Diário do Alentejo

Armanda Salgado: “Ambiciono fixar no papel a plenitude da palavra Alentejo”

18 de março 2024 - 12:00

Texto | Luís Miguel Ricardo

 

É natural de Ferreira do Alentejo, tem 44 anos de idade, é doutorada em Ciências da Informação, pela Universidade de Évora, membro integrado do Cidehus – Centro Interdisciplinar de História, Cultura e Sociedades da Universidade de Évora, detentora de pós-graduação em Arquivos e Bibliotecas e Ciências da Informação, também pela Universidade de Évora, com diploma de Estudos Avançados em Literatura Comparada, pela Universidade Blaise Pascal, em Clermont- -Ferrand, França, e licenciada em Línguas e Literaturas Modernas em Português-Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

 

Em termos profissionais, as suas experiências têm alternado entre o ensino, a formação, o Campo Arqueológico de Mértola e a Câmara de Ferreira do Alentejo, onde é responsável pela biblioteca municipal, desde 2018.

Os livros sempre estiveram presentes na sua vida. Conta que, aos 15 anos, em contexto familiar, fazia concursos para ver quem lia mais livros, no verão, e quais recomendaria. Conta também que, por vezes, se via a competir consigo própria, porque nem todos partilhavam a mesma avidez pela leitura. E conta que esse gosto pelos livros, a curiosidade e o interesse pelo outro e pelo mundo acabou por lhe determinar o percurso académico, e o processo de escrita científica, associado à publicação de artigos em revistas da especialidade, foi-se sobrepondo à poesia e ao texto narrativo. Mas, no ano de 2019, a literatura ficcional fez-se presente com a publicação do livro Bigodes de Vilhena.

Eis Armanda Salgado na primeira pessoa!

 

Quando e como foi descoberta a afinidade para as letras?

O gosto pela arte de ler e de escrever foi, desde cedo, manifestada na escola primária, muito motivada pela paciente e generosa professora Dília. O meu pai, assim como a família, em geral, teve, naturalmente, uma forte influência. Os jogos de palavras, de trocadilhos, de que o meu pai se socorria para ver o mundo e descrevê-lo, o facto de estar sempre a ler e da exigência que me fazia para procurar palavras na enciclopédia de encadernação de luxo de cor vermelha, a famigerada Lelo Universal, que ainda hoje se encontra em casa, aguçou a curiosidade e o gosto pela língua portuguesa. A máquina de escrever Underwood do avô paterno fazia crescer água na boca e relembrava cheiros das receitas preferidas da avó. Cada vez que como o bolo de mel no Natal saboreio as palavras e ouço o ritmo do meu coração e dos meus. Os professores Manuela Gusmão e Quim Zé, como era conhecido, na escola de Ferreira do Alentejo, acabam por trazer rejuvenescimento pelo gosto da literatura, ao permitirem-me contactar com o teatro e a música. Em Beja, a professora Antónia, professora de português, assim como a professora Francisca Bicho, na qualidade de professora de história, consolidam essa afinidade. 

Quais as motivações para escrever?

São várias as motivações para escrever. Acima de tudo, o gosto por ler. Gosto de observar o que me rodeia e quem me rodeia. Gosto de refletir sobre as experiências que a vida me tem possibilitado e, de certa forma, de brincar com a palavra. Todos os dias deveríamos ser convidados a (re)descobrir palavras. A escrita, de certa forma, aparece nalguns momentos como uma espécie de catarse do quotidiano. Reflexão, jogo linguístico ou mesmo com uma eventual pretensão informativa/didática que me está intrinsecamente colada, não só em termos pessoais, como em termos profissionais. É assim que me surge a escrita.

 

Bigodes de Vilhena. Que livro é este?

