Diário do Alentejo

Alentejo: “Lugar-casa, terra de sustento e alimento emocional e espiritual”

13 de fevereiro 2024 - 08:00
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Texto Luís Miguel Ricardo

 

Conta que foi fabricada no Algarve por alentejanos. Conta que nasceu em 1984. Conta que cresceu na rua, nos anos 80/90, na vila alentejana de Ourique, sem Internet, sem biblioteca, sem cinema, sem teatro. Conta que se licenciou em Design de Comunicação, em 2008, pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Conta que foi frequentadora da Cinemateca e da Tasca do Esteves. Conta que, em 2006, foi bolseira de Erasmus, e que esse facto a levou para Turim, para a Accademia Albertina di Belli Art. Conta que frequentou, nas Belas Artes de Lisboa, o mestrado de Instalação e Performance. Conta que trabalhou como designer. Conta que, em 2014, começou o projeto “Atalaia Artes Performativas”, com residências de criação, festival e serviço educativo, em Ourique, Almodôvar, Aljustrel e Castro Verde, e que se prolongou por quatro edições, e que foi suspenso por falta de apoios financeiros. Conta que deixou tudo e foi para a Moldávia, como voluntária numa associação para a promoção da arte contemporânea nesse país. Conta que voltou, trazida por uma bolsa da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia para fazer um doutoramento em Multimédia, na Faculdade de Belas Artes, com uma tese sobre a performance da fotografia, que veio a concluir em 2016. Conta que, em 2019 e 2020, implementou um projeto de regeneração do montado alentejano. Conta que já plantou 600 árvores e arbustos, entre legumes, leguminosas e trevos, e cuidou de um hectare de solo semi-desértico. Conta que, em 2021, criou o projeto transdisciplinar e participativo “Do Aberto ao Abismo, do Abismo ao Aberto”, que teve a sua primeira mostra no final desse ano, em Ourique. Conta que ao longo do seu percurso artístico se destacaram vários momentos, de que são exemplos: a participação em diversas exposições, no País e no estrangeiro; a participação em várias performances, dentro e fora do território; o ter sido finalista da Mostra Nacional Jovens Criadores, em fotografia, no ano de 2014; o ter sido a artista portuguesa selecionada para o Salão Europeu dos Jovens Criadores, entre os anos de 2009 e 2011, de onde resultaram exposições na Lituânia, Polónia, Eslováquia, Hungria, Áustria, Itália, Espanha e Portugal. Conta que continua a trabalhar como artista multimédia e que canta, toca e compõe como Analentejana e no projeto “Adufe”, em Lisboa. Eis Ana Nobre na primeira pessoa.

 

Quando e como surgiu o gosto pelas artes? Desde pequena que as imagens me fascinam. Passava horas a ver fotografias de família. A televisão era uma caixa mágica. Quando ia a Lisboa, ou viajava, os placards publicitários espantavam-me. Adorava fazer colagens, pintar, desenhar, escrever, ver e manipular materiais e cores. Na Adega do Monte Velho, onde cresci até aos seis anos, havia um gira-discos, e escusado será dizer que havia clientes que já não podiam ouvir-me a colocar as músicas a girar. Cantava com eles as canções tradicionais alentejanas e o meu pai tocava, e toca, acordeão e faz bailes. Pelo que, cantar é para mim algo natural. A dança e o movimento, a interpretação, a performance e o teatro. Tudo está relacionado e é impossível de separar, ou seja, imagem, movimento, palavra, presença, som, são, para mim, formas de expressão dificilmente separáveis.

“Do Aberto ao Abismo do Abismo ao Aberto”, “Rica Vida”, “Ludicus Lucidus”. Que projetos são estes?O “AB AB AB AB – Do Aberto ao Abismo do Abismo ao Aberto” é um projeto de investigação e criação artística que se insere no campo específico das artes plásticas, cruzando a performance, a fotografia, o desenho, o vídeo e a instalação. A fotografia, o vídeo, o desenho e a instalação são abordados enquanto performance, contrapondo a apresentação viva, em direto, física e corporal, e por isso transitória, perecível, vivêncial, à apresentação diferida, virtual, digital, potencialmente repetível. Esta contraposição não aspira à dicotomia, mas à superação da mesma. “AB AB AB AB” é um movimento que ora se apresenta em queda livre, no sem fundo, ora se apresenta expansivo, no vazio que tudo compreende. Em última instância “AB AB AB AB” é uma inspiração e uma expiração de um corpo, que compreende o infinitamente pequeno e o infinitamente grande. Um corpo que compreende um visível e um invisível, um dentro e um fora, um lado em sombra e um outro iluminado, um lado que se manifesta e um que se oculta, numa tentativa artística de superar binómios e de sentir o mundo como uma osmose de todas as coisas, onde aparece o informe resultante da metamorfose constante e da fundição de opostos aparentes. Este projeto teve o apoio da Direção-Geral das Artes, do município de Mértola e do município de Ourique, entre outras instituições e associações locais. A “Rica Vida” pretende ser uma comunidade, um “lugar” de pesquisa teórica e prática para o reencontro entre cultura e natureza, num contexto de transição de um consumismo ignorante e de exploração inconsciente dos recursos para o consumo sustentável e para a produção autónoma. A “Rica Vida” é um projeto de manutenção e restauro de habitats, em que pretendemos implementar medidas para regenerar ecossistemas e aumentar a biodiversidade. É nosso objetivo aumentar a consciencialização acerca dos valores naturais. Queremos ser um modelo de biodiversidade, um exemplo de regeneração do montado alentejano. Neste sentido, já temos uma área de montado de dois hectares que estamos a regenerar, a cuidar, onde plantámos cerca de 600 árvores e arbustos autóctones, no âmbito do projeto “Vamos Manter o Alentejo Vivo”, apoiados pela ADPM – Associação de Defesa do Património de Mértola. “Ludicus Lucidus” é um ateliê de design de comunicação fundado em 2015 por Diogo Quaresma e Ana Nobre e onde são desenvolvidos projetos, sobretudo, na área cultural e artística, conjugando o sentido de responsabilidade social, política do design e a consciência da seriedade, da alegria e da lucidez da vida, numa busca pelo tão desejado equilíbrio.

