Diário do Alentejo

Demência, o que a pandemia afetou

24 de setembro 2022 - 09:15
Pandemia de covid-19 atrasou referenciação de doentes com suspeitas de demência e agravou casos já diagnosticados
Ilustração | Susa MonteiroIlustração | Susa Monteiro

A Equipa de Psiquiatria Geriátrica da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba) tem vindo a registar, nos últimos seis meses, “um aumento significativo” do número de pedidos de consulta para doentes com suspeita de demência. Devido à pandemia, adianta o coordenador da referida equipa, nos últimos dois anos “houve um atraso na referenciação” de doentes.

 

Por outro lado, sublinha Vasco Nogueira, em algumas “pessoas que já tinham um declínio cognitivo em marcha verificou-se um agravamento significativo dos sintomas”. No passado dia 21, assinalou-se mais um Dia Mundial da Doença de Alzheimer, uma das formas mais comuns de demência.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

Os primeiros sinais de que algo não estava bem surgiram antes do início da pandemia de covid-19. J., de 89 anos, sempre foi “um pouco distraído”, mas a família começou a aperceber-se de pequenos esquecimentos que não eram habituais.

 

“Ainda está no início, não é uma coisa muito visível. Ainda é, digamos, uma pré-demência. Está a ser acompanhado pela consulta de gerontopsiquiatria do hospital de Beja, está a ser medicado, mas o tipo de demência ainda não está definido”, conta C., nora do octogenário.

 

Nota-se, no entanto, diz, que a situação se agravou nos últimos dois anos com a pandemia. “Houve um declínio muito grande”. Os sogros tinham por hábito frequentar um centro para a terceira idade, faziam ginástica e participavam em excursões. Tinham “alguma atividade social que também ajudava”.

 

Com a covid-19 “foram dois anos praticamente fechados em casa”, sem grandes contactos com família, a não ser por telefone.

 

“Se formos buscar conversas do antigamente, ele lembra-se de tudo. Das coisas mais recentes é que não. Não sabe se comeu ou não, não conversa muito, às vezes confunde os nomes dos filhos e dos netos. Ao telefone, por vezes, não sabe muito bem com qual dos filhos está a falar. A minha sogra tem alguma dificuldade em andar e o meu sogro tinha sempre o cuidado de a ajudar a sair do carro e de a ir encaminhando. Agora não, esquece-se dela, deixa-a no carro e atravessa a estrada sem olhar para trás. Todos os dias é uma coisinha diferente e um bocadinho mais”, acrescenta.

 

J. vive com a mulher, de 90 anos, e com uma filha. O marido de C. tenta “passar todos os dias na casa dos pais”. Apesar de “estarem bem fisicamente e de tratarem ainda da sua higiene diária”, contam com apoio domiciliário, “porque já tinham alguma dificuldade em fazer a comida”, sublinha a nora. “A minha cunhada trabalha, só chega ao fim da tarde, portanto, é a minha sogra que está com meu sogro durante o dia. O outro filho, apesar de viver em Beja, trabalha num outro concelho, por isso também não é fácil”.

 

C. diz que vão tentando gerir a situação o melhor que conseguem, porque “todos têm as suas vidas, filhos, trabalho”. “Por exemplo, ao fim de semana levamos a comida e vamos lá a casa almoçar com eles ou às vezes vão eles a nossa casa, para manter este contacto e ele ir vendo as nossas caras. Vamos tentando estar presentes o máximo que podemos”.

 

De acordo com o coordenador da Equipa de Psiquiatria Geriátrica da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba), tem vindo a registar-se, nos últimos seis meses, “um aumento significativo” do número de pedidos de consulta para doentes com suspeita de demência, “uma designação abrangente para todo e qualquer tipo de declínio cognitivo que seja progressivo e irreversível”, explica.

 

Devido à pandemia, adianta Vasco Nogueira, “houve um atraso na referenciação” de doentes, uma vez que “os familiares não estiveram tão próximos uns dos outros, as pessoas suspenderam muitas das suas rotinas, portanto, ninguém reparou”. Com a retoma do funcionamento normal dos cuidados de saúde primários, “os pedidos de consulta” começaram a surgir.

 

“A pandemia foi particularmente dura e penosa para uma parte da população mais velha, porque foi a população que se viu muito privada do contacto social, das respostas que tinha a nível da comunidade, por exemplo, os centros de dia, casas do povo. Ficaram muito isolados – também por se tratar de uma população de risco em termos da covid –, muito pouco estimulados. E isso significou que não só o controlo de uma data de fatores de risco foi menos rigoroso, até porque houve consultas, análise e exames regulares que foram suspensos, mas também a nível de rotinas houve muita coisa que foi mudada e que foi suprimida, coisas que os ajudavam a estar ativos e a funcionar bem em termos cognitivos”.

