Diário do Alentejo

Letreiro escondido na chaminé

10 de junho 2024 - 08:00

Texto José d’Encarnação, Arqueólogo

 

Não deixa de ser curiosa a história desta árula romana, de 33 centímetros de altura, que o saudoso louletano Leonel Borrela (1955-2017) identificou, quando, em 2003, no n.º 13 do largo dos Duques de Beja, se descascava uma parede para instalação duma chaminé.

 

Um documento conhecido De mármore com tonalidades de branco, amarelo (devido à pátina) e cinzento, o pequeno altar está bastante danificado dos lados (a face lateral esquerda foi mesmo desbastada) e na parte inferior, tendo desaparecido a molduração da base certamente existente e a corresponder à singela moldura, de cariz clássico, que separa o capitel do fuste epigrafado.

A primeira informação que temos da sua existência consta da pasta LXVIII f. 1, do manuscrito CXXIX/1-13, guardado na Biblioteca Pública de Évora, da autoria de frei Manuel do Cenáculo, que a indica como “achada na escavação do Sr. Padre Urbano, em Beja” ou “no alicerce das casas do Sr. José Urban da rua dos Samblãos”, se seguirmos o que, em 1869, Emílio Hübner diz ter lido, acrescentando esse investigador que aí se leria também que o monumento teria seguido para o palácio episcopal. O certo é que, afinal, esse resguardo poderá não ter passado de intenção, porque o referido Hübner já foi em vão que a procurou.

O desenho está, com o n.º 35, na pasta 1-14, indicando uma leitura que corresponde, de facto, ao que hoje se lê no monumento. Quiçá haja exagerado o desenhador na largura da face lateral esquerda, que é apenas de 17/18 centímetros, segundo as medidas que Leonel Borrela teve a amabilidade de me dar; por isso, chegou a pensar-se que se poderia estar em presença de um pedestal. Não é: é mesmo um pequeno altar, que valeria por si.

 

Um letreiro assaz estranho

 

Diz o letreiro:

ALPHVRICGENESIS EXIVENTVTE∙ D ∙ D ∙ D

 

Há um claro alinhamento do texto à esquerda, de modo que o esborcinado que atingiu o começo da atual linha quatro deve ter levado uma letra. Quanto ao final da linha três, o sulco levemente oblíquo que se enxerga após o E resultou mais do desbaste efetuado do que da gravação duma outra letra.

E aí começou o busílis para os epigrafistas: que tipo de monumento é este, onde se gravaram palavras tão estranhas?

Da sua viagem de estudo a Portugal fez, em 1861, o citado Emílio Hübner, circunstanciado relatório à Academia das Ciências de Berlim, publicado pela Academia Real das Sciencias de Lisboa em 1871, sob o título “Noticias Archeologicas de Portugal”, com tradução de Augusto Pereira Soromenho, o bibliotecário da Academia. Lê-se na página 41: “Pode talvez considerar-se uma dedicatória à IV(v)ENTVS a seguinte inscrição que só foi conservada nos papéis de Cenáculo:

pALPHVRIA… filGENESIS ∙ EV votoIVENTVTIL ∙ d ∙ D ∙ D

 

Outra cópia achada nos mesmos papéis diz EVENTVTI e E ∙ D ∙ D: ambas trazem na primeira linha ALPHVRIC e GENESIS”.

Nos comentários incluídos na publicação de 1869, sob o n.º 45, Hübner apenas se interessou pela primeira palavra. Levanta a possibilidade de se tratar do nome Palphuria, na medida em que – diz – na Vida de Probo, há referência a um ladrão chamado Palfurius e existe, além disso, uma estação do Itinerário de Antonino, sita perto de Tarragona, que se designa Palfuriana.

No III volume do livro Religiões da Lusitânia, de 1913, Leite de Vasconcelos cita a inscrição nas páginas 301-302. Opta por reconstituir [P]alphuri e lê [G]enesis ex [voto] IVENTVTI L(ocus) [D(atus)] D(ecreto) D(ecurionum). Ou seja, sugere desta forma que alguém fez a promessa de dedicar um monumento à divindade Juventude e que o local para o implantar foi publicamente cedido por decreto dos decuriões, os magistrados locais. E, atendendo a que a palavra latina Genesis quer dizer “nascimento”, acrescenta o autor este curioso pormenor interpretativo: “(…) E visto que a deusa de que se está tratando protegia a gente moça que chegava a idade casadoira, talvez aqui se quisesse estabelecer correlação entre ‘Génesis’ e ‘Iuventus’, por qualquer motivo particular que desconhecemos” (p. 302).Escreveu Álvaro d’Ors, em 1953, o livro, que se tornou clássico, em que comenta as inscrições romanas da Península Ibérica passíveis de conterem aspectos jurídicos. Nesse rol incluiu este monumento, por lhe parecer que poderia testemunhar o culto à deusa Iuventus (Juventude), por alguém ligado a um colégio de iuvenes (jovens), dado que, no texto, surge a expressão “ex iuventute”, isto é, “da juventude”. Esses colégios, acrescenta, rendiam culto à divindade e constituíam alfobres da aristocracia local.

O reaparecimento da árula permitiu levantar uma questão: existiu uma primeira linha que foi martelada? Dá impressão que sim. Nesse caso, estaria aí o nome da divindade. Na linha três identifica-se a dedicante, Génese: há testemunho, no mundo romano, de mulheres com esse nome. No final, a fórmula “no local dado por decreto dos decuriões” assinalaria a importância do ato. Leite de Vasconcelos sugeriu a hipótese de que poderia ter existido “um templo, edícula, altar, coluna ou monumento semelhante, onde a lápide estava encravada”. Uma edícula (oratório) poderia ser.

Resta, pois, por discernir o significado da frase “ex iuventute”: indicará a tal pertença a um colégio de jovens? Por outro lado, se pensarmos que o nome da divindade estava na linha um, “Alphurico” ou “Alphuricae” poderá ser o seu epíteto, de que, porém, não subsistem paralelos.

Em suma: cá está um dos casos em que, aparentemente, a leitura não oferece dúvidas; mas o que, na realidade, o letreiro quer dizer continua a ser uma incógnita.

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