Texto João Taborda
Estelas medievais… Como durante muito tempo foi uso e tradição por tantos lugares, também em Vila Alva e nas vizinhas Vila Ruiva e Albergaria dos Fusos se procedeu, desde épocas recuadas e durante séculos, à inumação em redor das igrejas… de Nossa Senhora da Visitação, de Nossa Senhora da Encarnação e de Nossa Senhora do Outeiro. Dessa prática, chegaram até nós algumas cabeceiras de sepultura (estelas funerárias discoides), vestígios derradeiros dos cemitérios medievais de Vila Ruiva e de Albergaria dos Fusos.
Ainda no final da década de oitenta do século passado era possível verem-se, in situ, três dessas estelas, cujos topos afloravam à superfície do terreno, junto à parede sul da Igreja de Nossa Senhora da Encarnação, em Vila Ruiva. Desconhece-se o seu paradeiro… Uma quarta, epigrafada, foi, também por essa altura, recolhida a um canto da sacristia daquela igreja. Três outras ainda foram recuperadas pela equipa do Museu da Misericórdia de Vila Alva. Integram, desde então, o seu acervo arqueológico.
Também do cemitério medieval de Albergaria dos Fusos se conhecem duas estelas discoides. De uma delas, entretanto desaparecida, deu conta, em 1945, Abel Viana. A outra, belíssimo exemplar epigrafado (cursivo do final do século XV ou princípio do XVI), a aguardar publicação, encontra-se no Museu da Misericórdia de Vila Alva (Est.*), onde em boa hora deu entrada, antes de ter protagonizado descaminho idêntico ao da previamente referida.
Em Vila Alva, tanto quanto sei, não foram encontradas estelas discoides, nomeadamente no decurso das obras de requalificação da Praça da República, empreendidas na década de quarenta do século XX. Contudo, também o adro da Igreja de Nossa Senhora da Visitação deverá ter sido espaço de inumações. A parecer confirmá-lo, o testemunho de quem ainda se lembra de, durante as gostosas pausas de descanso, entre correrias pelo pátio da escola de Adães Bermudes, serem, não raro, encontrados fragmentos ósseos, à sombra dos seculares contrafortes do muro sul desta igreja
… Sacras pestilências… Mas se eram comuns os sepultamentos na envolvência dos templos, também o eram no seu interior, debaixo do lajedo, quantas vezes sob uma delgada camada de terra. Das consequências para a saúde pública de uma tal prática dá conta a acta da sessão de Fevereiro de 1821 havida nos paços do concelho de Vila Alva:
“[…] Aos cinco diaz do mez de Fevreiro de mil outo centos e vinte e hum annos nesta Villa Alva e Passos do Concelho della em Auto de Vereaçaõ em que estavaõ os Camaristas deste Senado com o seu Juis Presidente por este foi proposto que tendo-lhe representado o Cirurgiaõ do Partido desta Villa, e mesmo mais algumas pessoas do povo a infecçaõ em que se achava a Igreja Matriz por causa da má ordem com que ahi se davaõ os Corpos á Sepultura, demorando-se mt.º antes de sepultados, naõ se profundando as sepulturas como devem, e naõ havendo roteiro das mesmas, e demais a mais a visível ruina das campas de madeira, e que para remediar estes males, que tem chegado athe ao ponto de se mandar o Santissimo Sacramento para outra Igreja, deo elle dito Juis as providencias que estaõ ao seu Alcance, e naõ sendo possível, nem bastantes todas as diligencias para conseguir o fim desejado, principalmente no Concerto das Campas de madeira, huã das couzas mães eficientes daquelle damno; para o evitar concordaraõ em que se representasse ao Doutor Provisor Vigario G.al deste Bispado, em auz.ª do Exm.º Bispo, para que este pelos bens da fabrica miúda e posse da dita Igreja mande concertar as ditas Campas, a fim de evitar a Ruina que pode cauzar a este povo a infecçaõ dos mãos xeiros, que costumaõ fazer na dita Igreja, e mandaraõ fazer este termo que asinaraõ […]”.
