Texto José Taborda, professor
FÉRIAS E 'VINHAS' ...
Quando a campainha soava, anunciando as férias grandes, certa a passagem de classe, lá vinha eu, de volta à luminosa liberdade do Alentejo. Para trás ficavam o sombrio ambiente da velha sala de aula e os ventos frescos de Queluz. Nas semanas seguintes, de dias longos, que eu queria infindos, a Vila Alva era, outra vez, a minha casa. Insatisfeito com as ruas e travessas da aldeia, que me tolhiam já as aventuras, depressa comecei a atrever-me pelos campos ao seu redor… a ribeira, a oeste, então de curso livre e caudais libertos, pois a barragem de Albergaria dos Fusos estava ainda por chegar… a serra, a norte e a nascente, com o medonho, para mim inalcançável vale da ursa, que ouvia dizer coberto por uma impenetrável mata e… claro… a sul… a baixa das ‘vinhas’ e o seu labiríntico rendilhado de caminhos e veredas, que cedo fui mapeando… como via a Livingston na série “As nascentes do Nilo”, então a passar na monocromática televisão portuguesa, mas que eu adaptava, a cores, para… “As origens da Vila Alva”. Os territórios desconhecidos do sertão africano, feitos de matas e florestas recheadas de perigos, cria eu atravessá-los em temerárias jornadas, que iam de Malcabrão às míticas Pedras das Zorras, com estratégicos acampamentos junto às ruínas da ermida de São Bartolomeu. Tudo lugares recheados de mistérios porque, como os mais velhos se lembravam de ter escutado aos antigos, fora ali, já entre vinhas e oliveiras, que a Vila Alva tinha há muito sido, antes de ser onde é, num passado recuado à época romana, mas cuja presença humana, como o sítio de São Bartolomeu parece testemunhar, será muito anterior… e continuada até aos nossos dias.
Chegados os meses de Verão, o caldeirão das ‘vinhas’ transbordava de mélicas oferendas, que faziam a delícia de todos e enchiam as despensas de Vila Alva. Das várias qualidades de pêras – pérola, ramalhete e seramenhos – às balsâmicas maçãs riscadinhas, das sumarentas variedades de ameixas, aos figos – os de São João e os melíferos de Santa Maria – dos refrescantes melões e melancias às amêndoas e, naturalmente, as uvas, que nessa altura apenas a baixa das ‘vinhas’ oferecia… tudo naquele oásis crescia e tudo na sua época se colhia, em acções de graça.
Lembro-me de que foi numa dessas frescas, orvalhadas e aromáticas manhãs de Agosto, antes de o Sol abrasar… No carro da mula, de bicicleta, escarranchados no burro, toda a casa descera às ‘vinhas’, em alegre chinfrim, num ritual que todos os anos se repetia. Era o tempo de colher o fruto das três figueiras crescidas na propriedade ao rés do barranco. Eu, há muito que ouvia falar daquela ‘ruína’ aos meus tios… e, só de escutar a palavra, logo em mim a imaginação se alvoroçava… Por isso, dessa vez, não resisti e enquanto uns comiam, outros empoleirados colhiam e os mais velhos cuidadosamente arrumavam os figos em velhas cestas de vime… aproveitando a algazarra e a distracção… sorrateiramente… escapuli-me… Bolsos dos calções ‘acagulados’, corri ali perto, a conhecer São Bartolomeu… Finalmente!… O que fui encontrar já então era a ruína de um templo ao abandono, esventrado e à mercê da brenha, dos bichos e do tempo… ainda assim, ou por isso mesmo, cenário ideal para novas e fantasiosas peripécias com primos e… burros.
A ERMIDA ...
A ermida de São Bartolomeu, o que dela ainda sobra, localiza-se cerca de 3,5km para sudeste de Vila Alva, a escassos 125m, do lado esquerdo, da estrada N258 que liga Vila Alva a Vila de Frades. As suas coordenadas geográficas são as seguintes: Latitude 38º13’29.83’’N; Longitude 7º52’31.32’’O; Altitude: 215m.
