Diário do Alentejo

Letras poucas, discórdias grandes!

28 de outubro 2024 - 16:00

Texto | José d’Encarnação Arquéologo

 

Nem sempre a interpretação dum escrito colhe consenso fácil. E os historiadores – sabe-se! – ‘pelam-se’ por uma boa polémica. Foi o que aconteceu – e continua a acontecer – com a pedra de que ora se vai tratar.Deve começar por dizer-se que, porventura, por ser um pedaço de pedra com letras cujo significado se não atingia, ele acabou por levar descaminho.

Foi André de Resende quem, no livro sobre As Antiguidades da Lusitânia, publicado em 1593, por primeiro se referiu ao letreiro, no capítulo que dedica a Pax Iulia. Depois de aludir ao facto de já muito ter escrito sobre a cidade, “na bem longa epístola a Vaseu, Em defesa de Beja, no opúsculo a Francisco Nunes e em não poucos passos da minha obra”, anotou:“Encontra-se ali grande número de monumentos romanos dos quais considerarei alguns dos que se observam dispersos pelas muralhas da cidade. De frente para as novas Portas de Moura, há um que diz: ‘Gaio Júlio, filho de Gaio, duúnviro’”.É, pois, este o primeiro de uma série de letreiros de que dá conta e, como era seu hábito, dele apresenta um esboço, donde se depreende que o interpretou como o canto superior esquerdo duma epígrafe, de que já se não conseguia ler nada mais nem à direita nem após a terceira linha. De facto, embora a sua leitura o não contemple, o desenho mostra um texto maior do que a tradução faria supor:

C. IVLIVS. C. F.II VIR. BIS PRAVTRIQVE. SEN

 

A interpretação de Frei Amador Arrais Nasceu em Beja, no ano de 1530, o frade carmelita D. Frei Amador Arrais. Não admira, pois, que, na sua obra-prima, Diálogos, publicados em 1589, as antiguidades de Beja estejam presentes e, destas, as inscrições.Atenda-se ao facto de este livro ter um carácter patriótico e apologético, o que facilmente se deduzirá do título do Diálogo IV, “Da glória e triunfo dos Lusitanos”, em que se insere o capítulo VI, “Das colónias da Lusitânia e sua fundação”. E escreve: “O mestre Resende, na carta que escreveu em graça da Colónia Pacense, que é de muita erudição, diz que Pax Iulia e Pax Augusta era a mesma cidade de Beja, que de Augusto se chamou Augusta e de Júlio Iulia e Júlio foi o que lhe deu privilégio de Colónia Romana” (fólio 109, na edição de 1604, disponível na Biblioteca Nacional Digital).

De seguida: “Alguns escrevem que quando Octávio César edificou Mérida e Saragoça, edificou também Pax Iulia e lhe deu o nome de seu tio. Porém, esta conjuntura não quadra, porque dantes o tinha, como se vê em um pedaço de mármore que soía estar em Beja, à porta de Moura, no muro alto, com estas letras e outras gastadas do tempo:C. Iulius Ces.

I I Vir bis præ.Viri que Se.que fazem menção de Caio Júlio Ces. e dos cargos que teve, como se fora ele o que a fundou” (ibidem).Note-se: Ces. quer dizer César, mas Arrais preferiu deixar as letras como estavam na pedra (pensa-se…); “que” está escrito na sigla habitual, com a sinalefa de abreviatura; e que o intento principal, aqui, é mostrar que Badajoz não era Pax Augusta, como alguns queriam fazer crer.

Importa, pois, observar que, tendo citado André de Resende para a questão da autoria da fundação da colónia, não o aponta como informador da epígrafe, dando mesmo a impressão que a teria visto. Ou seja, ainda que possa ter servido de argumento para provar que foi César o fundador da colónia, não parece que Resende a tenha forjado e com essa intenção.

A interpretação de Vasco Freire Não muito tempo depois – ainda estava acesa a polémica sobre se Pax Augusta fora nome dado a Beja ou a Badajoz – elabora Vasco Freire o Livro das antiguidades da cidade de Beja e de outras particulares dependentes delas, mui curioso manuscrito que se encontra na Biblioteca Municipal de Beja. Curioso, porque está cheio de emendas, entre as quais a circunstância de ter sido dirigido à “Católica Majestade de el- Rei Filipe nosso Senhor” e essa dedicatória ter sido rasurada e o nome substituído pelo de D. João IV!...

Também Vasco Freire usa desta inscrição para contestar a fundação de Pax Iulia por César: “o que notoriamente não pode ser e prova-se de uma pedra que inda hoje está à porta de Moura, no muro alto”. Segundo ele, o escrito quer dizer: “Caio Júlio César teve duas vezes ofício de presidente nesta cidade”, “donde se vê”, acrescenta, “que Júlio César não foi o primeiro fundador de Beja, pois as letras dizem o ofício que teve depois de feita e em memória dele se fez o letreiro; que a primeira fundação sem falta se mostra ser de Túbal: o que mais certo é que fez Júlio César os muros, sendo presidente, e por esse respeito se pôs aquela memória” (p. 48-49).

 

Conclusão A discussão atual não se prende com o fundador de Pax Iulia, aceite que está a preferência por César. A personagem referida na epígrafe é um cidadão com o mesmo nome de César, filho de Gaio; foi duúnviro por duas vezes e, mui possivelmente, prefeito dos artífices.

O que mais tem chamado agora a atenção dos investigadores é entender-se o que terá sido escrito na linha três: referência à existência “de dois senados”, um dos indígenas e outro dos colonos? Alusão a um privilégio dado a habitantes de “ambos os sexos”? A primeira hipótese é, porventura, a mais viável, uma vez que a colónia se instalou onde já havia população a viver.

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