Diário do Alentejo

86 espécies de plantas ameaçadas de extinção no Baixo Alentejo

23 de julho 2021 - 17:15

Publicada Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental. Um trabalho cientifico que retrata o estado das plantas no País, indicando que o panorama no Baixo Alentejo é “muito preocupante”, com a maior concentração de plantas ameaçadas localizadas nos “barros de Beja”. O problema deve-se essencialmente à intensificação agrícola em “larga escala”, a que se tem vindo a assistir nas últimas duas décadas. Situação que se repete no sudoeste alentejano, onde as plantas mais afetadas são associadas a brejos, charcos temporários e outras zonas húmidas.

 

Texto Júlia Serrão

 

“Temos sinalizadas 86 espécies de plantas ameaçadas de extinção no Baixo Alentejo. Mais de 20 estão associadas ao desaparecimento dos olivais tradicionais de sequeiro”, observa António Carapeto, um dos responsáveis técnicos pela elaboração da Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental. Um levantamento que avaliou o risco de espécies ameaçadas, e cujo trabalho no campo ocorreu entre 2016 e 2018. Debruçando-se sobre 630 espécies de plantas, identificou 381 ameaçadas de extinção e 19 já extintas. Das cerca de 110 espécies endémicas que existem em território nacional continental a título de exclusividade, 53 estão ameaçadas de extinção.

 

André Carapeto diz que o distrito de Beja foi trabalhado “com maior insistência” porque estavam sinalizadas algumas ameaças, que acabaram por se “confirmar”, sobretudo relacionadas com a intensificação agrícola na região. “Apostámos muito em fazer trabalho de campo no Baixo Alentejo, principalmente na zona dos regadios, mas também na faixa litoral. Os resultados são muito preocupantes”.

 

Uma das plantas identificadas como das mais ameaçadas de extinção é a linária dos olivais (‘linária ricordi’), um “endemismo do Baixo Alentejo”, cuja distribuição está concentrada nos arredores de Beja: Beringel, Ferreira do Alentejo e Serpa. O biólogo explica que a substituição dos olivais tradicionais pelas culturas de regadio tem vindo a contribuir para “o gradual desaparecimento do habitat” desta espécie, exclusivamente associado a sistemas agrícolas de sequeiro: searas e olivais tradicionais. Revela que este é um caso curioso, já que se trata de uma “planta protegida a nível europeu, da Diretiva Habitats”, estatuto que prevê que sejam definidas áreas para a sua conservação. “Existe um sítio da Rede Natura designado para a proteger, que não o está a fazer”, observa, explicando que a planta não aparece nos “dois locais designados” para a sua proteção desde 2005. É perentório: “Se não cumprem a função, deviam ser reavaliados, de forma a corrigir-se este paradoxo”. A espécie está avaliada como em perigo de extinção no Livro Vermelho, “porque praticamente 99 por cento da sua área de distribuição global está dentro da área de influência do empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva”.

 

DISSEMINAÇÃO DE CULTURAS INTENSIVAS

 

Muito referida quando se fala em plantas ameaçadas, talvez por esta particularidade de se prever a sua conservação mas isso não estar a acontecer, a linária dos olivais já se tornou uma espécie “emblemática de todas elas”. Mas, sobretudo, sublinha o coordenador técnico do projeto, “de toda uma biodiversidade que está a desaparecer no Baixo Alentejo”.

 

Das espécies arvenses associadas aos olivais e ás culturas tradicionais de sequeiro em solos básicos, e por isso sob grande pressão, há pelo menos mais dois nomes a reter: alcachofra rasteira (‘Cynara tournefortii’) e olho-de-perdiz (‘Adonis annua’). Estão avaliadas como vulneráveis, no levantamento especializado. A primeira, um cardo, é um “endemismo ibérico” com população maioritariamente em Portugal. “Distribui-se de forma dispersa pelo Baixo Alentejo, tendo um grande núcleo populacional no Torrão”, explica o biólogo. A segunda tem uma distribuição global alargada, concentrando-se no território alentejano, mas com maior incidência no Baixo Alentejo. O Livro Vermelho explica que “as principais ameaças e pressões sobre a planta ficam a dever-se à expansão da intensificação agrícola e conversão dos sistemas agrícolas extensivos de sequeiro em intensivos de regadio”, que levam “à destruição do seu habitat ou à alteração das condições ecológicas necessárias ao seu desenvolvimento”.