Desconhece-se com rigor os detalhes da sua origem religiosa. Segundo Espanca (1992), a sua fundação deverá remontar a fins do século XVI ou alvores do imediato. Aberta a ocidente, a pequena ermida apresenta, ainda segundo as palavras do mesmo autor, corpo de nave alongado, rectangular, distribuído em dois tramos separados por arco redondo. A abside tem forma quadrada e é antecedida por vulgar arco pleno. São as seguintes as dimensões interiores do templo: nave – 7,20mx5,30m; capela-mór - 3,25mx3,25m (Espanca, 1992).
Seguindo ainda as palavras de Espanca, a abóbada da abside, lançada em nervuras de aresta, assim como os prospectos laterais e a cabeceira, apresentam vestígios de pinturas murais arcaicas, porventura de alvores seiscentistas, identificando-se no alçado do lado do Evangelho, um Santo Bispo talvez São Brás. Franco et al. (1992), para quem este ‘fresco’ poderá, efectivamente, representar São Brás, em meio corpo, com seu pluvial de ornatos, báculo e mitra, abençoando com a mão enluvada, são de opinião que a pintura, com certa qualidade, mostra características arcaizantes que fazem supor se trate de obra ainda da primeira metade do século XVI.
Em 1763, o Padre João Baptista de Castro, no seu ‘Mappa de Portugal’, discorrendo acerca da devoção especial que os povos da cidade de Beja e vilas da sua comarca costumavam ter a vários santos, refere-se, a propósito de Vila Alva, a ‘S. Bartholomeu entre as vinhas’. Contudo, cinco anos antes, em 1758, o Prior de Vila Alva, Antonio Luiz Correa, em as ‘Memórias Paroquiais’, aludindo à ermida de ‘Santo Bartholomeu’ filial da paroquia e pertencente à jurisdição do Excelentissimo Ordinário do Arcebispado, acrescentava que não acudia a ela romagem. Esta ausência de peregrinação à ermida de um santo de especial veneração poderá ser explicada pela necessidade de obras em que o edifício se encontraria à época. Com efeito, no testamento do Prior da Igreja Matriz de Vila Alva, o Padre Manoel de Saldanha, documento de meados do século XVIII, lê-se o seguinte relativamente à venda de um olival que lhe pertencia: “[…] do preço d’elle darão dez mil reis para se consertar a hermida do Appostôlo São Bartholomeu sita nas vinhas d’esta freguesia de Vill’Alva, ou se gastarem naquillo que fôr de maior utelidade e de maior agrado do dito Santo, a beneplacito do Reverendo Prior seu sucessor […]”. Se, de facto, se efectuaram as obras de conserto da ermida, não temos conhecimento.
Somente no início do século XX, ano de 1904, voltamos a ter notícia de arranjos em São Bartolomeu, da iniciativa da Junta de Paróquia da Freguesia de Vila Alva. Trata-se de um orçamento de 15.000 reis relativo a mão-de-obra, oito dias de pagamento a ‘alvaneu’ e servente, e a materiais: 500 telhas; 1 trave e 6 dúzias de ripas. Despesas respeitantes, por certo, ao amanho de telhados.
A última notícia alusiva à necessidade de intervenção na ermida é do ano de 1939 e envolve a ‘Sociedade Vilalvense 24 de Agosto’. Nela pode ler-se que o senhor José Carvalho, falando em nome da direcção daquela colectividade, solicitava aos amadores do grupo teatral que fizessem mais um esforço tendente a angariar novos fundos para o arranjo da Igreja de São Bartolomeu.
OS 'MARTÍRIOS' DE SÃO BASTOLOMEU ...
Ora, terá sido por essa altura, anos trinta do século passado, que chegaram ao fim as romarias a São Bartolomeu e as festividades populares ao redor da sua casa. Vozes ainda entre nós testemunham que seria muito concorrida a festa. Que no dia do santo apóstolo, celebrado a 24 de Agosto, a camioneta de aluguer do Jordão não descansava, levando e trazendo gente, para baixo e para cima, entre a vila e as ‘vinhas’. Que da parte da tarde, depois do borrego comido à sombra das oliveiras, e bem regado com vinho da talha, havia procissão ao redor da igreja. E que a animação era tal que, não raro, a festa degenerava em cenas de bordoada entre os de Vila Alva e os vizinhos de Vila de Frades. Conta-se ainda que, dias depois daquela que haveria de ser a última romaria, a imagem do santo foi encontrada em cacos no interior da ermida. Este novo martírio de Bartolomeu, corria então à boca pequena, terá sido a solução que o dono de uma das vinhas próximas à ermida encontrou para acabar de vez com os roubos, estragos e prejuízos que, ano após ano, os romeiros lhe causavam à propriedade. Vingou, e de vez, a nova mortificação do santo!...