Bigodes de Vilhena: um Gato em Ferreira do Alentejo é, de facto, o único livro que tenho editado, sob a chancela da Santa Casa da Misericórdia de Ferreira do Alentejo, o qual me deu muito prazer escrever, por várias razões. A primeira delas prende-se, necessariamente, pelo facto de valorizar o trabalho de voluntariado e, mesmo, associativo. Durante vários anos integrei os corpos sociais da Santa Casa da Misericórdia de Ferreira do Alentejo, tendo desde cedo reconhecido a necessidade de explicar aos mais jovens e, de certa forma, à comunidade em geral, a importância desta instituição de solidariedade social no concelho. Bigodes de Vilhena é um convite a uma visita guiada ao património edificado de Ferreira do Alentejo e às personalidades da terra, como é o caso de Júlio de Vilhena. É urgente que os mais jovens, desde cedo, se interessem por manter viva a missão destas instituições seculares com responsabilidade social na sua área de intervenção, quer na área da saúde, educativa e mesmo cultural. Por esse mesmo motivo, esta instituição ofereceu este livro a todos os alunos do pré-escolar do concelho de Ferreira do Alentejo. Gostaria, também de sublinhar que o facto de Mafalda Milhões ter sido a ilustradora do livro foi um privilégio. Reconheço-lhe as preocupações sociais e de ser uma mulher que luta por causas.

 Dentro das valências literárias, que modalidades já foram experimentadas?

Apesar de ter escrito um texto narrativo, o Bigodes de Vilhena, sinto-me confortável com a poesia e com os micro contos. Gosto de desafios e vejo estas duas valências como um exercício de escrita fascinante de condensação de emoções, mensagens e jogos de palavras.

 Em que medida trabalhar no universo dos livros tem contribuído para a produção literária?

Trabalhar rodeada de livros é um privilégio. Contudo, por vezes, é algo constrangedor, pois a falta de tempo para ler tudo o que gostaríamos deixa-nos, de certa forma, uma doce angústia, pelo facto de ter os livros disponíveis, mas sem tempo para lê-los. Ler permite-nos encontrar intertextualidades entre livros, escritores, personagens, ambientes recriados. Quanto mais lemos, mais desenvolvemos essa visão holística e de diálogo entre os livros. O estudo da literatura comparada foi determinante para perceber esta elasticidade dos textos e, sobretudo, questionar o papel do leitor nesse processo. Sou muito mais leitora do que escritora, mas gostaria de me dedicar mais a essa arte. Neste momento alimento uma conta no Instagram, onde disponibilizo alguns textos.

 

E outras expressões de arte para além das letras?

Gosto de música. Tenho saudades do tempo em que tocava saxofone soprano na Banda Filarmónica de Ferreira do Alentejo, das viagens de autocarro a Grândola, a Ferreira do Zêzere, nas quais se promovia o encontro de bandas filarmónicas e em que cada músico mostrava a sua arte escondida de uma forma mais livre e descontraída. Durante oito anos fui elemento desta banda filarmónica, o que contribuiu, largamente, para a minha formação musical.

 Que papel desempenha o Alentejo na escrita de Armanda Salgado?

O Alentejo desempenha um papel preponderante na minha escrita, pois nasci, cresci e encontro-me a trabalhar no Alentejo. Gosto de escrever sobre as pequenas coisas das nossas gentes, das paisagens, dos cheiros e dos sabores. Ambiciono fixar no papel a plenitude da palavra Alentejo e conseguir passar essas emoções.

 

Algum momento inusitado experienciado ao longo do percurso literário?

Aquando da apresentação do livro Bigodes de Vilhena recordo-me, com satisfação, do rosto das crianças ao acreditarem que na igreja da Misericórdia de Ferreira do Alentejo existe mesmo uma assembleia de gatos em noites de lua cheia. A escrita e a leitura em voz alta possibilitam este encontro mágico entre a palavra dita e a observação do impacto dos ouvintes.

 

Acordo ortográfico. Qual o posicionamento face à polémica?

O acordo ortográfico (AO) tem sido alvo de polémica já há bastantes anos, no meu ponto de vista, questões de ordem filológica, recentemente, têm-se sobreposto. A língua portuguesa, ao longo dos tempos, e da sua própria história, tem-se transformado. Como organismo vivo, está sujeita a várias modificações fruto de variáveis como limites geográficos, grupos sociais, política e economia. Apesar de perceber as incongruências do AO, escrevo de acordo com este. Desde 2012 que o faço, motivada por questões académicas e de docência. Neste momento, assumo-o como uso diário. Na iminência de uma próxima revisão, que sejamos, enquanto cidadãos, convidados a participar nesse processo.

 

O que está na “manga” em termos de produção literária?

Neste ano de 2024 gostaria de passar para o papel, para uma publicação, todos os textos que andam guardados em mim.

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