A rotina a bordo da caravela é dividida em quartos, que em contexto náutico significam turnos de trabalho, normalmente de quatro ou três horas, dedicados a tarefas que vão de limpar casas de banho e louça, ao içar das velas de genoa - a dianteira, inovação portuguesa que permite navegar com segurança sob ventos desfavoráveis - vela grande e de mezena, para além de manobrar o leme.
Isentos dos quartos estão só o comandante, o imediato e o cozinheiro, Eugénio Ribeiro, de cognome "Conde da Gávea", nome moderno para o cesto do topo da vela grande, que antigamente tinha o nome técnico de "caralho", que deu origem à expressão "Vai para o...", porque seria desconfortável.
A expedição de Magalhães teve objetivos comerciais e políticos, mas também científicos, ao jeito da viagem de Charles Darwin no "Beagle", contando também com encarregados de capturar ou colher espécimes vegetais, animais e humanos ao longo das paragens. No Vera Cruz, apenas Alice, de 20 anos, foi colhendo amostras de água de mar e rio para medir os níveis de amónia e salinidade, numa investigação ambiental requerida pelo curso de Biologia Marítima da Universidade de Lisboa.
Para além da celebração de meio milénio de verdadeira globalização, a viagem do Vera Cruz, orçada pela Associação Portuguesa de Vela (APORVELA), parte também de ímpetos de ação social, a partir da instrução e formação de jovens oriundos de contextos menos dados à disciplina que o navegar exige.
"Nós acreditamos que fazemos viagens que mudam vidas", diz à Lusa o imediato Felipe Costa, "já ganhámos vários prémios sociais com projetos que fizemos na área do Mar, já embarcámos milhares de jovens ao longo destes quase 40 anos da APORVELA, e eles percebem que há muito mais mar que aquele que veem na praia. Crescem através da disciplina náutica e descobrem também um novo mundo, para além daquele a que estão habituados", conta com orgulho, a um dia do rio Guadalquivir.
Em quartos de noite limpa e lua nova, dedicados sobretudo ao leme, a Vera Cruz rasga as ondas num triângulo de fitoplâncton luminescente, uma esteira de pontos de luz que tenta esbater o horizonte - vasto - entre a Via Láctea e o mar. Se uma onda varre o convés, também o contamina de pontos de luz e, por meio segundo, o chão de madeira da nave é só mais um espelho do espaço.
"É engraçado que com esta tecnologia toda seja mais difícil, hoje, navegar à noite que nos tempos de Magalhães", comenta o comandante Inácio, "só porque o tráfego marítimo é muito maior. Agora é preciso muito mais medidas de segurança para não bater em ninguém, ou em bóias", ensina, em noite de calor pré-mediterrânico. Quando o mar é revolto e se tenta dormir, é possível ouvir tripulantes em beliches do porão a gritar impropérios análogos a "Gávea!", quando batem com a cabeça na parede.