Texto José d’Encarnação, Arqueólogo
Noticiou “O Bejense”, na sua edição de 14 de Outubro de 1893 (nº 1710), que a Câmara fizera «recolher no seu museu uma memória sepulcral em forma de pipa» com uma inscrição, que transcreve. Dois anos depois, nas páginas 265-226 do volume I, datado de 1895, da revista “O Archeologo Portuguez”, a revista que ele criara como órgão do museu que é hoje o Museu Nacional de Arqueologia, José Leite de Vasconcelos dava miúda conta desse achamento no Campo d’Oliva, «hoje jardim público, em Beja».
Tratava-se de «uma sepultura rectangular, de paredes de tijolo», na espessura das quais «havia pequenas cavidades em que se encontraram vários objectos»: «uma bonita lucerna de barro, com a figura de um quadrúpede no disco», «a valva de um pécten», «fragmentos de vaso, ou vasos, de vidro decomposto, restando ainda parte de um gargalo, com 0,045 m de diâmetro». Ainda na parede, carvão; «no centro da sepultura, estavam ossos queimados».
Adianta: «Sobre a sepultura havia uma pedra de calcário cristalino, com uma inscrição funerária (hoje no Museu de Beja». E que «a pedra, como é frequente no Sul, tem a forma de pipa». A terminar, Leite de Vasconcelos explica como se processara a cerimónia:
«O cadáver de Clarilla tinha sido queimado na fogueira fúnebre, depois do que se recolheram religiosamente no sepulcro os restos incinerados. À fogueira chamavam os Romanos rogus; a pilha de lenha, antes de arder, tinha o nome de pyra. A acção de recolher as cinzas e ossos queimados denominava-se ossilegium».
A INSCRIÇÃO
Vejamos, então, em primeiro lugar, o que diz a inscrição. O estudo de Leite de Vasconcelos fez com que o monumento entrasse de imediato no circuito científico internacional. A sua inscrição, que foi o que mais despertou a atenção, vem transcrita, por exemplo, no nº VIII, da revista “Ephemeris Epigraphica”, publicada em Berlim no ano de 1899 e consta, hoje, das bases de dados epigráficos romanos. Escrita em latim, como é hábito, poderá traduzir-se desta forma:
Consagrado aos deuses Manes. Aqui jaz Coceia Clarila. Viveu 80 anos. Pompeu (?) [ou Pompeia?] Comum pôs o monumento à digna de todo o merecimento.
A fórmula inicial acentua o carácter sagrado, inviolável, do sepulcro: está consagrado às divindades que acompanham ao Além o espírito do defunto e, por isso, quem o violar incorrerá no castigo divino. A princípio, como sempre acontece, havia respeito pelos mortos e não era preciso acenar com penas, mesmo que divina fossem. A partir de meados do século I da nossa era – no caso da Lusitânia romana – tornou-se necessário indicar, em siglas, essa consagração, porque os furtos começaram.
Recorde-se que, de facto, o sepulcro detém em si toda uma carga simbólica. O jornal “Expresso” mostrou, na edição de 22.12.1990 (p. 10 da revista), a destruição de sepulturas no cemitério judeu de Carpentras, localidade onde existe a mais antiga sinagoga francesa, acto significativo de ódio antissemita.
Vem depois a identificação da defunta: pertence à família dos Coceios e tem um nome, Clarila, nada frequente na epigrafia do mundo romano, pois, até ao momento, só se encontraram mais 5 testemunhos do seu uso. Também o nome da família, que foi o do imperador romano Nerva, não é corrente: cerca de uma dezena de exemplos na Lusitânia; encontrou-se o sepulcro de uma outra Coceia, Victoria de seu nome, no castelo de Beja e um dos devotos da divindade Endovélico, no seu santuário de Terena, é um cavaleiro romano, Sexto Coceio Cratero Honorino. Tudo isto para dizer que, mui provavelmente, Clarila tem ascendência itálica; a família poderá ter integrado os primeiros colonos da cidade.
Assinale-se a provecta idade com que Clarila morreu. É isso: provecta! Não significa que tenham sido mesmo 80 anos. Foram muitos! 2 x 40, dado que 40 era como que um número simbólico também, a indicar a idade perfeita. Era costume romano arredondar a idade em lustros.
O dedicante (ou a dedicante) do monumento identifica-se mediante a sigla do nome de família e com o nome Communis, que também é latino e… nada comum! Com efeito, trata-se do único testemunho encontrado na Lusitânia. E a que família terá pertencido? Preferiu não a explicitar, para o que podem encontrar-se duas razões: havia pouco espaço para a mencionar por extenso ou trata-se de família bem conhecida e que, por isso, facilmente seria identificada. Em todo o caso, realce-se não ter havido da sua parte a pretensão de se evidenciar; a importante era… Clarila!
E que relação terá havido entre Communis e Clarila? Temos sido tentados a ver na sigla M a palavra Matri, «à mãe», até porque vem de seguida o adjectivo ‘benemerente’ e afigura-se normal que haja também o substantivo correspondente. Preferimos, porém, desdobrar em ‘monumentum’ e, assim, eventual relacionamento de Communis com Clarila fica ainda mais no segredo…
UM BARRIL?
