Diário do Alentejo

Bruno Ferreira: “Beja será sempre a minha casa, o útero onde me aconchego”

16 de abril 2024 - 12:00
Gil FerreiraGil Ferreira

Texto Luís Miguel Ricardo

 

Nasceu em Beja no ano de 1974, e por Beja permaneceu até aos 19 anos, dividido entre os estudos na Escola Secundária D. Manuel I e uma experiência na rádio, nos estúdios da “Pax”, entre 1990 e 1993. Uma experiência que lhe plantou e nutriu o “bichinho” da comunicação. Um “bichinho” que o acompanhou, quando, aos 19 anos, trocou a capital baixo-alentejana pela capital do território, atrás de uma licenciatura em Relações Públicas e Publicidade. Concluída a formação, começou a trabalhar em campanhas de comunicação, fundamentalmente, de cariz ambiental e animal. Em 1997 apareceu o programa “Contra Informação”, na “RTP”, e durante 14 anos permaneceu ligado ao mesmo, imitando vozes, tornando o seu talento conhecido do grande público e adquirindo uma vasta panóplia de experiências no meio. Ainda neste período inicial de carreira, emprestou a sua voz a vários anúncios publicitários e começou a escrever guiões para televisão, para as Produções Fictícias, iniciando-se com o programa “Olhó Vídeo”, com a atriz Fernanda Serrano, na “TVI”, consolidando as suas certezas sobre a vida profissional que queria seguir. E seguiram-se outros projetos de comunicação, com destaque para: “Edição Extra”, na “SIC Radical”; “Memória de Elefante”, na “Rádio Renascença”; “Euro 2016”, na “TVI”; “Depois Vai-se a Ver e Nada”, na “RTP”; “Os Amigos da Bola”, na “Bola TV”. Após vários anos a trabalhar em rádio, televisão, publicidade, dobragens e a colaborar em diversos órgãos de comunicação, a Câmara Municipal de Beja atribuiu-lhe a Medalha de Mérito Artístico e Cultural, em 2013, e, em 2023, recebeu o Prémio de Excelência Comédia e Humor, atribuído na XXI Gala Prémios Alentejo. Em 2024 viu o seu nome inscrito no mural “Uma Escola, Grandes Exemplos”, da sua Escola Secundária D. Manuel I, em Beja, ao lado de nomes icónicos da cidade. Factos que refere serem motivo de enorme orgulho, mas que, simultaneamente, representam uma grande responsabilidade.Eis Buno Ferreira na primeira pessoa.

 

Televisão, publicidade, rádio, dobragens, escrita. Sendo uma espécie de “homem dos sete ofícios, ou mais do que sete”, como é que se define como artista?Claro que o humor é o denominador comum de quase todo o meu trabalho. Mas nunca gostei de ficar preso a essa condição. Adoro trabalhar personagens e encarnar-lhes sentimentos, mesmo sem serem cómicos. Nas dobragens de animação gosto muito de interpretar os vilões, por exemplo. A nível da escrita, e depois de muitos anos a trabalhar humor, nos guiões de rádio e TV, e nas crónicas para a imprensa, apeteceu-me experimentar o campo de investigação histórica, e é isso que tenho vindo a fazer, mais concretamente sobre Beja.

Dessas valências artísticas que experimenta, alguma que assuma maior protagonismo, quer ao nível do percurso profissional, quer ao nível das emoções pessoais?O humor é um campo que atinge muito os sentimentos das pessoas. Fazer rir é provocar uma reacção emocional. É muito gratificante e quase mágico fazer as pessoas rirem-se. E isso gera, igualmente, um forte sentimento recíproco de bem-estar. Tenho a sorte de protagonizar alguns personagens de cinema de animação que se tornaram míticos, como o Olaf ou o Capitão dos Pinguins de Madagáscar. Mas também tive o privilégio de participar com a voz em filmes como “Amália”, “Salazar” ou “O Ano da Morte de Ricardo Reis”. Ou na “Grande Reportagem”, da “SIC”, com a voz de Ricardo Salgado. Quando ainda vivia em Beja, participei em muitas cenas do filme “Adeus Princesa”, e não esqueço tudo o que vi acontecer naqueles tempos na realização, produção, guarda-roupa, som, luz… sabia que queria experimentar aquilo tudo, e tive essa sorte, em trabalhos como as campanhas publicitárias que protagonizei para o Jumbo, ou para a Prio, produções trabalhadas com equipas de cinema. E trabalhar em cinema é incrível.

