Diário do Alentejo

E longamente envelheças

29 de julho 2024 - 12:00

Texto José d’Encarnação

 

Não chega à dezena o número de inscrições romanas em verso achadas no território actualmente português. A que seus pais dedicaram à filha Nice, falecida aos 20 anos, constitui seguramente uma das mais ternas manifestações que nos chegou.Confesso que me tocou fundo a sua mensagem, mormente quando li que os pais de Nice, Ínaco e Io de seus nomes, lhe haviam atribuído o voto: “Que longamente envelheças nesta vida de que me não foi permitido desfrutar”.

Partira aos 20 anos; imensa fora a dor de seus pais, assim consubstanciada em longo poema; do lado de lá, ao lermos o epitáfio, vem esse doce voto de uma velhice longa e serena. Que mais poderá um sobrevivente desejar? E Nice no-lo deseja!

Trata-se de um bloco paralelepipédico, de mármore de Pardais, branco com manchas creme, cuja forma original se desconhece, por nos ter chegado após desbastado e maltratado para reutilização numa construção. Pode ter sido um altar com capitel trabalhado e, eventualmente, até, alguma decoração lateral. Também a face onde a inscrição foi gravada está danificada em vários pontos, de modo que a leitura oferece dúvidas.

Tem-se a informação de que apareceu no rossio de Beja, no ano de 1794, certamente por ocasião de demolições aí levadas a efeito. O bispo frei Manuel do Cenáculo teve conhecimento da descoberta e diligenciou no sentido de a pedra ser recolhida no palácio episcopal. Aí se manteve, aparentemente sem grande resguardo, porque o epigrafista alemão Emílio Hübner, quando passou por Beja em 1861, escreveu “Aí jaz no chão”, expressão que dá a entender não ter havido o cuidado que a importância do monumento merecia.

Quando foi para Évora, o bispo fez questão de a levar de modo que há notícia que integra, desde 1868, o espólio do museu de Évora, actual Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo, onde lhe foi dado o n.º de inventário 1827.Mede 75 centímetros de altura, 54 de largura e 36 de espessura.

 

Uma leitura difícil De um modo geral, os textos poéticos não são nem de leitura nem de interpretação fácil. Neste caso, o mau estado da pedra tem levado a que muitos autores hajam feito propostas de interpretação, ainda que, amiúde, se trate de pormenores, não enjeitando o sentido geral do poema, redigido em versos líricos hendecassílabos, forma própria para composições de índole funerária, criada pelo poeta latino Marcial.

O próprio Cenáculo terá pedido ajuda a frei Lourenço do Vale para uma primeira leitura, que foi transcrita pelo prior de Setúbal, Manuel da Gama Xaro, versão que Abel Viana deu a conhecer no “O Arquivo de Beja IX” (1952, p. 17).O citado Hübner teve oportunidade de ver a pedra, como se disse, e incorporou o seu texto, com o n.º 59, no volume II do conhecido Corpus Inscriptionum Latinarum, (Corpo das Inscrições Latinas) de Hispânia, em 1869. Logo aí, porém, dá conta das dificuldades de leitura, citando amiúde a opinião do seu colega, o filólogo Moritz Haupt.

Borges de Figueiredo enviou posteriormente a Hübner um decalque, que serviu para – tendo consultado também o seu colega Theodor Mommsen – Hübner apresentar, sob o n.º 5186 no suplemento ao referido Corpus, publicado em 1892, uma versão melhorada. Curioso verificar que lhe atribuiu um novo número, como que dando a entender que não valia muito o que publicara em 1869. E como, por outro lado, quisera saber a opinião de Franz Buecheler, que estava a preparar, na altura, a antologia Carmina Latina Epigraphica, reunião de todos os poemas identificados em monumentos epigráficos, optou por dar aí a sua versão definitiva do epitáfio: “Por isso, achou-se por bem repetir aqui o poema na íntegra”. Buecheler publicará o poema em 1897 (volume II, n.º 1553, p. 748-749).

Naturalmente, quem viria a debruçar-se sobre o recheio do museu de Évora não esqueceria essa pedra:– António Francisco Barata, Catalogo do Museu Archeologico da Cidade de Evora, 1903, p. 73, n.º 189;– Gabriel Pereira, Estudos Eborenses I, 1916, p. 18;

– Túlio Espanca, Inventário Artístico de Portugal, vol. VII – Concelho de Évora, 1966, p. 122.

E o próprio Abel Viana voltou a referir-se ao monumento no volume XIII (1956, p. 114-115) do “O Arquivo de Beja”.

Não se dirá que se pôs ponto final na discussão; contudo, terá sido quase decisivo o contributo de María José Pena e de Joan Carbonell, investigadores da Universidade Autónoma de Barcelona, especialistas em poesia latina, que, sob o título “Un interesante carmen epigraphicum de Pax Iulia (Portugal)” [“Revista Portuguesa de Arqueologia” 9/2, 2006, p. 259-270], analisaram exaustivamente esta epígrafe. E a sua versão praticamente coincide com a interpretação que, com alguma liberdade, se sugerira em 1984, nas Inscrições Romanas do Conventus Pacensis (n.º 270).

“Quem quer que tu sejas, viandante, que passares por mim, neste lugar sepultada, se de mim tiveres pena – depois de teres lido que faleci no 20º ano de vida – e se o meu repouso te sensibilizar, rogarei que, fatigado, tenhas mais doce descanso, mais tempo vivas e longamente envelheças nesta vida de que me não foi lícito desfrutar. Chorar, de nada te serve. Porque não aproveita os anos?

Ínaco e Io mandaram fazer para mim.

Vai, é preferível. Apressa-te, agora que já leste o que tinhas para ler. Vai.Nice viveu vinte anos”.

Eloquente expressão da dor dos pais, na vontade de quererem manter a memória da sua Nice no seio dos vivos.

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