 

André Carapeto diz que é preciso agir com celeridade, para evitar que mais plantas endémicas restritas ao Baixo Alentejo se extingam, a exemplo da arméria de Beja (‘Armeria neglecta’). Dá conta que a planta foi “alvo de prospeção” ao longo do século passado, e deste estudo, e continua a não ser encontrada. Não havendo registos da sua ocorrência na natureza há mais de um século, os investigadores decidiram “considerá-la extinta”. A “pressão resultante da atividade agrícola” durante o século XX poderá estar na origem da sua extinção.

 

Mas outras ameaças começam a adensar-se na região. O olho de lobo (‘Onosma tricerosperma’), uma espécie “muito rara” encontrada em Ferreira do Alentejo, em 2009, “numa zona pedregosa de pastagem com pastos e mato, teve um núcleo destruído por um parque solar e um laranjal”. O coordenador técnico do projeto diz que quando começaram a fazer a lista de plantas alvo de estudo, não tinham sinalizado qualquer ameaça para além da raridade da espécie: “Conhecíamos apenas dois ou três locais onde ela ocorria, com menos de 10 plantas em cada um”. Em 2019, verificaram que numa parte de um dos núcleos tinha sido instalado um pomar intensivo de laranjeiras, na outra um parque solar: “Já não há condições de qualquer habitat ali; foi destruído”. André Carapeto alerta para que a conservação dos locais de solos únicos, habitats por excelência de muitas espécies, seja “uma prioridade”. Pois quando se perdem, não há como voltar atrás. Enquanto estas infraestruturas podem ser instaladas noutros locais. “Muito do que se pode fazer pela conservação passa por se tomar opções corretas, e compatibilizar certas atividades com o que realmente existe de valores naturais”, sublinha.

 

DRENAGEM DE ZONAS HÚMIDAS

 

O processo de intensificação agrícola avança também pelo sudoeste alentejano desde os anos 90, apesar das zonas estarem integradas em Rede Natura e em boa parte do Parque Natural. A proteção é insuficiente para assegurar a conservação da biodiversidade. O biólogo fala em muitas espécies sinalizadas nesta área: “Algumas estão em regressão clara, outras há muito tempo não são avistadas.” Uma das avaliadas pelas equipas do projeto, o linho marítimo (‘Linum maritimum’), restrita ao sudoeste alentejano que habita em prados e solos húmidos, foi vista a última vez em meados da década de 90 do século passado. Comenta que o lugar foi transformado em campo agrícola e, entretanto, já se construiu uma série de estufas nos arredores, sendo que a zona está completamente modificada. Uma situação que se repete por muitos e muitos hectares. Mostra-se preocupado com o impacto das estufas e dos regadios. “Não se trata só da “ocupação física dos espaços para a instalação das estufas”, que consequentemente “destroem uns habitats”, mas também da “drenagem de zonas húmidas” que leva ao desaparecimento de outros, “como brejos, trufeiras e charcos temporários, onde se encontrava grande número de espécies de distribuição restrita”.

André Carapeto lembra que esta zona era prolífera de charcos temporários e lagoas que foram sendo drenados, não só para aproveitamento da água para a agricultura, mas também para regadios, por vezes relacionado com pastagens. O biólogo diz que o litoral sudoeste está completamente “descaraterizado” paisagisticamente. “Era um território com imenso potencial, nomeadamente turístico, mas muito dele já foi perdido.”

 

Sobre a ‘Apium repens’, uma espécie de aipo selvagem também analisado, conta que a população estava reduzida a um “cantinho” de um local que se tinha transformado numa pastagem para gado bovino e depois num campo de milho: “O núcleo estava praticamente destruído”. Entretanto, encontraram a planta noutro local, mais a norte, “mas estudos posteriores demonstraram tratar-se de uma espécie diferente, nova para a ciência, e para o litoral alentejano: a ‘Helosciadium milfontinum’. Acrescenta: “Por pouco não perdíamos mais uma espécie endémica de Portugal. Há mesmo falta de conhecimento dos nossos valores, e falta de mais estudos aprofundados para mostrar que realmente temos uma biodiversidade que vale a pena proteger, e que está em processo de destruição acelerada”.