 

Por outro lado, sublinha o médico psiquiatra, em algumas “pessoas que já tinham um declínio cognitivo em marcha, que já estavam num processo demencial, verificou-se um agravamento significativo dos sintomas”.

 

Vasco Nogueira reforça que alguns idosos “passaram muitos meses, às vezes um ano, até quase dois, praticamente isolados”, uma situação que “não só os privou da estimulação cognitiva, sensorial, física e social, mas também trouxe outros problemas, nomeadamente, o aumento da obesidade por via do sedentarismo, os quadros de depressão associados ao isolamentos, que, por sua vez, também precipitam e aumentam o risco para desenvolvimento de demências”.

 

“O impacto da pandemia é muito relevante e, acima de tudo, de uma forma indireta e prolongada no tempo, ou seja, agora estamos a começar a ver o impacto no sentido mais abrangente e mais prolongado da pandemia, não de forma directa, por lesão induzida pelo vírus, mas por estas vias todas”, diz.

 

A idade não é o único fator de risco, frisa o responsável, mas “a partir dos 65 a incidência de quadros demenciais, Alzheimer [uma das formas mais comuns] e não só, aumenta de uma forma exponencial a cada cinco anos”, o que significa que “qualquer pessoa que viva acima dos 70 anos, depois 75, depois 80, vai ter naturalmente uma probabilidade muito aumentada de desenvolver um quadro de demência”.

 

O facto de as mulheres apresentarem uma esperança de vida mais elevada do que os homens é precisamente um dos fatores que explica que sejam mais afetadas. Mas há outras justificações, nomeadamente, “a associação a fatores de stresse, como o que ocorre nos quadros de depressão”, diz o médico psiquiatra.

 

“Sabemos que há uma incidência muito significativa de depressão nas mulheres em comparação com os homens e isso é muito marcado ao longo de toda a vida e também nas idades mais avançadas”.

 

Vasco Nogueira sublinha que é importante estar atento a sinais de alerta, particularmente, a partir da terceira idade, mas que “importa não confundir com alarmismo”. “Há sinais e sintomas que têm um significado particular e que devem suscitar a procura de ajuda”, diz.

 

É o caso de uma “uma mudança considerável face a um nível prévio de funcionamento, de autonomia, de execução de tarefas, de memória, no reconhecimento das coisas, no uso das palavras”. Ao nível da memória, explica, o que é relevante “são as falhas de memória para episódios recentes, para o que se fez ontem ou há três dias”. Igualmente importante “é a desorientação espacial”, situações em que a pessoa “sai à rua e depois não consegue encontrar o caminho de volta para casa”.

 

Preocupante, ainda, é a “pessoa olhar para quem lhe é mais próximo, familiares ou vizinhos, e não reconhecer as caras”.

 

PREVENÇÃO É ESSENCIAL 

 Segundo dados divulgados pelo coordenador da Equipa de Psiquiatria Geriátrica da Ulsba, entre junho de 2021 e maio deste ano foram efetuadas, naqueles serviços, 1721 consultas médicas, sendo 474 primeiras consultas, 843 consultas de enfermagem (369 primeiras consultas), 56 visitas domiciliárias, 172 sessões de avaliação de neuropsicologia e 135 sessões de terapia ocupacional.

 

Embora não disponha de momento de dados estatísticos exatos, Vasco Nogueira revela que “a percentagem de consultas realizadas a doentes com demência é bem superior às restantes patologias, perfazendo cerca de 75 por cento”.

 

As formas mais comuns, adianta o responsável, são a doença de Alzheimer, a demência vascular e “uma forma mista em que ambas estão presentes”. No conjunto das formas mais raras, “embora também importantes”, o coordenador destaca a demência de corpos de Lewy, “que também tem alguma relevância”.

 

De acordo com o médico psiquiatra, em Portugal, vivem cerca de 200 mil pessoas com uma demência, número que “provavelmente irá disparar”. As estimativas mais recentes apontam para mais de 350 mil pessoas com demência em 2050, a nível nacional.

 

No caso do distrito de Beja, diz Vasco Nogueira, o aumento “será superior” comparativamente a outras áreas do País, tendo em conta “a combinação de vários fatores”, como a elevada percentagem de idosos e “uma cobertura menos robusta pelos serviços de saúde, nomeadamente, na área da medicina geral e familiar”.

 

“Temos populações muito envelhecidas, com dificuldades de deslocação, com dificuldades no acesso aos cuidados primários de saúde, em terem um seguimento regular pelo médico de família, um controlo eficaz de fatores de risco. Coisas fundamentais para prevenir a demência”.

 

Face ao cenário, e tendo em conta que para a maioria das demências não existe tratamento curativo, mas “a possibilidade de atenuar ou de travar o processo” de acordo com as causas, o médico psiquiatra considera que a prevenção é essencial. “Ter uma boa reserva cognitiva e diversificada, um controlo rigoroso dos fatores de risco – tensão arterial, colesterol, diabetes –, e praticar exercício físico regular são coisas em que vale a pena apostar”.

