Texto | José d’Encarnação
No seu livrinho sobre o Museu Regional de Beja, publicado em 1946, deu conta Abel Viana, nas páginas 82-83, de uma placa romana com inscrição, encontrada, em 1946, “em um ferragial próximo do Poço Largo, junto ao campo de futebol na cidade de Beja”. “O achador”, acrescentou, “vendeu-a ao coleccionador Sr. José Mendonça dos Santos Furtado Januário, desta cidade”.
Já houve oportunidade de nos referirmos a este antiquário, na página 13 da edição de 9 de fevereiro. Aproveitamos a deixa para nos debruçarmos sobre a outra epígrafe romana dessa coleção, que se guarda no Museu Municipal de Tavira, com o número de inventário MMT 2158.
Também Alexandre Cesário fez, a 14 de outubro de 1977, às III Jornadas Arqueológicas, organizadas, no Museu do Carmo, em Lisboa, pela Associação dos Arqueólogos Portugueses, a comunicação “Duas inscrições romanas de uma colecção partícular”, onde se referiu ao citado epitáfio de Monia e à epígrafe de que ora nos vamos ocupar. A sua comunicação não foi, porém, publicada no volume de atas dessa reunião científica.
Tivemos ocasião de a estudar, a 22 de agosto de 1977, no Monte da Guerreira, em Estiramanténs (freguesia de Santo Estêvão, concelho de Tavira) e desse estudo se fez eco, sob o n.º 246, no livro Inscrições Romanas do Conventus Pacensis (Coimbra, 1984, p. 318-319). Valerá a pena explicitar agora o seu interesse histórico no quadro da população da romana de Pax Iulia.
O letreiro
Trata-se de uma placa, destinada a servir de porta, digamos assim, ao gavetão de um columbário, onde se poderia ter colocado o caixão (caso se tratasse de uma inumação) ou o vaso com as cinzas (se, ao invés, previamente o cadáver houvesse sido cremado). Mede 61 centímetros de alto por 57 de largura e nove de espessura. Preparada em mármore cinzento de Trigaches, já foi achada partida em dois pedaços que se ajustam; do lado direito e em baixo, ainda resta um trecho da aresta inicial alisada; do lado esquerdo é que já estava tudo partido. Foi comum, na época romana, a utilização da pedra de Trigaches para os monumentos epigrafados.
As fraturas levaram as letras iniciais das linhas 1, 3, 4 e 5; no entanto, como nos dá a sensação de que o canteiro quis paginar o texto em obediência a um eixo de simetria, a linha 2 está completa e as letras em falta reconstituem-se sem qualquer dúvida. Aliás, nota-se que a gravação foi feita com todo o cuidado, em letras que chamamos de monumentais quadradas, por obedecerem a um certo gosto pela geometria (medem entre cinco e 6,5 centímetros de altura); a irregular profundidade do traço destina-se a dar – com a luz – a sensação de claro-escuro, favorecendo a leitura.
E o que se lê aí?
O texto está, naturalmente, em língua latina e nele se usam as siglas e abreviaturas habituais a que o canteiro recorria sempre, a fim de poupar espaço e obter um letreiro agradável à vista. Neste caso, para ser lido à altura dos olhos e, por isso, os espaços entre as linhas andam pelos 2,5 centímetros e só o espaço após a última linha é maior: 19,5 centímetros.
Importa, por conseguinte, desdobrar essas siglas e abreviaturas e traduzir. Em português, ali se diz o seguinte: “Aqui jazem Gaio Júlio Níger, liberto de Gaio, augustal, Júlia Prima, liberta de Gaio. Que a terra lhes seja leve”.
O alcance histórico do letreiro
Atente-se que não há menção de quem foi o promotor dessa homenagem póstuma. Poder-se-á sempre presumir que poderá ter sido o seu senhor, que seria Gaio Júlio, nomes que passaram, os dois, para o Níger; e um só, o de família, para Prima. Não é de estranhar essa atitude: primeiro, porque, dessa sorte, também o nome do senhor e o facto de ter libertado dois dos seus servos se legaram à posteridade, para que o louve; depois, porque, certamente por eles lhe haverem prestado bons serviços, o senhor os quis libertar da servidão, e o seu preito correspondia, por conseguinte, a um gesto de gratidão.
Abra-se aqui um parêntesis para se atentar no que se acaba de ler: um senhor, dono de servos, outorga-lhes a liberdade! Não é incomum essa atitude na sociedade romana e ela está, de resto, igualmente bem atestada no conjunto da documentação epigráfica de Pax Iulia. Recorde-se que, por exemplo, era servo o “vilicus”, ou seja, o responsável por uma “villa” romana, equivalente, nos nossos dias, ao feitor; eram de condição servil os médicos, os professores… Houve, em tempos, a ideia de chamar “esclavagistas” aos romanos de outrora, por se pensar tratar-se de uma organização social baseada na escravatura; as investigações de hoje vão, por consequência, num sentido diferente.
Neste caso, Níger e Prima pertenciam a uma das primeiras famílias a estabelecer-se em Pax Iulia, uma vez que o seu patrono era Gaio Júlio, isto é, tinha os dois nomes do conhecido Gaio Júlio César, pai adotivo do primeiro imperador romano, Augusto. César e Augusto intervieram na fundação da colónia pacense. Os nomes dos dois defuntos podem ter uma razão concreta: ela, Prima, a primeira a ser adotada; ele poderia ser negro, que é esse o significado da palavra latina “níger”, negro ou muito moreno; mas não é obrigatório.
Contudo, o que mais é de realçar aqui é o facto de Níger ter sido eleito para um cargo assaz importante na hierarquia social: ele foi augustal! Ora, ser augustal significava pertencer a um colégio, ou grupo, constituído por seis pessoas, eleitas anualmente, que tinham como missão zelar pelo culto ao imperador.
O que é que isto queria dizer?
Saberão os nossos leitores qual a missão das atuais juventudes partidárias, que vêm na sequência do que foi a Mocidade Portuguesa, a Juventude Hitleriana, os Camisas-Negras de Mussolini… Isto é, organizações que fomentavam o apoio ao poder político dos seus mentores. Pois o colégio dos augustais visava isso mesmo: organizar iniciativas que visassem o apoio ao poder central.
Compreende-se, por isso, quão importante deveria ter sido Níger para o haverem escolhido para essa missão.