Em História da Arte, reconhecemos que um estilo acabou por incorporar pormenores típicos de cada região. Diz-se, por exemplo, que o manuelino é uma modalidade do gótico, assim como o plateresco de Espanha; concorda-se que o românico do Norte de Portugal difere do românico asturiano. E esta alusão aos estilos vem a propósito de esta forma de sepulcro se encontrar em diversas regiões do mundo romano. Chama-se-lhe cupa, vocábulo eruditamente trasladado do latim «cupa», que significa «barril, tonel».
É na zona de Pax Iulia que o monumento assume claramente a forma de barril, estando representados os aros que apertavam as aduelas. Na região de Lisboa, optou-se pela estilização, sem qualquer representação de aros; na cidade de Coimbra (a romana Aeminium) mais parecem arcas dos tesouros de piratas. Formas diferentes, concorda-se, de apresentar a mesma ideia. A pergunta surge, por conseguinte, natural e intrigada: «Um barril, porquê?».
Muitas explicações se têm dado; houve reuniões científicas expressamente dedicadas ao tema; monografias a expor detidamente propostas e contrapostas. Este falou que se aludia à bebida (ambrósia, o néctar dos deuses) com que o defunto se iria deliciar; aquele viu aqui um hino à riqueza vinícola do Alentejo, já em tempo de Romanos (não se encontraram grainhas de uva no lagar da villa de S. Cucufate, em Vila de Frades?...).
A explicação mais curiosa foi sugerida pelo arqueólogo suíço Waldemar Deonna (1880-1959) num texto publicado em 1946, com o título «Quando Deus rola os seus barris». Para ele, trata-se de uma homenagem à divindade do panteão gaulês Sucellus, «um deus tanoeiro, do vinho ou da cerveja, um deus da fertilidade e dos campos», que desempenhará, igualmente, funções celestes, na medida em que «o barril pode lembrar o trovão, cujo ribombar evoca o barulho provocado pelo tanoeiro, ao dar volta aos seus barris».
E conta Deonna, a este propósito, que, em 1556, quando um raio atingiu a catedral de São Pedro, em Genebra, o povo combateu o incêndio misturando na água uma grande quantidade de vinho, pelo que, conclui, se fica com a ideia de que «a água, de per si, não consegue apagar um incêndio ateado pelo céu!».
Por isso, Sucellus – assim representado pelo barril – é «o dono do fogo celeste e também um deus vinhateiro, cuja cólera, manifestada pelo ribombar do trovão, deve ser apaziguada pelo rolar dos barris». Em 1951, um dos maiores epigrafistas que trabalhou em Portugal, o romeno Scarlat Lambrino (1891-1965) manifestou-se conforme a essa interpretação, inclusive identificando Sucellus com a divindade Endovélico, venerada em Terena. E explica assim a cupa de Clarila:
«O túmulo estava, portanto, abaixo do nível do chão, enquanto que o barril, longe de conter os restos mortais da defunta, mais não era do que o signo simbólico do túmulo».
Confirma, desta sorte, a hipótese aventada por Deonna: a cupa, símbolo da felicidade eterna, a bebida sagrada que inebriaria o defunto no Além. Quem visita a aldeia de Matmata, na Tunísia, não deixa de ficar surpreendido não apenas por os seus habitantes viverem abaixo do nível do solo mas também por ser abobadada a parte superior (o tecto, dir-se-ia) das suas grutas. Inclusive, o «hotel» segue esse paradigma de tecto em abóbada.
Quem visita o Alentejo profundo e entra na frescura duma das suas casas antigas, não deixa de admirar a lindeza que é o tecto em abobadilha, uma técnica que já poucos sabem arquitectar mas que importa não perder, pelo conforto que empresta à habitação e por se tratar de uma prístina tradição radicada nas condições climatéricas próprias da região.
Por consequência, a cupa romana pode não ser mais do que a representação singela da mansão eterna, simbolizando a cobertura em abóbada das casas e deixando o defunto a olhar para a abóbada celeste. Tal como se começou por dizer em relação aos estilos artísticos, também os artífices assumiram as tendências de cada uma das regiões: aqui, a representação realista dum barril; acolá, o baú do tesouro dos piratas; mais além, a estética doçura das linhas suaves que o mármore brando melhor permitia esculpir.
Donde veio este modelo? Das costas mediterrânicas, tanto da africana como do Médio Oriente. Prosperou, por exemplo, em Barcelona. Chegou, pelo Atlântico, à região de Lisboa; chegou a Pax Iulia, vindo de Mértola.
Lavrada no mármore de Trigaches, a tampa do túmulo de Coceia Clarila é, seguramente, a mais elegante dentre o significativo conjunto das cupas alentejanas. E bendizemos o facto, lamentavelmente fora do comum, de nos haver sido pormenorizadamente transmitido o significativo espólio que na sua sepultura foi encontrado.