Diário do Alentejo

De Mértola para o mundo: a Ariadne ‘Mirtilensis’

08 de abril 2021 - 12:00

Texto Jorge Feio (arqueólogo)

 

Entre os anos de 2006 e 2008 coordenei uma intervenção arqueológica em Mértola, na denominada Casa Fagulha. Por causa de um conjunto incrível de vicissitudes muito negativas, apenas agora, em 2021, me encontro em condições de efetuar o estudo de todo o imenso espólio recolhido e de preparar as devidas publicações. Esta intervenção proporcionou a identificação, pela primeira vez em Mértola, de estruturas que aparentam pertencer ao antigo fórum portuário da cidade, construído em finais do século I a.C. e desmantelado, pelo menos parcialmente, em finais do século V, pouco antes de uma grande cheia que ocorreu ainda no primeiro terço desta última centúria, cujos lodos se foram depositar sobre as estruturas então desmanteladas. Uma cheia muito mais violenta do que a de 1876 e do que a de 1997.

 

O espólio recolhido é de fundamental importância para o conhecimento da evolução histórica de Mértola, indicando a presença contínua da localidade, entre o final da Idade do Bronze e a atualidade, com especial importância na segunda Idade do Ferro, no período romano, na época visigótica e sob o domínio islâmico. As peças de época moderna indicam-nos fortes transformações entre os séculos XVI e XIX. São ainda de salientar alguns líticos datáveis do paleolítico que ali foram recolhidos.

 

Entre todo este espólio merece especial destaque um simples fragmento de um cálice em terra ‘sigillata’ itálica, produzido em Arezzo, na atual Itália. A decoração, muito requintada, fina e delicada, confere-lhe uma “nota artística” muito elevada, característica de peças raras, como é o caso.

 

Lembro-me perfeitamente do que se passou no momento em que apareceu: eu e o senhor Manuel do Azinhal, o meu colega em obra, procurávamos desesperadamente uma parede com 1,18 metros de largura, romana, que nos tinha aparecido noutra quadrícula ali ao lado (até que descobrimos aquilo que restava dela, coberta de lodo da tal cheia, mas desmantelada até à base, junto ao pavimento). Sobre o pavimento recolhemos muitos fragmentos de ânforas e o fundo de um copo em terra ‘sigillata’ itálica da oficina de Publius Cornelius. Pouco depois, o senhor Manuel surgiu com um fragmento de uma peça na mão, em clara euforia, dizendo: “Jorge, veja lá que esta tem uns rabiscos”.

 

Peguei no fragmento e vi rapidamente que pertencera a um cálice em terra ‘sigillata’ itálica decorada com cenas mitológicas, onde se incluía aquela linda divindade que se apresentava desnudada, com os seios à mostra. Aproveitei para brincar com o senhor Manuel e, piscando o olho à esposa para ela perceber que era brincadeira, disse ao meu colega: “Você não tem vergonha nenhuma!”. Perante a sua estupefação, continuei: “Nem mesmo à frente da sua esposa”. Perante a atrapalhação, lá lhe mostrei novamente a peça e expliquei-lhe o que representava.

Passados quase 14 anos sobre a data da sua descoberta, voltei a observá-la e, com dúvidas sobre a divindade ali representada, falei com alguns colegas e chegámos a uma conclusão: era Ariadne, pouco depois de ter sido abandonada por Teseu na Ilha de Naxos, em pleno momento em que foi encontrada por Baco, que posteriormente viria a casar com ela.

 

Mas quem era Ariadne? Na mitologia greco-romana, Ariadne é a princesa de Creta. É filha do rei Minos e da rainha Pasifae. Através da mitologia ficamos a saber que o rei Minos, depois de ter vencido uma guerra contra Atenas, exigiu que lhe fossem enviados jovens, como tributo, de nove em nove anos, para serem entregues em sacrifício ao Minotauro. Num desses envios de jovens seguiu Teseu, por quem a jovem e lindíssima Adriadne se apaixonou perdidamente.

 

Teseu, um jovem cheio de coragem, resolveu combater o Minotauro para acabar, de uma vez por todas, com os sacrifícios. Ariadne, conhecendo o que o seu amado projetara, disse-lhe que a levasse com ele para Atenas e a desposasse. Teseu anuiu e ela deu-lhe uma espada e um fio de lã, para que ele pudesse saber o caminho de volta.

 

Teseu venceu o Minotauro e fugiu com Ariadne. No regresso a Atenas resolveram descansar na ilha de Naxos, então governada por Smerdius. Os habitantes de Naxos receberam Teseu e os seus companheiros como convidados. Durante a noite, Teseu não correspondendo ao sentimento que Adriadne por ele sentia, abandonou-a e seguiu sem ela para Atenas (outras variantes da lenda acrescentam que Baco apareceu em sonho a Teseu exigindo-lhe que lhe entregasse Ariadne).

 

Ao acordar, Ariadne viu-se só e abandonada, entrando em desespero. Afinal de contas, não esqueçamos que, por amor, ela traíra o seu pai e a sua família. A deusa Vénus, comovida com a situação, resolveu ajudá-la “encaminhando-a” para o amor eterno de um deus: Baco. Casaram e tiveram quatro filhos: Toas, Estáfilo, Enópion e Pepareto. Quando foi assassinada por Artémis, Baco atirou a coroa que lhe ofereceram em Naxos para o céu criando assim a ‘Corona Borealis’. Foi depois buscá-la a Hades (“inferno”), onde recolheu também a sua mãe Sémele, elevando-a ao Olimpo e transformando-a em deusa. Na realidade, Ariadne representa também as mulheres que se entregam numa relação com a pessoa que amam mas que, à mínima oportunidade, são abandonadas à sua sorte.

 

Este fragmento foi descoberto numa camada de destruição de um edifício público romano, onde outrora Baco foi cultuado num nicho (ninfeo?), como o demonstra a cabeça de Dyonisos menino encontrada nas proximidades. Estariam a escultura e o cálice relacionados? Não sabemos, mas queremos acreditar que sim.

 

Com esta imagem da Ariadne ‘Mirtilensis’ (de Mértola) desejo homenagear todas as mulheres, agora que passam exatamente dois anos que publiquei a minha primeira crónica neste jornal, dedicada a uma grande mulher, que tem o seu lugar entre as fundadoras da cidade de Pax Iulia. A todos e a todas, um grande abraço e votos de rapidamente atingirmos em Portugal a tão desejada igualdade de género.

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