… Desde a primeira vez em que nela entrei, já telhado e abóbada não tinha, até hoje, sem coragem nem devoção para se reatar a tradição, tem-se deixado a igrejinha, discreta mas inexoravelmente, descer à terra… As paredes que se mantêm de pé, de tão fendidas, ameaçam o colapso. Incapazes de lhe acudirem, as oliveiras centenárias que ao redor lhe fazem guarda, olham inconsoláveis aquela velha irmã, que algumas, nos idos de Quinhentos, terão visto levantar-se do chão, encantadora na sua alvura e singeleza… Há poucos anos, sete, oito, foi a vez do arco redondo, que separava os dois tramos da nave, vir ao chão… com estrondo!
E chegamos a Abril de 2022. Como se se pretendesse ocultar o fim anunciado, uma cerca, ornada de expressivo arame farpado, trava o acesso à ruína. Veda-nos a visita ao guardião do templo, por certo de rosto e vestes mais esmaecidos e de bênção encoberta em desprezo e esquecimento. Mais… à sombra do santo, medra agora um amontoado de estranhos “edifícios”. Deixo a pergunta… Em que singularidade se transverteriam as ‘vinhas’ de Vila Alva se, pelas incontáveis minúsculas parcelas em que se pulveriza esta encantadora depressão, viesse a brotar algo semelhante ao que se encostou a São Bartolomeu?...
Entretanto, também por perto, num raio de poucas dezenas de metros, envoltos noutros abraços farpados, hinos de louvor ao quero, posso e vedo, persistem os vestígios de outros tempos, deixados por antepassados nossos, mais remotos e incógnitos. Mas todos, sem excepção, votados à incúria da ignorância.
RUINAS, PATRIMÓNIO E FUTURO
Entre essas marcas de um passado mais distante, de destacar pela sua proximidade e interesse:
- Um bloco de rocha (1,90m de comprimento máx. por 1,00m, de largura máx.) com uma ‘pia’ inscrita, de forma troncocónica (35cm de diâmetro por 25cm de profundidade). As superfícies do bloco adjacentes à ‘pia’ apresentam suave concavidade e polimento. Ocorre-me a hipótese de se poder tratar de um instrumento de moagem de idade pré-histórica (neolítico? calcolítico?). Não muito longe, na margem esquerda da ribeira de Malcabrão, encontra-se uma outra pia muito semelhante a esta;
- Vestígios de uma forja, presumivelmente romana (Mantas, 1986), atendendo à presença abundante de escória de ferro nas proximidades da ermida;
- Vários afloramentos rochosos com evidências de extracção de blocos e muitos testemunhos da utilização de cunhas de tipo romano. Estas pedreiras podem ter alimentado a edificação das vizinhas villas romanas de São Cucufate e das Pedras das Zorras.
- Um fragmento de fuste com gola, em mármore (altura=70cm; perímetro=58cm), encontrado, na década de 1980, junto à ermida. É, talvez, uma peça romana trazida de uma villa próxima. Espanca (1992) interpreta-a como tendo pertencido ao derrubado cruzeiro do templo, função para a qual terá sido adaptada. Foi a peça primeira, a partir da qual levedou o acervo arqueológico do pequeno museu da Santa Casa da Misericórdia de Vila Alva;
- Várias moedas de bronze e de cobre, achadas nas imediações da ermida, desde romanas, até portuguesas da segunda dinastia, como ceitis, atestam, também, a antiguidade e a persistência da presença humana na área.
Todos estes vestígios, de significativo interesse histórico e arqueológico, transformam São Bartolomeu às ‘vinhas’ num sítio de destaque no puzzle da história local. Mereceriam, por isso, alguma atenção, defesa e divulgação através, por exemplo, da sua sinalização e integração numa pequena rota que envolvesse, AQUI SIM(!), as vinhas ‘centenárias’ da freguesia de Vila Alva.