Eis como, decorria já o século XIX, fez agora duzentos anos, se procedia, em Vila Alva, aos enterramentos, com as consequências sanitárias que o documento de forma tão crua relata… num cenário combinado de materialismo, superstição e pestilência, a que nem o Santíssimo resistia…
A esta situação veio, finalmente, pôr cobro a legislação liberal [decretos de Rodrigo da Fonseca Magalhães (1835), e de Costa Cabral (1844)]. Com as reações e resistências conhecidas, decorrentes de uma tradição multissecular e de hábitos profundamente arreigados, passavam, então, a ser proibidos os enterros no interior das igrejas e imposto o depósito dos defuntos em cemitérios públicos, construídos em campo aberto e a distâncias, simultaneamente, seguras e próximas da terra dos vivos… e estranhas exumações!
Foi o que acabou por acontecer também na Vila Alva, em terreno murado para o efeito, contíguo à Igreja de São João Baptista. O acesso ao cemitério fazia-se pela galilé daquele templo, corpo de três arcadas plenas, cujo arco principal é fechado por um gradeamento férreo, forjado, setecentista. Entrava-se, então, no cemitério pelo seu arco lateral direito, através de cancela também em ferro. Lembro-me tão bem…
Por ora, desconhece-se o ano em que aí se iniciaram os enterramentos, mormente da gente mais indigente da terra, cujos corpos subiam a rua da Carreira de Moura no esquife em que a irmandade da Misericórdia cumpria uma das suas obras. O sepultamento destes não terá deixado rasto no recém-criado cemitério. É de crer, contudo, que os enterramentos neste novo espaço, nomeadamente das pessoas de maiores teres e influência da terra, se começassem por fazer igreja, de acordo com uma tradição e uso que, por seculares, estavam longe de ter expirado. Assim se compreende a posição privilegiada ocupada pelos três mausoléus, datados da primeira metade da década de oitenta do século XIX (marcadores dos mais antigos sepultamentos?), localizados junto à parede lateral sul da Igreja de São João e, simultaneamente, em posição frontal à primitiva entrada no recinto sepulcral (Est.). Um desses mausoléus é o de João Afonso D’Arce Cabo Coelho Perdigão, falecido em 1885 e que residiu na moradia apalaçada, da época de D. Maria I, sita na rua hoje com o seu nome (antiga rua do Rossio). No testamento deste benemérito da Santa Casa da Misericórdia de Vila Alva pode ler-se:
“Quero que os meus herdeiros logo depois do meu falecimento entreguem ao meu estimadíssimo amigo Joaquim António da Fonseca, da Cuba, a quantia de cento e vinte mil reis, para este sobre a minha sepultura mandar erigir um mausuleu em tudo egual aos dois que já se acham levantados no cemiterio d’esta villa […]”
Já dos alvores do século XX (1902 e 1903), chegam-nos o registo de um orçamento realizado por peritos para a reconstrução das paredes do cemitério, obra avaliada em 171.542 reis e referências à compra de um terreno para a sua ampliação, no valor de 20$00. De 1903 é, também, o “Regulamento para o cemitério público da freguesia de Vila Alva”. Conjunto de posturas, organizadas em 14 artigos, elaboradas pela Junta de Paróquia, então presidida pelo Pe José da Silva Roque. Delas fazem parte estritas indicações sobre a dimensão das sepulturas e o seu espaçamento, a organização do cemitério, que “terá 2 ruas de 1,20m de largura, uma vertical e outra horizontal, dividindo a área do terreno em 4 partes cujas ruas terão dos lados quaisquer plantas aromáticas como alecrim, alfazema”, proibições várias, preceitos como os relativos aos enterramentos em caso de epidemias, à garantia e manutenção da higiene e da salubridade no interior do recinto, ou ainda a indicação do sepultamento gracioso para os finados levados ao cemitério na tumba da Misericórdia.