 

André Carapeto diz que no sudoeste há ainda outro problema “muito grave”, que são as plantas invasoras, exóticas. Uma delas, a acácia, está em “expansão” ao longo das ribeiras e das zonas arenosas. “Desenvolve-se rapidamente, causa ensombramento de grandes extensões de território, e altera completamente as condições do habitat.” São muito difíceis de erradicar, assegura. Nas arribas e nas dunas, o problema é o chorão da praia: “É uma das principais ameaças” aos vários endemismos das arribas do sudoeste. Ameaçado pela expansão agrícola e de exóticas, o ‘Plantago almogravensis’, um endemismo da região, foi avaliado como estando em perigo. No entanto, “a sua categoria de ameaça poderá ter-se agravado, pois foi destruído um dos últimos núcleos existentes, por expansão agrícola”, adianta. Pelo mesmo fenómeno, a ‘Ononis hackelli’, está avaliada como vulnerável. Na faixa litoral coloca-se ainda a questão florestal. Na Serra do Cercal, “os eucaliptos são a grande ameaça de uma planta única”, avaliada como vulnerável, a ‘Bupleurum acutifolium’, conhecida como a “Beleza do Cercal”. Segundo o coordenador técnico do trabalho, a limpeza da mata é outra questão que tem que ser pensada, pois se há espécies que respondem muito bem a limpezas sazonais, reaparecendo depois, outras não podem ser mexidas, com risco de não voltarem. Por isso, “as práticas de limpeza florestal devem ser ajustadas aos valores em presença”. Ainda na Serra do Cercal, esclarece que a ‘Senecio lopezii’, que “ocorre em sobreirais bem conservados com escassa perturbação humana, e ameaçada pelas limpezas”, terá “regredido bastante no passado devido aos povoamentos florestais de eucalipto”.

 

Apesar do quadro sombrio, houve surpresas felizes, encontrando no Baixo Alentejo quatro plantas que não se conheciam em Portugal. “Todas elas estão associadas aos solos básicos com olivais tradicionais”. A ‘Anchusa puecchi’, nos arredores de Beringel e Serpa, a ‘Trigonelle ovalis’, na Serra de Ficalho, a ‘Bellevalia trifoliara’, um jacinto que aparece nas searas, nos arredores de Beja e fr Ferreira do Alentejo, e a ‘Prolongoa hispânica’, que ocorre numa mina abandonada, em Barrancos – à semelhança de uma urze já conhecida, a ‘Erica andevalensis’ que, em Portugal, só existe nas Minas de São Domingos. As primeiras duas estão avaliadas como criticamente em perigo, e as duas restantes como vulneráveis.

 

A Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental é resultado de um projeto coordenado pela Sociedade Portuguesa de Botânica e pela Associação Portuguesa de Ciência da Vegetação, em parceria com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas. A comunidade botânica contribuiu com 130 colaboradores, dos quais 115 voluntários. O coordenador técnico do projeto gostaria de ver continuidade neste trabalho, não só porque ainda ficaram 4/5 das plantas nativas para avaliar, mas também porque a informação tende a desatualizar-se. Diz que enquanto faziam o trabalho, tiveram que reescrever fichas de algumas plantas, inclusivamente do Baixo Alentejo, sempre que o regresso a um habitat por causa de uma sinalização revelava o desaparecimento da espécie ou diminuição da sua população. 

 

CONSERVAÇÃO DA NATUREZA E DA BIODIVERSIDADE

 

Há o antes e o depois do Livro Vermelho da Flora, que o coordenador técnico do projeto diz ser o “diagnóstico da situação, identificador de sintomas e causas”, sugerindo algumas estratégias e boas práticas. Uma das primeiras coisas a fazer “é pôr em prática a Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e da Biodiversidade” que já existe no papel. Sublinhando ser “errada” a ideia de que a conservação é “impeditiva” de atividade económica, fala na importância de um ordenamento do território que permita “compatibilizar” as duas coisas. “A questão é saber quais as zonas importantes para a conservação da biodiversidade, que agora estão localizadas, e assegurar que se preserva uma parte delas”. O que não faz sentido, garante, é continuar a “insistir nos erros no passado para justificar o investimento” feito. Há tipos de ocupações “que se fazem em solos básicos”, que são importantes habitats de algumas espécies, que “poderiam ser feitos em outros tipos de solos”. No sudoeste alentejano, por exemplo, existem muitas áreas onde “podiam ser instaladas as estufas, sem provocarem tanto dano para a conservação da biodiversidade”, exemplifica. Mas, “infelizmente”, está-se a optar por inseri-las num Parque Natural. Finalmente, porque a maior parte dos valores naturais estão em terrenos particulares, é “preciso pensar em algum tipo de compensação financeira, fundos a que estes se possam candidatar para manter, por exemplo, atividades tradicionais”.

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