De movimento em movimento cria-se uma acrobacia. De figura em figura constrói-se uma dança. Da tentativa e erro nascem oportunidades. É nesta sequência, que alia o corpo à mente, a diferença à igualdade, que, desde 2022, tem sido alavancado o grupo de ginástica acrobática adaptada da Academia de Desporto de Beja, uma parceira entre esta associação e a Cercibeja. Um exemplo que “tem de ser visto por outros” para que o conceito de “inclusão” deixe de ser exceção e passe a ser a regra.
Texto| Ana Filipa Sousa de SousaFotos | Ricardo Zambujo
É de sorriso no rosto, cumprimentando os presentes, que um e outro atleta vai chegando para mais um treino. A pequena sala de trabalhos da Academia de Desporto de Beja, até então vazia e silenciosa, aos poucos começa a estar repleta de ginastas que, de pés descalços, dão início ao aquecimento.“Com este frio já estavam de pijama e a dormir, não?”, graceja uma das treinadoras à chegada dos dois últimos atletas, ambos provenientes da Cooperativa para a Educação, Reabilitação, Capacitação e Inclusão de Beja (Cercibeja). A modalidade de ginástica acrobática adaptada, uma parceria entre a Academia de Desporto de Beja e a Cercibeja, integra, neste momento, 26 atletas, sendo que, destes, nove são utentes da referida instituição.“Estas pessoas têm as suas limitações, mas as outras pessoas também têm. Nem todos os atletas são perfeitos naquilo que vão fazer [e] se não experimentarem nunca saberão do que são ou não capazes”, começa por referir, ao “Diário do Alentejo” (“DA”), a presidente da Cercibeja.Para Vera Neca, a “verdadeira inclusão não é nós termos uma pessoa que tem deficiência ou uma doença mental num clube só porque lá vai”, mas, sim, “fazer com que essa pessoa vá tentando, tendo em conta as suas características, no mesmo patamar dos outros”. O início desta parceria remonta às atividades do “DesconfinArte”, um projeto levado a cabo pela Cercibeja no período pós-pandemia, em que os clientes tinham a oportunidade de experimentar “diferentes áreas artísticas” através de ateliês.“Pensámos em trazer alguns clientes até à academia para experimentar e ver como corria e foi correndo bem. Aqueles que gostaram e que quiseram foram continuando e as coisas foram-se encaixando”, recorda a responsável.Desta altura, Sandra Rodrigues, treinadora da Academia de Desporto de Beja, relembra que o entusiasmo inicial deu aso à integração num novo projeto da Associação de Ginástica do Algarve, que permitiu filiar os ginastas na Federação de Ginástica de Portugal.“A partir daí foi surgindo aquilo que está hoje, [ou seja] este grupo de ginástica acrobática adaptada que faz este tipo de trabalho conjunto com os nossos atletas de acrobática”, refere.Rita Domingos, de nove anos, e Rita Filipe, de 35, interrompem, momentaneamente, o aquecimento. Com um visível nervosismo, desviam o olhar à procura da aprovação de uma das treinadoras enquanto contam ao “DA” os seus percursos no mundo da ginástica acrobática.“Gosto de estar aqui, já aprendi muitas coisas e faz-me bem à saúde”, diz Rita Filipe, uma das atletas da cooperativa, que integra a modalidade desde 2022.Admitindo ficar “pouco nervosa” antes das apresentações, o que causa um ligeiro sorriso na sua colega Rita Domingos, que sabe que “não é bem assim”, Rita Filipe enumera “algumas” figuras que tem vindo a trabalhar e a aperfeiçoar. “Gosto [de fazer a] mesa, a subida de joelhos e as cambalhotas”, diz, sendo completada pela colega: “E também a espargata, a vela, a ponte e a roda”.Para a pequena Rita Domingos, que pratica a modalidade desde os quatro anos, é um misto de emoções estar em palco, mas quando terminam as apresentações o sentimento que predomina é a felicidade. “Ela é muito fofinha”, remata Rita Filipe, enquanto sorri carinhosamente perante a resposta da companheira de pista.
Ir mais além Apesar da diferença de idades entre os integrantes dos pares – o grupo completo é composto por atletas entre os nove e os 47 anos –, do grande portão branco para dentro não existe qualquer distinção entre ginastas. “Para mim são todos iguais [e] estão todos no mesmo patamar. Sentimos que todos fazem parte da mesma equipa e eles [clientes da Cercibeja] sentem isso também, que são bem recebidos, que estão em casa e, como costumamos dizer, estão com a família da academia”, realça Sandra Rodrigues.Para Vera Neca, este sentimento “é difícil de transmitir em palavras”, pois “é uma coisa que se sente quando estamos presentes”. “A forma como eles são acolhidos pelos outros ginastas não tem explicação e, é curioso que, quanto mais novos são os atletas [da academia] mais carinho e mais sensibilidade existe”, reforça a responsável.De volta ao treino, a volante Rita Domingues e a base Rita Filipe apressam-se a dar início aos trabalhos de melhoramento de “posturas e escolha de elementos”, uma vez que “o trabalho de um ginasta é repetir, repetir e repetir até estar perfeito”. Antes de a música começar a ecoar no grande ginásio frio, as irmãs Eduarda e Madalena Galinha chamam João Diogo para “dois dedos de conversa” com o “DA”. Em voz baixa, quase inaudível, o atleta da cooperativa, de 38 anos, refere que nas posições é “base” e que gosta da academia. “A ginástica já é muito boa para se participar, mas acho que esta modalidade de ginástica adaptada é totalmente diferente, porque faz-nos interagir mais e perceber que, no fundo, as nossas diferenças não significam nada”, diz Madalena Galinha, de 15 anos.A praticar desporto desde os três anos, a jovem atleta admite que a leveza deste grupo resulta do facto de “não haver preconceitos” e da facilidade em se “aprender” que “é possível fazer-se tudo”. Por sua vez, Eduarda Galinha, de nove anos, afirma gostar “muita da dança” e de “montar posições”, sendo a sua favorita “o avião em que fico em cima das pessoas”, mas que o momento alto das apresentações é quando estas “acabam e corre tudo bem”.“No início ficava nervosa, mas à medida que vamos fazendo mais apresentações isso fica mais fácil de controlar, mas fico muito feliz quando as apresentações acabam e corre tudo bem com todos”, refere a volante. Madalena Galinha completa: “Aliás, no final das apresentações ficamos felizes porque tudo correu bem, mas depois, quando olhamos para eles e estão visivelmente felizes, é melhor ainda”.Este é o reflexo da verdadeira inclusão. Independentemente das limitações que cada atleta da Cercibeja apresenta, segundo Vera Neca, “a porta está sempre aberta” para que “venham, experimentem [e] ocupem os lugares que têm de ocupar naquilo que é o seu trabalho na academia”. “Nós percebemos que, muitas vezes, os clubes têm a dimensão de competição, mas eles também podem competir dentro daquilo que são as suas condições. As pessoas têm de compreender também que é nesta relação entre todos que se enriquece e que cada um tem o seu lugar e há espaço para todos”, afirma.
