Estas diferenças da manifestação religiosa alentejana, se parecem evidentes, precisam, no entanto, de ser ainda mais investigadas, acrescenta Jacinto Guerreiro. Até para poder compreender se estão relacionadas com o baixo índice de prática religiosa que se verifica em Beja, onde só seis por cento da população vai regularmente à missa de domingo.
O dito “Beja, terra sem fé nem sé” parece confirmar-se, à primeira vista. Mas Jacques Marcadé, numa biografia sobre o primeiro bispo da diocese restaurada, D. Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas (ed. Fundação Gulbenkian/Centro Cultural de Paris), contesta essa ideia: “Esta expressão não se justifica senão por um mau jogo de palavras e isso numa época em que Beja não tinha ainda reencontrado a sua sede episcopal. Se Beja não tem bispo senão em 1770, há mesmo assim uma armadura eclesiástica, na aparência sólida; e se não é muito profunda, há, no entanto, um sentimento religioso”.
Um facto que poderá verificar-se pela devoção à figura da Virgem Maria: nas invocações dos títulos das 117 paróquias, 44 são títulos de Nossa Senhora. A restauração da diocese acontece então em 1770. Não sem que, durante dois séculos, ela tivesse tido a oposição dos próprios cónegos de Évora. Em 1521, Beja é elevada a cidade por D. Manuel I e inicia-se um movimento que pretende ter ali, de novo, uma sé episcopal.
Em 1540, o cardeal D. Henrique é o protagonista da primeira tentativa. Sem resultado: o cabido de Évora, de cujo bispo depende Beja, move uma "forte oposição" à ideia do desmembramento por razões bem prosaicas: uma nova diocese no Baixo Alentejo significaria a perda de receitas importantes, que muita falta fariam. Por isso, apesar de o processo seguir para Roma por ordem do rei D. Sebastião, e apesar de o papa censurar a oposição do cabido eborense, apenas Elvas vê realizadas as suas pretensões de voltar a ser sede episcopal.
O domínio filipino de Portugal leva a cidade à decadência e a causa do novo bispado ao esquecimento. Em 1770, no reinado de D. José e sob o ministério do Marquês de Pombal, a diocese é finalmente restaurada. O título de “ecclesia pacenses” da Pax Julia romana e da Paca visigótica, ficara, entretanto, perdido para Badajoz. Mas a instabilidade não acabaria com o restauro da circunscrição eclesiástica. O primeiro bispo nomeado, Manuel do Cenáculo Vilas Boas, é um iluminista, “protetor das letras, das ciências e das artes”. É ele que cria estruturas de formação para o clero – “o clero deve ser sábio”, escreve o bispo numa instrução pastoral que dirige à diocese –, dinamiza a ação dos padres junto das populações e promove a realização de missões populares.
A mudança dura pouco tempo: frei Manuel do Cenáculo só vai residir para a diocese em 1777 e, 15 anos depois, em 1802, é nomeado para Évora. Os bispos que lhe sucedem ou não chegam a tomar posse ou não vão residir para Beja ou morrem antes da posse. A instabilidade político-religiosa do liberalismo fará o resto: basta dizer que, entre 1770, data da restauração, e 1922, início do período de estabilidade, a diocese está mais 80 anos sem bispo. Em 1864, por exemplo, é nomeado como bispo D. João Aguiar, que abandonara sem justificação a diocese de Bragança, em 1858. Por essa razão, a Santa Sé não lhe confirma a nomeação.
Entre 1883 e 1906, a ação de D. António Xavier Monteiro, escritor, pintor e músico, tem a criação do seminário a seu favor, mas no resto não deixa saudades: o bispo está quase sempre em Coimbra, muitos padres vivem em concubinato, o mal-estar é dominante. O verdadeiro restaurador da diocese, depois de século e meio de instabilidade, é D. José do Patrocínio Dias. O seu governo dura de 1922 até 1965 e é durante este tempo que a diocese fica dotada de estruturas para a ação pastoral e para a formação que permitem, finalmente, alguma estabilidade.
Com D. Manuel Falcão, que governa a diocese entre 1980 e 1999, surge outro capítulo da história: com o País a sair do período conturbado que se segue à Revolução de 25 de Abril de 1974, o bispo com formação em engenharia tem como objetivo principal levar a Igreja a deixar o interior dos templos e ir à procura das pessoas nos sítios onde elas vivem. Uma das suas intuições é, precisamente, o regresso às missões populares. Talvez por causa dessas preocupações lhe tenham chamado o “engenheiro das almas”.
A história da estabilização prosseguiu com D. António Vitalino Dantas, que governou a diocese entre 1999 e 2016, e D. João Marcos, o atual bispo. Vitalino Dantas convocou um sínodo diocesano que decorreu entre 2012 e 2016 e João Marcos publicou uma carta à diocese a chamar os católicos à celebração, em 2020, dos 250 anos da restauração do bispado, em 1770. Uma data que marcou o início do atual período institucional, mas que não evitou que a diocese tenha estado mais de mil anos sem bispo.
- Diretor do jornal on line “7Margens”, especializado em questões religiosas. Texto adaptado pelo autor para publicação no “Diário do Alentejo”.