Diário do Alentejo

Arqueologia: Vestígios de “Damnatio Memoriae” em Mértola?

24 de janeiro 2022 - 10:30

Texto Jorge Feio, arqueólogo

 

A arqueologia permite-nos abrir uma janela sobre o passado remoto. Contudo, não são raras as vezes em que as leituras que fazemos da informação que nos proporcionam os objetos que vamos recolhendo são as mais completas, ou as mais corretas. Exemplo disso mesmo são as estátuas romanas que amiúde vão surgindo no nosso território. A maior parte das vezes, essas esculturas apresentam-se fragmentadas, com o nariz partido, ou com a boca fortemente danificada, sem olhos. Normalmente ninguém se preocupa muito em perceber por que motivo essas esculturas surgem com esses danos. Afinal de contas, são esculturas antigas que com o tempo podem ter “perdido”, escrevamos assim, alguns dos seus “atributos”. Mas será que foi bem assim? Terá essa perda sido uma “obra” do tempo? Ou terá sido o resultado de uma intervenção humana, com um objetivo claro: a “damnatio memoriae” de algo?

 

Encontrando-me a trabalhar na notável vila de Mértola, não existe melhor sítio para procurar responder a esta questão. Mais não seja, em Mértola foi recolhido um importante número de esculturas de época romana, algumas infelizmente já desaparecidas. Entre os togados, a orante, o torço de uma estátua imperial e os pés de várias esculturas, surgiram várias cabeças que pertenceram a estátuas monumentais, como a de Fortuna (pela primeira vez reconhecida como tal por Jorge de Alarcão em artigo publicado na “Revista Portuguesa de Arqueologia” em 2019. Eu aventei essa hipótese, sem ter conhecimento do artigo anterior, numa reanálise de uma inscrição votiva de Mértola publicada no “Ficheiro Epigráfico” este ano), Augusto, cabeça feminina e Dionysos (Baco) jovem. As três primeiras apresentam algo em comum: os olhos, o nariz e a boca foram gravemente danificados. A cabeça de Dionysos está impecável, sem qualquer risco que seja. Terão as cabeças sido alvo de “damnatio memoriae”? Se sim, porque o não foi a cabeça de Dionysos? E existirão outros indícios arqueológicos que possam comprovar essa realidade?

 

Vamos por partes. Em primeiro lugar, perguntará o nosso leitor, o que é a “damnatio memoriae”? É que, muitas vezes, os investigadores esquecem-se que estão a escrever para pessoas que não são especialistas nos assuntos abordados. Além disso, hoje em dia, muito poucas são as pessoas que sabem alguma coisa de latim. Ora bem, “damnatio memoriae” significa “apagar da memória”. Ou seja, fazer com que algo que existe/existiu deixe simplesmente de existir ou de ser recordado. Apesar de ser uma prática muito corrente nos nossos dias (veja-se a facilidade com que se fazem atentados de caráter todos os dias; ou se destroem estátuas por este ou aquele motivo), ela é bastante antiga e não foi sequer inventada por gregos ou romanos. Já existia entre os egípcios. Executar uma “damnatio memoriae” era algo muito simples: bastava picar o nome de alguém numa inscrição que lhe tinha sido dedicada. “Apagando-lhe” o nome, nunca mais ninguém iria saber quem tinha sido o homenageado. Na escultura, sobretudo nas representações de cariz religioso e/ou político, mais do que apagar, procurava-se “matar” o representado, impedindo inclusivamente a sua reprodução.

 

Partindo-lhe a boca, o nariz e os olhos, a divindade (ou o político) ali representado deixava de poder comer, respirar e ver. Logo: morria. E se eventualmente estivéssemos perante um corpo inteiro despido, partiam-lhe ainda os peitos (se fosse feminina) e os órgãos sexuais para que não pudesse reproduzir-se. Voltemos à estatuária romana: todas as cabeças, excetuando a de Baco menino, foram danificadas.

 

Propositadamente? Creio que sim. Seria anormal que todas tivessem sido afetadas na boca, no nariz e nos olhos e não apresentassem outros danos. Para além disso, pelos dados que foram transmitidos em várias publicações pelos colegas que coordenaram os trabalhos arqueológicos, na Casa Cor-de-Rosa as estátuas foram encontradas num buraco escavado no interior de uma estrutura romana monumental (muito possivelmente um dos templos do antigo fórum). Ora, se as estátuas foram escondidas (e a cabeça apresenta, mais uma vez, o nariz e a boca partidos), poderemos pensar que se trata realmente de uma “damnatio memoriae”. Outros dados podemos juntar, como por exemplo a reutilização de um monumento epigráficos com inscrição votiva dedicada à “Deae Sanctae” que, como já escrevi anteriormente, deveria ser Fortuna. Os elementos marmóreos dos antigos templos foram reutilizados noutros edifícios, como por exemplo a Torre do Rio.

 

Portanto, tudo parece confirmar que houve uma clara tentativa de efetuar um “apagamento da memória”. Mas quando terá ocorrido e porquê? Na minha opinião, só poderia ter ocorrido em data posterior à data da publicação do Édito de Tessalónica, decretado pelo grande imperador Teodósio I, no dia 27 de fevereiro de 380. Se o Édito de Milão decretado por Constantino I em 13 de junho de 313 permitia o culto a todas as manifestações religiosas, incluindo o cristianismo, o Édito de Tessalónica também conhecido por “Cunctos Populus” ou “Fide Católica”, estabeleceu que o cristianismo passaria a ser exclusivamente a religião do estado, abolindo todas as práticas não cristãs do império e fechando todos os templos dedicados ao culto dito pagão. Portanto, o mais provável é que em finais do século IV, ou nos inícios do século V tivesse ocorrido em Mértola esta “damanatio memoriae”. Isto significa que em Mértola se seguia de muito perto, do ponto de vista cronológico, tudo o que se passava no império romano. Mais ainda: mostra-nos que já neste período a população cristã residente na cidade era bastante numerosa. Mas escrevemos anteriormente que houve uma exceção: o Baco menino. A ser verdadeira a nossa interpretação, por que motivo teria ocorrido tal situação? No caso de Dionysos (ou Baco), a explicação poderá estar na história da vida desta divindade e a sua semelhança com a vida de Jesus Cristo, sobretudo na sua juventude. Tal como Jesus Cristo era filho de Deus com uma humana (Maria), Dionysos era fruto de uma relação entre uma divindade (Zeus) e uma humana (Semele). Até aos dois anos de vida, Jesus Cristo foi perseguido por Herodes, o Grande, tendo a sua família que fugir para o Egipto, tal como Dionysos fez para fugir da ira de Hera. Este último foi descoberto, fantasiado de menina, e Hera provocou a sua loucura. Depois de vaguear pela Síria, foi até à Frígia (na atual Turquia), onde a sua avó Cibele, a “mater deum” (mãe dos deuses) o curou e iniciou no culto orgiástico. Ora, a Virgem Maria faleceu na Turquia e era… “theotokos”, mãe de Deus! Por fim, Jesus Cristo foi crucificado e ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras, tendo a sua ressurreição sido efetuada por Deus. Já Dionysos foi morto pelos Titãs e ressuscitado por Zeus, o seu pai. Estas semelhanças entre ambos poderão ter conduzido à não destruição da esculturas de Dionysos em Mértola, o que poderá demonstrar que nessa altura consideraram estar perante uma representação de Cristo. Mais um testemunho da rica história da antiga Myrtilis.

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