Diário do Alentejo

“Sempre tive uma afinidade especial pelo rock”

30 de agosto 2021 - 22:00
Foto | Raquel EsperançaFoto | Raquel Esperança

Texto Luís Miguel Ricardo

 

Sendo natural de Beja, João Spencer, de 29 anos, reside em Lisboa há mais de 10 anos. Uma mudança geográfica que o levou da planície, mas que o não desfocou da terra natal, à qual sempre volta e com a qual mantém uma forte ligação. O seu percurso na música começou com o estudo de viola dedilhada no Conservatório Regional do Baixo Alentejo e na Academia de Amadores de Música. Licenciou-se em Ciências Musicais, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, concluiu uma pós-graduação em Comunicação de Cultura e Indústrias Criativas, na mesma instituição.

 

Paralelamente ao percurso académico, esteve envolvido em diversos projetos musicais. Em 2009 teve a primeira experiência de banda, integrando a Ex-Líbris, uma experiência que durou até ao início de 2010, altura em que a banda foi extinta. Seguiram-se, já em Lisboa, mais dois projetos: Tuatara, entre 2011 e 2013, em colaboração com outros músicos bejenses; e t.204, um projeto a solo à base de guitarras e ‘samples’, que nasceu em 2012, a partir de gravações caseiras, e que perdura até à atualidade.

 

Em 2016 e 2017 surgem dois novos projetos colaborativos que concilia com t.204: Mazarin, um grupo de jazz urbano com o qual já editou dois EP’s; e Vaga Mundo, um coletivo de música e poesia. Para além do João Spencer músico e criativo, existe ainda um João Spencer que é membro das associações culturais bejenses Zarcos e Culturmais, com as quais colabora na elaboração de eventos musicais.

 

Quando e como surgiu o gosto pela música?

Penso que comecei a ganhar o ‘bichinho’ pela coisa a partir dos meus oito anos. Nessa altura, o meu pai, que também é músico, mostrou-me dois discos lançados recentemente: o “Californication” (Red Hot Chilli Peppers) e “O Monstro Precisa De Amigos” (Ornatos Violeta), que me marcaram fortemente, para além de me introduzir a bandas contemporâneas como Blur, Garbage ou Bush, assim como bandas de rock progressivo da sua geração. A influência musical do meu pai foi determinante para me encontrar onde estou agora. Ainda nesse ano, a minha mãe encorajou-me a estudar um instrumento, acabando por escolher o piano (a troca para a viola dedilhada só ocorreria na minha adolescência).

 

Dos vários géneros musicais experimentados, algum que seja o de eleição?

Sempre tive uma afinidade especial pelo rock nas suas diversas vertentes, mas o meu foco já variou ao longo de diversas fases da minha vida: consumi hip-hop de uma forma voraz na pré-adolescência, viciei-me em música experimental e avant-garde, a partir dos 17 anos e, alguns anos antes do início de Mazarin, apercebi-me como outros estilos dentro da pop, como o jazz, o neo-soul, o hip-hop ou a música eletrónica, poderiam oferecer um leque de opções infindáveis, o que me fascinou imenso. Esta tendência em contemplar o rock enquanto género popular predominante dentro da experimentação musical chega a ser nauseante. Mas, honestamente, consigo encantar-me com praticamente qualquer estilo musical que me consiga estimular os ouvidos, venha ele de onde vier.

 

Mazarin. Que projeto é este?

A banda teve as suas origens na Faculdade da Ciências Sociais e Humanas, quando eu e o guitarrista da banda, Vicente Booth, também do distrito de Beja, ingressámos no curso de Ciências Musicais e conhecemos o Afonso Serro, o teclista original do grupo, que era nosso colega de turma. Começámos a falar sobre gostos musicais e, assim que percebemos que partilhávamos um nível de interesse comum entre o jazz e o hip-hop, decidimos experimentar tocar em conjunto com um amigo baterista também baixo-alentejano, o Humberto Dias, e assim surge Mazarin, que agora conta com o Léo Vrillaud, nos teclados, e o João Romão, na bateria. O nome surgiu por via do nosso guitarrista que, durante uma temporada a viver em Paris, se cruzou com o nome durante uma viagem de comboio. Ficámos a saber que se tratava de um cardeal italiano que viveu na França, mas o que nos cativou no nome foi a sonoridade em si e não o seu significado.

 

O repertório onde intervém João Spencer é composto por adaptações ou originais?

Sempre tive uma predisposição em trabalhar com grupos que criem conteúdo original. As únicas exceções, até à data, são o arranjo de Mazarin da composição “Lavender Town” e algumas obras iniciais do Vaga Mundo. Este último grupo é também o único, desde o fim de Ex-Líbris, onde desenvolvo trabalhos com conteúdo vocal, uma vez que combina música com declamação de poesia. Isto não tem acontecido de forma propositada, até porque um dos meus maiores prazeres é o formato de canção pop, mas, pessoalmente, nunca me senti confiante para cantar ou desenvolver letras, mas sei que gostaria muito de o fazer.

 

Ser alentejano é uma fonte de inspiração ou de limitações para a carreira?

Parece-me que existe uma lacuna no desenvolvimento artístico bejense, não a nível quantitativo, mas em termos de diversidade. Noto uma diferença considerável no panorama musical da cidade nos últimos 10 anos. Parece que, atualmente, existe uma certa polarização entre os mais variados projetos relacionados com a música tradicional portuguesa e meia dúzia de bandas associadas a práticas musicais mais ‘underground’, isto sem querer invalidar a legitimidade de ambos os lados. A recordação que tenho da comunidade musical em Beja até início da década de 2010 era muito mais harmoniosa, mais equilibrada. Postas as coisas desta forma, é seguro afirmar que a proliferação de oferta cultural em Lisboa me estimula bastante em termos de consumo e criação musical, mas, ao mesmo tempo, noto que esta cidade tende a elitizar a sua comunidade musical.

 

Algum momento inusitado experimentado ao longo do percurso artístico?

Uma das associações culturais da qual faço parte, a Zarcos, estava a organizar um concerto de Gazua, em Beja, e surgiu o convite para fazer a primeira parte do concerto. Tratando-se de um grupo punk e sendo o conceito de t.204 algo mais experimental, achei que iria criar um contraste indesejável e recusei o convite, que viria a ser aceite pelo Paulo Colaço. É importante referir que o vocalista de Gazua viria a desenvolver, posteriormente, O Gajo, um projeto a solo dedicado à exploração da viola campaniça. Descobri, bem mais tarde, através de uma entrevista que lhe fizeram, que as origens por detrás de O Gajo remontam a esse concerto de Gazua, uma vez que foi através do contacto com o Paulo Colaço que ficou cativado pela viola campaniça.

 

Que projetos artísticos “moram” no músico João Spencer?

Pretendo dedicar mais tempo a t.204, que tem andado em estado intermitente desde o início de Mazarin, uma vez que se trata de um projeto pessoal onde possuo maior liberdade criativa. Pretendo, pelo menos, equilibrar a atividade efetuada entre ambos, sem sobreposições, pois cada um é especial à sua maneira, e isto inclui o Vaga Mundo.

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