 

Quando e como descobriu a sua afinidade com o universo da arte?A minha professora da escola primária n.º 5, em Beja, dizia aos meus pais que eu seria actor; que subia para a carteira e punha todos a rir. Com essa idade comecei a imitar vozes de familiares e vizinhos. Na Escola Secundária D. Manuel I ganhei a paixão pela escrita. E em casa dos meus avós, em Montemor--o-Novo, há uma biblioteca fantástica que me permitia ler de Jorge Amado a Érico Veríssimo, com 11 anos, nas férias de Verão. Estes são os contextos que, desde cedo, me começaram a traçar o destino.

 

A voz e as dobragens. Como é dar voz a uma personagem animada?A dobragem de animação exige tanto de técnica, quanto de sensibilidade. Trabalhamos dentro das limitações que os gestos das bocas dos personagens nos permitem. E nesse quadro temos de passar as intenções certas, com as palavras que melhor vão encaixar-se na boca dos bonecos, sem fugir às intenções que o actor original imprimiu ao personagem, e aproximando-nos o mais possível da sua interpretação. O trabalho em dobragem começa na tradução do guião, na sua adaptação, e passa pelo papel do director de actores. Tive a sorte de poder trabalhar em todas estas fases, o que faz da animação uma das minhas grandes paixões. Há uns anos, um personagem que interpretei num filme de Harry Potter foi considerado, pelos Estúdios da Warner, como a melhor dobragem da Europa entre todos os países que dobraram esse filme. Também em 2020 fui distinguido com o primeiro lugar, pelos prémios Geeks d’Ouro, na categoria “Melhor dobragem em séries”, com o personagem Obi-Wan Kenobi, da série “Star Wars: A Guerra dos Clones”.

 

Sobre a arte de imitar vozes: treina o alvo da imitação ou sai-lhe espontâneo?Não existe uma regra. Por vezes sou completamente invadido por uma voz, ou maneira de falar de determinada figura pública, e tenho de me esforçar para que isso não se intrometa no meu próprio registo. Não é normal, mas acontece. Essas são as imitações espontâneas. Depois há as outras, que dão muito trabalho, e exigem muitas horas de tentativa e erro, e aperfeiçoamento de uma voz. O Sócrates foi um desses casos. Até descobrir onde estava o truque demorei vários meses.

 

Qual a figura que mais gosta de imitar?São fases, vai variando. Nesta fase, o Frederico Varandas. Acho que é uma imitação muito aceitável, e é uma figura pouco neutra, portanto com muito para se poder trabalhar.

 

Com Calças de Manga Curta. Que livro é este?O Calças de Manga Curta, tal como o A Vida é um Cogumelo Verde, foram dois livros que publiquei com a compilação das crónicas que escrevi durante oito anos para o “Diário do Alentejo”, juntamente com mais alguns textos inéditos, e alguns passatempos específicos para os livros.

 

Enquanto autor/escritor, alguma valência da escrita com a qual tenha mais afinidade? A área onde me sito mais à vontade, porque a experimento há algumas décadas, são as crónicas e os artigos de opinião. Porém, como referi, estou agora a iniciar-me na investigação histórica, o que está a dar-me um imenso gosto.

 

Ainda sobre a escrita, como se posiciona relativamente à utilização ou não do novo acordo ortográfico?O novo acordo ortográfico representa o mais profundo desrespeito pela nossa língua. As alterações ortográficas implicam necessariamente alterações fonéticas. É impossível ler espectador se escrevermos “espetador”, pois a consoante obriga a abrir a vogal. Espetador é o que espeta, ao passo que espectador é quem especta. O património linguístico é um tema demasiado sério para ser alvo de experiências mal consolidadas. Os demais países de língua oficial portuguesa, e bem, continuam a usar as suas antigas grafias. Portugal, que deveria ser o garante e a reserva da preservação deste valiosíssimo património, foi a parte mais fraca de todos os países lusófonos. É natural que cada país tenha as suas diferenças, isso só valoriza a nossa língua, e não deve obrigar a uma unificação assente em pressupostos questionáveis. Estou do lado de Vasco Graça Moura ou de Pacheco Pereira. Sei que, infelizmente, dentro de algumas gerações, a língua portuguesa ficará definitivamente deformada em tantos dos seus vocábulos, porque a Escola passou a ensinar o novo acordo. Custa-me muito ver os meus filhos, sem culpa alguma, escreverem palavras decepadas e sem relação orgânica com os seus significados. É uma pena o que fizeram com a língua portuguesa. Mas enquanto for vivo escreverei correctamente.

