Diário do Alentejo

Diocese de Beja celebra 250 anos da sua restauração

29 de novembro 2019 - 10:50

Uma diocese que esteve mais de mil anos sem bispo. Um território configurado pela presença de ordens religiosas – militares, primeiro, mendicantes, depois. Podem estes factos explicar a atual religiosidade alentejana? Há quem diga que sim. A história, essa, é feita com martírios e paixões, mas também com episódios pouco dignos.

 

Texto António Marujo*

Fotos Bruno Lino Vassalo

 

Mais de mil anos sem bispo, entre o século VIII e 1770, a que acrescem um século e meio de instabilidade política e religiosa e seis séculos de presença religiosa dominada pelas ordens militares e pelos frades mendicantes. A atual diocese de Beja tem uma história religiosa atribulada. A estabilidade só chegará já em pleno século XX, mas os abandonos sucessivos (quebrados apenas pelas ordens religiosas) deixou consequências profundas na relação do Baixo Alentejo com o cristianismo e com a Igreja Católica.

A história da Beja cristã começa ainda no século IV. Há testemunhos arqueológicos vários que atestam que o Cristianismo está presente na Pax Julia dos romanos naquela época. Jacinto Salvador Guerreiro, que escreveu um estudo sobre a presença da Igreja Católica no Baixo Alentejo, cita como exemplos um templo de três naves no Monte da Cegonha (Selmes) ou os vestígios de uma igreja do século IV-V em São Cucufate. A partir de 589, com a conversão do rei visigótico Recaredo, há várias fontes escritas, incluindo assinaturas de vários bispos pacenses nas atas de concílios regionais, que atestam a presença do Cristianismo no território.

A história cristã de Beja começa a correr mal com a conquista islâmica da península. Em 713, Beja fica sob o poder de Abdal-Aziz. Aliás, o último bispo de quem há notícia – Isidoro, denominado Pacense – governa no século VIII e é o único historiador cristão contemporâneo das primeiras quatro décadas de ocupação muçulmana. O seu Chronicon, cuja narrativa vai até ao ano de 754, é considerado pelos especialistas como uma obra notável.

No estudo referido (publicado no catálogo “Entre o Céu e a Terra – Arte Sacra da Diocese de Beja”), Jacinto Guerreiro refere que, durante algum tempo, a planície alentejana é um campo de batalha entre os cristãos do norte e os muçulmanos, fixados no sul da Península Ibérica. No Baixo Alentejo a convivência entre os cristãos e os novos senhores muçulmanos atravessa altos e baixos, mas chega a haver cristãos martirizados, depois de tempos de tolerância. Um deles é, em 850-851, o diácono Sisenando.

 

Com a reconquista cristã – começada por Fernão Gonçalves, em novembro de 1162, e consolidada no século seguinte, quando o Algarve fica na posse do rei português – inicia-se um processo de ocupação do território pelas ordens religiosas militares. Ao contrário de Silves e Évora, antigas dioceses cristãs que são restauradas após a reconquista, Beja fica à espera de melhores dias. O repovoamento da região e a organização administrativa são, em larga medida, deixadas por conta das ordens de Santiago de Espada, de Avis e do Hospital, que cuidam igualmente da segurança das fronteiras.

 

Também as tarefas eclesiásticas – construção de igrejas, formação e distribuição de clero, assistência espiritual das populações – ficam sob a mesma tutela. A forte presença das ordens militares acaba por atrasar a chegada dos frades mendicantes – franciscanos e dominicanos – à região. Depois de algumas incursões ainda em meados do século XIII, os pregadores itinerantes só desenvolvem uma ação mais intensa na zona 200 anos depois, a partir da segunda metade do século XV.

 

Conjugados, estes dois factos determinam a religiosidade da região durante séculos. Ainda agora, sublinha o investigador citado, se podem notar claramente duas zonas com diferentes expressões da religiosidade: no triângulo Serpa, Moura, Beja (onde dominou a Ordem do Hospital), refere Jacinto Guerreiro, há mais conventos e mosteiros edificados do que em todo o resto da diocese, como também há mais expressões de religiosidade popular.

 

Em Moura, por exemplo, os carmelitas estabelecem o seu primeiro mosteiro no País por volta de 1250 e é dali que estendem a sua ação para o resto de Portugal. O restante território, entre Palmela e a bacia do Guadiana, é ocupado predominantemente pela Ordem de Santiago.

 

A presença dos franciscanos, cuja ação implica um contacto mais direto e intenso com a população, determina o resto: “Ainda hoje os alentejanos aceitam melhor a presença de padres missionários”, que fazem pregações itinerantes. “Foi isso que perceberam D. José do Patrocínio Dias [bispo de 1922-1965] e D. Manuel Falcão [1980-1999]”, que convidaram padres de congregações religiosas missionárias para deambular pela diocese a evangelizar, recorda o investigador. Uma atitude que se concretiza também na melhor relação com a expressão comunitária da fé.