Será importante referir que as últimas décadas do século XIX foram, em Vila Alva, marcadas por iniciativas, investimentos e progressos com considerável impacto na aldeia e na vida dos vilalvenses. Para além do cemitério, recorde-se a importância que, à época, terão tido a entrada em funcionamento do tanque das bicas e do novo lavadouro, bem como da iluminação pública da aldeia; a realização de investimentos no setor da educação, como obras de manutenção em edifícios e a aquisição de diverso equipamento escolar; os restauros de monta em imóveis religiosos, nomeadamente na Igreja Matriz, mas também nas ermidas de São João e de Santo António. Também desta altura é a diligência efetuada, através do envio de um requerimento ao rei D. Carlos, no sentido de ser dada continuidade à construção da estrada que atravessava Vila Alva. É, por isso, de elementar justiça que se faça aqui menção aos homens que, nesses anos, estiveram à frente dos destinos da Junta de Paróquia da Freguesia de Vila Alva e que, sem fundos comunitários nem PRR, tão bem zelaram pelo bem-estar e pela qualidade de vida dos seus conterrâneos. Foram eles, entre outros, Cândido Amador Contreiras, Manoel Firmo d’Oliveira Motta e António Maria Baptista.
E o tempo foi passando… correndo cada vez mais célere… e o cemitério enchendo-se de novos inquilinos. A década de 1970 assistiu a uma das últimas grandes intervenções neste espaço. Lembro-me bem… por duas razões. A primeira prende-se com a entrada no cemitério, que deixou de ser feita pela galilé da Igreja de São João, transitando para um amplo portal rasgado no muro sul, junto à forqueadura das ruas da Carreira de Moura e da Lama. A outra razão, a escorar ainda com maior fortaleza a minha lembrança, foi o facto de as máquinas, que então abriam e aprofundavam o espaço para a ampliação do recinto sepulcral, terem trazido à luz do dia, ali junto à cabeceira do templo, inúmeros fragmentos de estatuária. Logo nesse dia, mal soube da ocorrência… eu que então passava férias à dos meus tios, em casas que davam para o cruzeiro de São João… corri a ver, já o cemitério era deserto e a tarde chegava ao fim… Espalhadas pelo chão, em grande profusão… cabeças e troncos, braços e pernas… E não falo de vestígios osteológicos, que também os havia, mas de muitos fragmentos de estátuas em terracota, barro cozido, vermelho um tanto escuro… puzzles à espera… Não me fiz rogado e, tão delicadamente como terá sido esculpida no barro, assim também me apropriei de uma lindíssima cabeça, não mais… lamento-o hoje!...
Quem naquela altura trabalhava no cemitério era Manuel Joaquim Cavaco, o ‘Mata- Homens’, como era conhecido, mais pela sua compleição e perímetro abdominal do que por qualquer medonha façanha. Uma tarde, passados muitos anos, chamou-me a sua casa. Uma encolhida casinha na rua da Carreira de Moura. Que tinha algo para mim… Chegado, colocou à minha frente um tronco e uma cabeça em terracota. Não precisou desvendar a sua proveniência. Disse apenas... Tenho ‘prá qui’ isto, sei que gostas destas coisas. Olha!... São para ti, para juntares à outra… cabeça! Foi quando soube que a minha, pensava eu, sózinha e (in)devida apropriação, havia já tantos anos, tinha afinal sido acompanhada e em sigilo guardada… por aquele iletrado bom gigante. No dia seguinte, estas três peças passaram a fazer parte do espólio de arte sacra do Museu da Misericórdia de Vila Alva (Est.*). Aguardam a atenção devida de um especialista, mas é possível que sejam provenientes das antigas oficinas cerâmicas de Beringel (século XVIII). Tenho como credível a hipótese de serem fragmentos de estátuas pertencentes à Igreja de São João. Quem sabe se com o tremor de todos os santos de 1755, ou outra similar ocorrência, não possam haver caído dos altares em que se achavam e, quebrando-se, terem sido ‘aventados’, para as traseiras do templo, como ‘santos ou anjos’ inábeis já para obrarem milagres ou merecerem alguma prece ou devoção… Afinal de contas, um procedimento não muito distinto daquele que, hoje, por aqui continuamos a ter face a ‘cacos, bajoulos’ ou outras velharias, como a própria Igreja de São João, uma das joias de Vila Alva, mas que vamos deixando nas trevas, em crescente degradação… a caminho da ruína!