Conquistar marcos Quase a terminar, a última parte do treino é dedicada à construção da mais recente coreografia. Composta inicialmente por três duplas, a introdução do trio na dança faz mexer com a performance anteriormente ensaiada.“Meninos, tenham atenção aos passos. Quem entrou de novo tome atenção”, apela Sandra Rodrigues enquanto acena com a cabeça para dar a confirmação de que é hora de colocar a música. A música começa a ecoar. Os nove ginastas movem-se, delicadamente, por cima dos grandes tapetes azuis e, aos poucos, as blusas cor de laranja e brancas que envergam parecem misturar-se com o cenário. Os sorrisos são uma constante. Esta parceria, criada desde 2022, tem sido “fundamental” para os clientes da Cercibeja “enquanto pessoas individuais”, uma vez que tem sido um pilar para trabalhar a sua independência, autoconfiança e liberdade.“Neste momento, estes atletas entram em qualquer lugar, em qualquer competição ou apresentação, e vão confiantes e sabem o que têm de fazer e, com isso, reforçam a sua autonomia perante a vida”, garante Vera Neca.Sandra Rodrigues dá um exemplo desta superação. “A primeira coisa que eles dizem quando temos de experimentar coisas novas é ‘não sei se sou capaz’ e depois nós insistimos e eles percebem que o conseguem fazer”. “No ano passado fizemos uma coreografia em que englobámos a classe de acrobática toda e tínhamos um momento final em que um atleta era jogado ao ar e eram os clientes da Cercibeja que o apanhavam, então cada vez que aquilo acontecia na coreografia eles não conseguiam controlar e comemoravam sempre”, recorda a treinadora, acrescentando que, “para eles, esse passo era uma vitória”. Para além desta capacitação, Vera Neca destaca uma outra particularidade que este projeto permitiu trazer à tona, isto é, “o envolvimento das famílias” e a valorização deste tipo de atividades que, na maioria das vezes, não se consegue prolongar para lá do horário da instituição.“Há sempre uma resistência por parte das famílias, porque não existe essa disponibilidade e abertura para determinadas atividades. Mas, neste caso, não se tem verificado isso, porque as famílias têm valorizado o trabalho que tem sido feito fora de horas”, assume a presidente da instituição.O exemplo da prontidão da mãe de um dos atletas que, por residir fora da cidade, “tem que ficar de propósito em Beja para que ele possa estar nos treinos” é, segundo Sandra Rodrigues, “um aspeto muito importante” para o sucesso deste grupo.Paralelamente, “o papel da comunidade e das instituições nesta responsabilidade que é a abertura dos clubes e das instituições a todos” é também uma das mais-valias que este projeto tem trazido. Recentemente a modalidade de ginástica acrobática adaptada alcançou o segundo lugar na categoria “Prémio ginástica solidária”, da Federação de Ginástica de Portugal, que “acaba por nos fazer acreditar que é este o caminho e que conseguimos lá chegar”.“Nós temos a tendência de, como estamos num meio mais pequeno, pensar pequeno também [e], às vezes, começamos a pensar grande e temos de colocar os pés um bocadinho no chão. Mas estas nomeações e estes prémios que vêm de fora fazem-nos perceber que nós também podemos pensar grande e, com isso, trabalhar e concretizar”, admite Vera Neca.Apesar de não terem recebido o prémio, a presidente da Cercibeja garante que “vamos querer estar lá outra vez” e que, por isso, o foco está em continuar a fazer o trabalho desenvolvido até aqui e aumentar o número de competições em que o grupo participa. “Uma colega perguntava o que é que os outros tinham feito para ganhar e nós não, e alguém lhe dizia que um dos critérios tinha sido a sua participação numa prova nacional e a pergunta que todos fizemos foi “e por que é que nós não participámos?’. É este o espírito e, por isso, para o ano vamos participar”, assegura.Este sentimento de que “tudo é possível” é uma constante no dia a dia. Exemplo disso é, também, a recente introdução de três atletas adaptados na modalidade de trampolins “para ver como é que corre”, mas sendo que “o mais importante é que eles gostem”. Para lá do grande portão da Academia de Desporto de Beja o mundo continua a não ser fácil e nem plenamente inclusivo. Como sublinha Vera Neca, este é um exemplo que “tem de ser visto por outros”, para que o amplo conceito de “inclusão” deixe de ser exceção e passe a ser a regra.