Diário do Alentejo

O canteiro romano que não sabia ler nem escrever

07 de outubro 2024 - 10:00

Texto | José d’Encarnação

 

Sentir-se-á agora infeliz, porque, não tendo compreendido quase nada do que lhe ditaram ou lhe deram para copiar numa tábua encerada, acabou por gravar um epitáfio a que – quiçá por isso mesmo – não se tem ligado muita importância.

De facto, quando, em 1946, nas páginas 13--14 do livrinho que intitulou Museu Regional de Beja, Abel Viana deu conta da existência, no museu, com o número de inventário B-53, deste “cipo cupiforme”, nem sequer ousou interpretar o texto que nele, no tempo dos romanos, havia sido gravado. Indicou o que lhe parecera ali estar escrito, mas limitou-se a contar alguns pormenores da escrita que lhe pareceram mais fora do comum. Assim, escreveu: “AA em forma de VV invertidos; MM muito abertos; os NN com o traço diagonal partindo do meio do traço esquerdo desta letra. Os AA, quase todos do feitio de lambda, mas em uns é o traço da direita que se prolonga para cima, em outros o da esquerda”. “Este exemplar”, acrescenta, “conserva a base, em forma de soco rectangular, e tem a inscrição intacta, embora houvessem cortado perpendicularmente ambas as faces”. E, antes de referir as dimensões (75 centímetros de comprimento por 35 de altura), anota simplesmente: “Achou-se nos alicerces da torre do Castelo, daquela que fica ao lado da Sé, ou no começo da Rua da Guia, em 1940”.

Por conseguinte, a localização exata do achado já no seu tempo se não sabia; compreendeu, porém, Abel Viana que essa não era uma questão importante, na medida em que se tratava quase de um lugar-comum: o reaproveitamento nas muralhas de Beja de pedras volumosas, como esta, retiradas duma das necrópoles romanas próximas.

Será preciso esperar pelo ano de 1971 para, de novo, haver uma notícia escrita acerca da existência deste monumento: Júlio Mangas, ao preparar a sua tese de doutoramento sobre os testemunhos epigráficos de escravos e de libertos na Hispânia romana, publicada nesse ano pela Universidade de Salamanca, achou que ali estava escrito o epitáfio dum tal “Iluluceianus”, mandado lavrar por Upela, que considerou ser “vernacla matertera”. Na verdade, tudo muito estranho nessa nomenclatura e Júlio Mangas, que apenas tivera acesso ao que Abel Viana escrevera, não ousou ir mais além.

 

Vamos então decifrar! Por conseguinte, grande era o desafio: afinal, que é mesmo o que aí se lê, nessa cupa de mármore de Trigaches, que conserva o soco (para assentar sobre a sepultura) e quatro aros de aduelas, como se fosse mesmo um barril?Lera Abel Viana (os traços indicam a mudança de linha): DMS / ILVLVCEIIA / NVSUXSAN / NISXXXVP / IILAVER / NACLAMA / TERTTRA / HSSTL Convenhamos que parece verdadeira charada e o pobre do canteiro atamancou, o melhor que soube, as letras que conseguiu ler, no espaço que tinha disponível, entre os sulcos que representam os aros das aduelas e o de cima e de baixo, que delimitavam o campo para o texto.

Assim, como, decerto, já vira outras vezes, pôs bem e espaçadas, embora fora do campo, as três siglas inicias da fórmula consagrada: DMS, que, desdobradas, significam Diis ∙ Manibus ∙ Sacrum, “consagrado aos deuses Manes”.

Não logrou, mesmo assim, compreender bem a fórmula final, que lhe poderiam ter transmitido a trouxe-mouxe, qual assinatura de médico; e, por isso, ele arramalhetou como lhe pareceu melhor. Assim do que deveria ser, completo, HSESTTL, pôs só HSSTL, e o povo que leia como se lá estivesse tudo a dizer (traduzo para português) “Aqui jaz. Que a terra te seja leve”.

Claro, essas eram as fórmulas e, por isso, lá se ajeitou. Agora o que estava pelo meio é que foi o busílis! Ainda se, na minuta, lhe tivessem posto os pontos a separar as palavras, vá que não vá! Agora assim, tudo pegado – e venha o Diabo que entenda!Só, portanto, em 1984, é que se ousou propor a decifração do enigma. Por exemplo: IVLIVS foi escrito ILV; VIXSIT transformou-se em VXS; IVLIA saiu IILA; MATERTERA deu MATETTRA…

E, então, o que é que se logrou entender? Que se trata do epitáfio de Júlio Luciano (aqui, numa variante derivada da pronúncia, Luceiano, e, inda por cima, com dois CC e dois II!...), que viveu 35 anos. Foi a tia materna, Júlia Vernácula de seu nome, que tratou de mandar erigir o monumento sepulcral ao sobrinho.

Embora não tenha entendido bem o que estava escrito na pedra e baseando-se apenas, como se disse, no que Abel Viana transcrevera, Júlio Mangas atribuíra tanto ao defunto como à sua tia o estatuto de libertos da família Júlia, uma das mais documentadas na epigrafia de Beja (ou não se chamasse Pax Iulia esta cidade romana!…). Não é taxativa a atribuição desse estatuto, de servos que, um dia, o senhor libertou. No entanto, há aqui um pormenor que não é de somenos, pois demonstra o sentido de ternura familiar, habitual entre os membros desse estrato social: foi a tia materna (matertera, em latim) quem tomou a iniciativa! E é também por isso, dado que não há muitas referências a tias maternas, que este monumento deve ser recordado! E sê-lo-á doravante, porque, até agora, quase tem passado despercebido.

Comentários