 

Vasco Nogueira frisa, contudo, que se deve “pensar a longo prazo”. “Se conseguíssemos ter isto interiorizado desde a quarta década de vida – as questões ligadas à saúde, à alimentação, aos hábitos tabágicos e alcoólicos –, provavelmente conseguiríamos reduzir uma parte significativa dos quadros demenciais, sobretudo, aqueles em que se devem a demência vascular ou multi-infarto, ou seja, têm um pendor metabólico muito marcado”.

 

No entanto, sublinha, “a prevenção não é só individual”, deve ser também “do próprio Serviço Nacional de Saúde (SNS)”.

 

“Temos de ser capazes de por os cuidados de saúde primários a fazer aquilo que é o seu papel, que é tratar da saúde e não só tratar da doença, mas para isso é preciso que sejam reforçados”, diz o coordenador, adiantando que as estruturas comunitárias, nomeadamente, os centros de dia, as universidades sénior e organizações “que permitam o convívio, interação social, a estimulação cognitiva”, também são fundamentais neste processo.

 

PLANO REGIONAL PARA AS DEMÊNCIAS PERMITE "UNIFORMIZAÇÃO DE PROCESIMENTOS" 

 Vasco Nogueira, que é também membro da Coordenação Regional de Saúde Mental do Alentejo, responsável pelo acompanhamento do Plano Regional para as Demências da região Alentejo, “prestes a ser concluído e aprovado”, sublinha que no âmbito do referido plano está a ser preparado “um guião de referenciação para os médicos de família, para auxiliar e sistematizar o diagnóstico”, para que, por um lado, “não se deixem passar casos de pessoas com demência”, mas, por outro, “porque também temos de ser muito rigorosos sob pena de inundarmos os serviços, que são escassos”.

 

O que se pretende com o plano, de uma forma geral, acrescenta, “é transpor para a realidade local aquilo que são as directrizes fundamentais” no âmbito das demências, envolvendo profissionais e comunidade em geral. Ao nível das respostas necessárias no pós-diagnóstico, por exemplo, o plano prevê um financiamento específico, contemplado no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), “para educação e capacitação” dos vários profissionais envolvidos.

 

Para o coordenador, o Plano Regional para as Demências da região Alentejo permite dar “um passo importante na sistematização, na uniformização de procedimentos, e não sendo isso, enfim, o que resolve as coisas, é um passo sem o qual tudo o resto fica por fazer em condições”.

 

Não será, porém, “suficiente”, sobretudo, “perante o aumento de pedidos” de consulta, “as fragilidades do próprio SNS e os dois anos de pandemia a que teve de dar resposta”. Mas “é um instrumento fundamental até para se justificar o reforço das equipas”, diz.

 

“O facto de estarmos todos a falar a mesma língua e a funcionarmos de uma forma, mais ou menos, semelhante, vai-nos ajudar a perceber ao certo que carências específicas temos, onde é que é preciso corrigir, quais as experiências positivas de uma unidade de saúde que vale a pena transpor para outra e vice-versa”, conclui.

 

C. está consciente de que “de um dia para o outro”, o sogro poderá, por exemplo, acordar e não reconhecer a mulher. “A situação pode agravar-se, porque nunca melhora, pode estabilizar com a medicação, mas melhorar não vai melhorar”, diz.

 

E é para essa possibilidade que vai tentando alertar o marido, os cunhados e a sogra, “para irem aceitando”. Reconhece, no entanto, “que para eles é muito difícil”, especialmente para a sogra. “Ela tem mais dificuldade em aceitar, em pensar que não poderá contar com ele. É uma vida inteira juntos, estão habituados um ao outro”.

 

O IMPACTO NOS CUIDADORES 

O coordenador da Equipa de Psiquiatria Geriátrica da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo chama ainda atenção para o impacto que as demências têm nos cuidadores, que “são expostos a um nível muito superior de stresse e de desgaste, de tal ordem que temos com muita regularidade síndromas de exaustão dos cuidadores que acabam por exigir também um tratamento e um acompanhamento especializado”.

 

Vasco Nogueira sublinha que “é normal” o cuidador “sentir-se farto, exausto, incapaz”, o que não significa, no entanto, que tenha “falta de vontade, de apreço ou de afeto”. “Os cuidadores, sobretudo os filhos e filhas, e às vezes os cônjuges, sentem uma culpa terrível por se sentirem assim. Mas significa apenas que a pessoa precisa de ser acompanhada e tratada”.

 

Por isso, reforça, caso apresentem estes sinais de alerta, os cuidadores deverão “pedir ajuda”, porque “melhorando o cuidador, melhoraremos a pessoa com demência que está ao seu cuidado”.

 

 

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