 

Alguma história mais inusitada experimentada ao longo do trajeto artístico?Essas histórias são, felizmente, muitas. Destaco apenas uma: há uns anos participei na promoção de uma nova temporada da “Casa de Papel” [série espanhola]. Simulava que era o Presidente da República a falar ao telefone com a protagonista da série. Ficou bem engraçado. Quando a promo saiu a público, eu estava em Portalegre a gravar um programa. Durante o ensaio vi que todos os sítios de informação na Internet estavam a dar um destaque desmedido ao tema. Horas depois, vi um vídeo no qual dezenas de repórteres questionavam Marcelo sobre a “Casa de Papel”. Enviei uma mensagem ao Presidente, dizendo que tinha sido eu a fazer o trabalho, mas que me haviam garantido que a Casa Civil tinha dado autorização. Desliguei o telefone e voltei ao trabalho. Só a caminho de Lisboa, já noite alta, liguei o aparelho e, no carro, fui ouvir as mensagens. Uma delas era de Marcelo. Não vou contar o teor, mas podem imaginar que o Presidente estava muito irritado. Liguei-lhe de volta e as coisas ficaram sanadas.

 

Que papel desempenha Beja e o Alentejo no percurso artístico de Bruno Ferreira?O papel da casa mãe. Do ponto de partida. A origem. Sou de Beja, serei sempre de Beja e sempre a defenderei. Foi lá que despertei para tudo o que vim a ser em adulto. A Escola Mário Beirão, a D. Manuel I, a “Rádio Pax”, o atletismo, os professores, os amigos, a família. Foi Beja a massa que me moldou a personalidade e os meus quereres. Beja será sempre a minha casa, o útero onde me aconchego.

E que ligação mantém ao Alentejo e a Beja?Toda a que consigo e posso. Interessa-me a defesa do Baixo Alentejo e da sua capital. Da sua cultura e do seu património, como me ensinou o meu querido e saudoso irmão Florival Baiôa. Daí o meu envolvimento no Movimento de Cidadãos Beja Merece +, bem como em todas as acções que me são possíveis colaborar com a defesa de uma Beja tão desprezada pelo poder.

 

Qual o seu Alentejo quimérico?Um Baixo Alentejo desenvolvido. Que estivesse nivelado com o restante do país em termos de infraestruturas. Uma A26 de Sines a Ficalho, o aeroporto a funcionar, o comboio de velocidade alta a ligar Beja a Lisboa, mas também a Moura e ao Algarve, o hospital com a segunda fase concluída e os equipamentos e equipas médicas necessários. Com estas garantias teríamos mais investimento, mais empresas, mais emprego e melhores salários. Um politécnico com cursos adaptados às características da região, com ensino de Arqueologia e Aeronáutica, por exemplo. Uma cidade com uma estratégia cultural, económica e comercial, logo social.

 

O que está na “manga”?Estou a escrever um livro sobre a história do emblemático Café Luiz da Rocha, uma casa que faz parte da história da cidade desde 1893, e que de Lisboa para sul é o mais antigo de todos. O objectivo é contar também episódios da história da cidade ao longo dessas décadas, entrecruzando essa história com a do Luiz da Rocha. Em termos sociais, políticos, económicos, arquitectónicos, religiosos e literários. É um projecto pesado que vou construindo na medida do tempo de que disponho. Mas diria que o meu grande projecto, o projecto de uma vida, é a criação de um museu no centro histórico da cidade, que a dê a conhecer aos seus habitantes, e aos visitantes, com o objectivo de nos orgulharmos dela. O alheamento dos nossos, muitas vezes, não contribui para esse amor. Não podemos amar nem defender quem não conhecemos. Daí a importância deste projecto que já está em marcha. Gostava muito que pudesse abrir as portas no fim de 2026, mas sendo um projecto privado e tendo de vencer tantos obstáculos e burocracias, tem de contar com muita resiliência. Que ela não me falte!

 

Por respeito à opção da grafia do entrevistado, as respostas da entrevista, dadas pelo próprio, vão ao abrigo do antigo A.O.

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