Das várias valências artísticas em que Ana Nobre se movimenta, alguma que dê particular prazer? A vida não é um crescendo, um gráfico, uma linha contínua, vejo a vida como um lado, ou um mar, às vezes com mais água, outras com menos, às vezes com mais peixe, outras com mais algas. Isto para dizer que em cada fase da vida, para não dizer a cada momento, ou a cada dia, há diferentes necessidades que precisamos satisfazer para o bem-estar físico, emocional e relacional. Fazer arte é dar e receber, reciprocidade do sensível, tocar é também ser tocado. Se escutarmos o nosso ritmo biológico, se estivermos alinhados com este, agimos de acordo com as nossas necessidades, no sentido de aumentarmos a nossa energia vital, respeitando e cuidando da vida que nos rodeia, nos atravessa, nos é comum. Se o que faço vem desse lugar, então é prazeiroso, prazer também é alimento para o todo que somos.

 

Que relação estabelece entre as várias vertentes artísticas? É uma relação essencial, no sentido em que a essência é o mundo sensível que a todos é comum.

Quais as fontes de inspiração para a criação artística? A vida. Estar vivo é fascinante, estar/ser no/com/neste corpo, neste mundo é absolutamente fascinante, um milagre a cada respiração, cada raio de ínfima luz a iluminar cada poro que respira. É uma fonte inesgotável, até porque a nossa perceção muda, tudo muda a cada instante, e estar aqui para sentir, perceber, traduzir isso é igualmente incrível!

Que papel desempenha o Alentejo na arte de Ana Nobre? O papel de ser casa, terra de enraizamento, base para poisar e levantar voo sempre que necessário. Lugar-casa, terra de sustento e alimento emocional e espiritual.

Estar no Alentejo representa alguma forma de constrangimento para a promoção artística? Para a promoção, sim, porque somos poucos, poucas pessoas, poucas instituições artísticas, poucos apoios, e, cada vez, menos jovens.

As novas tecnologias são uma mais-valia para a carreira e para os projetos? Sim. Conhecemos os prós e os contras das redes socias, e devemos estar conscientes de que o mundo real é o mundo real, e o mundo virtual é o mundo virtual. Precisamos de conservar e alimentar mais espaços físicos, espaços de encontro e vivência. Voltar a estar corpo a corpo. Talvez com as restrições impostas pela pandemia a balança se tenha desequilibrado, ainda mais, a favor do mundo virtual. Há que tentar cultivar o físico, o corporal, o relacional, caso não queiramos perder a beleza que é estar neste corpo, neste mundo.

Que sonhos artísticos moram em Ana Nobre?Sonho viver uma vida harmoniosa comigo e com os outros, fazer aquilo que sinto, que intuo, que tenho de fazer em cada fase da vida, com liberdade, paz, amor, segurança. Que façamos cada um aquilo que melhor sabemos e procuremos a graça.

Algum conteúdo artístico a destacar?Lancei em junho de 2023 o primeiro single do primeiro EP “Brada Brava”, da Analentejana. A Analentejana é uma das minhas personas artísticas mais ligadas à arte sonora. Foi criada em Lisboa, em Carnide, no final do milénio, durante a minha adolescência. Ela canta, escreve e compõe música — de ouvido, com o corpo todo. Este EP tem canções suas, voz e percussões, e algumas reinvenções de canções tradicionais com arranjos, gravação e mistura de Nuno Damião (guitarra, baixo, teclados, beats e percussões) e masterização de João Miranda. Com a produção executiva de Ana Nobre, Nuno Damião e João Veiga, e produção da Bazarulho, o primeiro single “A. de Pêra” cheira a mar, sol e creme. É uma canção que convoca uma energia adolescente, capaz de quebrar certezas impostas ao nosso universo interior e corpo físico, pela nossa experiência social e cultural, em prol da liberdade.

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