Estas diferenças da manifestação religiosa alentejana, se parecem evidentes, precisam, no entanto, de ser ainda mais investigadas, acrescenta Jacinto Guerreiro. Até para poder compreender se estão relacionadas com o baixo índice de prática religiosa que se verifica em Beja, onde só seis por cento da população vai regularmente à missa de domingo.

 

O dito “Beja, terra sem fé nem sé” parece confirmar-se, à primeira vista. Mas Jacques Marcadé, numa biografia sobre o primeiro bispo da diocese restaurada, D. Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas (ed. Fundação Gulbenkian/Centro Cultural de Paris), contesta essa ideia: “Esta expressão não se justifica senão por um mau jogo de palavras e isso numa época em que Beja não tinha ainda reencontrado a sua sede episcopal. Se Beja não tem bispo senão em 1770, há mesmo assim uma armadura eclesiástica, na aparência sólida; e se não é muito profunda, há, no entanto, um sentimento religioso”.

 

Um facto que poderá verificar-se pela devoção à figura da Virgem Maria: nas invocações dos títulos das 117 paróquias, 44 são títulos de Nossa Senhora. A restauração da diocese acontece então em 1770. Não sem que, durante dois séculos, ela tivesse tido a oposição dos próprios cónegos de Évora. Em 1521, Beja é elevada a cidade por D. Manuel I e inicia-se um movimento que pretende ter ali, de novo, uma sé episcopal.

 

Em 1540, o cardeal D. Henrique é o protagonista da primeira tentativa. Sem resultado: o cabido de Évora, de cujo bispo depende Beja, move uma "forte oposição" à ideia do desmembramento por razões bem prosaicas: uma nova diocese no Baixo Alentejo significaria a perda de receitas importantes, que muita falta fariam. Por isso, apesar de o processo seguir para Roma por ordem do rei D. Sebastião, e apesar de o papa censurar a oposição do cabido eborense, apenas Elvas vê realizadas as suas pretensões de voltar a ser sede episcopal.

 

O domínio filipino de Portugal leva a cidade à decadência e a causa do novo bispado ao esquecimento. Em 1770, no reinado de D. José e sob o ministério do Marquês de Pombal, a diocese é finalmente restaurada. O título de “ecclesia pacenses” da Pax Julia romana e da Paca visigótica, ficara, entretanto, perdido para Badajoz. Mas a instabilidade não acabaria com o restauro da circunscrição eclesiástica. O primeiro bispo nomeado, Manuel do Cenáculo Vilas Boas, é um iluminista, “protetor das letras, das ciências e das artes”. É ele que cria estruturas de formação para o clero – “o clero deve ser sábio”, escreve o bispo numa instrução pastoral que dirige à diocese –, dinamiza a ação dos padres junto das populações e promove a realização de missões populares.

 

A mudança dura pouco tempo: frei Manuel do Cenáculo só vai residir para a diocese em 1777 e, 15 anos depois, em 1802, é nomeado para Évora. Os bispos que lhe sucedem ou não chegam a tomar posse ou não vão residir para Beja ou morrem antes da posse. A instabilidade político-religiosa do liberalismo fará o resto: basta dizer que, entre 1770, data da restauração, e 1922, início do período de estabilidade, a diocese está mais 80 anos sem bispo. Em 1864, por exemplo, é nomeado como bispo D. João Aguiar, que abandonara sem justificação a diocese de Bragança, em 1858. Por essa razão, a Santa Sé não lhe confirma a nomeação.

 

Entre 1883 e 1906, a ação de D. António Xavier Monteiro, escritor, pintor e músico, tem a criação do seminário a seu favor, mas no resto não deixa saudades: o bispo está quase sempre em Coimbra, muitos padres vivem em concubinato, o mal-estar é dominante. O verdadeiro restaurador da diocese, depois de século e meio de instabilidade, é D. José do Patrocínio Dias. O seu governo dura de 1922 até 1965 e é durante este tempo que a diocese fica dotada de estruturas para a ação pastoral e para a formação que permitem, finalmente, alguma estabilidade.

 

Com D. Manuel Falcão, que governa a diocese entre 1980 e 1999, surge outro capítulo da história: com o País a sair do período conturbado que se segue à Revolução de 25 de Abril de 1974, o bispo com formação em engenharia tem como objetivo principal levar a Igreja a deixar o interior dos templos e ir à procura das pessoas nos sítios onde elas vivem. Uma das suas intuições é, precisamente, o regresso às missões populares. Talvez por causa dessas preocupações lhe tenham chamado o “engenheiro das almas”.

 

A história da estabilização prosseguiu com D. António Vitalino Dantas, que governou a diocese entre 1999 e 2016, e D. João Marcos, o atual bispo. Vitalino Dantas convocou um sínodo diocesano que decorreu entre 2012 e 2016 e João Marcos publicou uma carta à diocese a chamar os católicos à celebração, em 2020, dos 250 anos da restauração do bispado, em 1770. Uma data que marcou o início do atual período institucional, mas que não evitou que a diocese tenha estado mais de mil anos sem bispo.

 

- Diretor do jornal on line “7Margens”, especializado em questões religiosas. Texto adaptado pelo autor para publicação no “Diário do Alentejo”.

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