “vai diminuindo pouco a pouco”.

 

O seu maior receio é que “a guerra dure muito tempo, porque quanto mais tempo durar, mais estragos causará na vida das pessoas, ao nível psicológico”. Aliás, diz, muitos dos refugiados ucranianos com quem se tem cruzado nos últimos tempos na região algarvia “são diferentes” dos conterrâneos que já residiam em território nacional. Mas compreende-se que assim seja, admite. “Foram obrigados a sair do seu país e não querem isso. Vêm para cá sem terem uma casa, sem saberem falar português, sem saberem nada. As coisas são diferentes comparando com a Ucrânia. E isso só piora a parte psicológica das pessoas. São mais antipáticas, mas não é por mal. Só querem ir embora,porque nada é melhor do que a nossa casa”.

 

14 MILHÕES DE REFUGIADOS E 8006 CIVIS MORTOS CONFIRMADOS SEGUNDO A ONUDe acordo com os mais recentes dados da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgados recentemente pela agência “Lusa”, a ofensiva militar lançada a 24 de fevereiro de 2022 causou até agora a fuga de mais de 14 milhões de pessoas – 6,5 milhões de deslocados internos e mais de oito milhões para países europeus.

 

A ONU classifica esta crise de refugiados como a pior na Europa desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Neste momento, avança ainda a “Lusa”, pelo menos 18 milhões de ucranianos precisam de ajuda humanitária e 9,3 milhões necessitam de ajuda alimentar e alojamento.

 

E adianta ainda que a ONU apresentou como confirmados, desde o início da guerra, 8006 civis mortos e 13 287 feridos, sublinhando que estes números estão muito aquém dos reais.

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