Um lema, uma afirmação. A conquista de um sonho por um homem que tem subido a corda a pulso. Um desportista que não conhece obstáculos que não tenha superado, com um misto de coragem, de muita humildade e resiliência. Miguel Romão já ergueu a sua escola de guarda-redes.
Texto Firmino Paixão
Fernando Pessoa deixou-nos este legado: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. Porém, o caminho não é assim tão linear. A determinação de um homem nunca tem um ponto definitivo no horizonte. Uma vez lá chegados, marcamos logo outro no nosso imaginário. Miguel Romão sonhou, na sua adolescência, que um dia haveria de ter uma escola de guarda-redes. E concretizou esse sonho.
Há dias, povoou o relvado de Cabeça Gorda com três dezenas de jovens candidatos a guarda-redes. “Estou muito orgulhoso por dar visibilidade a esta posição que mais evoluiu nos últimos 20 anos no futebol moderno”, afirmou, deixando a porta aberta a outras iniciativas com mais candidatos.
Esta foi a primeira de muitas ações que a escola promoverá no futuro?
Sim. Depois do sucesso desta ação, certamente que foi a primeira de muitas e o objetivo da próxima será já fazer crescer o número de participantes. Fazer com que as pessoas ligadas ao desporto comecem a prestar atenção à posição de guarda-redes e que este trabalho seja valorizado. Que o guarda-redes seja visto como alguém que tem de trabalhar à parte da equipa. Não pode ser sempre integrado no trabalho coletivo e terá de ter um trabalho especializado. Como diz o lema da escola, “é o trabalho antes do sonho”. Portanto, seja com que idade for, estaremos cá com a máxima vontade e profissionalismo para os podermos ajudar naquilo que conseguirmos.
Ser guarda-redes requer vocação. Depois existe todo um processo de aperfeiçoamento?
Guarda-redes não é quem quer. As competências mentais e psicológicas são muito importantes para um jogador ser guarda-redes. Exige uma capacidade de sofrimento e de sacrifício muito diferentes. Depois, a vontade e o crer têm de estar sempre presentes em todos os momentos de trabalho, porque é uma posição muito bonita, mas também é a mais ingrata. Quando corre bem, poucos nos valorizam, mas quando corre mal, estamos logo debaixo dos holofotes e somos capa de jornal pelos piores motivos.
O Miguel é o rosto da escola, mas está rodeado de um conjunto de colaboradores que também têm experiência nesta posição…
Sim, temos a trabalhar, semanalmente, o Pedro Guerreiro e, para estas iniciativas, teremos o Rui Peta, o Eduardo Seita e o Nuno Languna. Todos já passaram por diferentes clubes emblemáticos e, felizmente, decidiram apoiar esta causa por amor à arte e isso, só por si, mostra muito daquilo que é a solidariedade que tem de existir para dar notoriedade à posição de guarda-redes. Isto é cansativo, exige muito de nós. Eles estão cá por amor à arte e eu agradeço-lhes imenso.
Era uma lacuna que existia neste distrito?
Era e é. Continua a ser. Nós não viemos suprir a lacuna na totalidade. O que nós fizemos foi tapar um buraquinho aqui da cidade de Beja, com alguns miúdos que vieram de fora, porque já nos conhecem e vêm treinar connosco. Mas o objetivo será continuar a crescer e tentar disseminar a escola por este distrito. O caminho será longo. Temos muito para percorrer.
A escola era um sonho seu?
Era um sonho muito pessoal. Tanto que a escola surgiu numa altura em que a minha posição dentro do campo, como jogador, não é compatível, ou será compatível, porque jogando a ponta de lança acabo por tirar um bocado de partido do conhecimento que tenho daquilo que é o guarda-redes. Mas onde me destaquei sempre foi na baliza, entre os postes, e isto é realmente a concretização de um sonho. E só tem sido possível porque tenho uma família que me dá muito suporte, sentindo a minha falta enquanto me dedico a isto.
O sonho começou em 2015, em Amesterdão, quando foi distinguido como o melhor guarda-redes do Mundial de Futebol de Rua?
Não. Já vinha do passado. Com 15 anos trabalhei nos escalões de base do Lusitano de Vila Real de Santo António. Sempre achei que teria vocação para treinar e, na posição de guarda-redes, tinha muito para aprender. Tinha e tenho, porque nós estamos sempre a aprender, mas também já tenho muito para dar e sempre achei que tinha vocação. Então, comecei a sonhar com isto, aproveitando também a lacuna que existia, porque ninguém faz este tipo de trabalho e agora foi o momento certo.
O Mundial de Futebol de Rua deu-lhe visibilidade e abriu-lhe as portas do futebol federado?
Mais do que visibilidade acho que me deu credibilidade e, neste momento, é mais importante ter credibilidade, para as pessoas acreditarem no nosso trabalho, do que ficar apenas pela visibilidade. A visibilidade virá agora, através deste eventos que permitem promover a imagem da escola, tentando passar os nossos métodos de trabalho e, aí, sim, ganhar visibilidade. Podíamos crescer mais rapidamente, mas teríamos de deixar de ser tão seletivos na escolha das pessoas que trabalham connosco, descurando a parte humana. Não queremos isso. Queremos é saber que temos as pessoas certas inseridas no projeto. O que me importa, e à equipa que me apoia, é que as pessoas acreditem naquilo que fazemos e que o nosso trabalho é benéfico para as crianças e jovens com quem trabalhamos, não esquecendo que uma das partes que mais valorizamos é a parte humana, o crescimento dos miúdos, a sua valorização na área social. Nem todos os jovens serão profissionais, mas todos serão homens no dia de amanhã.
O Miguel teve uma infância e uma adolescência difíceis. O desporto foi o farol que lhe iluminou este caminho. Fez o seu processo de inclusão através do futebol de rua. Hoje tem uma vida estruturada, uma família feliz e faz o que mais gosta…
Sou feliz. Sou realizado e, principalmente, sou uma pessoa determinada. Sei aquilo que quero. O meu farol foram as coisas que fui aprendendo ao longo da vida, com mais pancada, menos pancada, que a vida nos vai dando, fui aprendendo. O futebol de rua foi, talvez, o diamante da minha carreira. Aprendi muito com as pessoas que passaram por mim, por isso, quando falo em fazer crescer estes miúdos na área social, sei do que falo. Sei muito bem!
