Salvaguardar e valorizar um vasto património documental, histórico e artístico, disperso em vários acervos dos grupos corais alentejanos, é o principal objetivo do Arquivo Digital do Cante Alentejano, disponível on line desde maio.
Texto Nélia Pedrosa
Fotos Ricardo Zambujo
Grupo Coral Feminino Rosas de Abril de Rio de Moinhos. O remetente no ofício enviado ao Grupo Coral Os Ceifeiros da Amareleja – antigo Grupo Coral da Casa do Povo –, datado de 12 de abril de 2010, a confirmar a presença no 22.º encontro de grupos corais daquela vila do concelho de Moura, desperta a atenção de Florêncio Cacete ao folhear a documentação constante numa das cerca de duas dezenas de pastas de arquivo do grupo, alinhadas numa pequena prateleira de madeira. Até ao início da semana passada, o responsável pela implementação e coordenador do Arquivo Digital do Cante Alentejano, e restante equipa, desconhecia por completo a existência daquele grupo feminino já extinto. “Quando isto acontece fico contente porque é mais um sinal de que continua a fazer muito sentido aquilo que a gente está a fazer”, afirma o também colaborador do Centro Interdisciplinar de História, Cultura e Sociedade da Universidade de Évora (Cidehus), ao mesmo tempo que insere o grupo na plataforma on line do arquivo (www.arquivodigitaldocante.pt), somando-o às cerca de 380 referências existentes, entre grupos no ativo e já extintos.
Foi em plena pandemia de covid-19, quando investigava o impacto da doença nos grupos corais e também a sua relação com o setor do turismo, que, ao entrar na sede dos Ceifeiros de Amareleja e ao deparar-se com quatro paredes repletas de fotografias, cartazes, lembranças e alfaias agrícolas, entre outros utensílios, percebeu que o risco deste espólio se perder era enorme. “Cada objeto que aqui está tem uma história e a primeira coisa que pensei foi: ‘isto vai-se perder tudo’. Os grupos não têm noção de todo o valor que têm dentro das sedes. E a grande questão é que ninguém conhece este espólio fotográfico e documental”, justifica o investigador ao “Diário do Alentejo”. Nascia assim a ideia de criar um arquivo digital do cante alentejano, acessível a todos, que permitisse salvaguardar e valorizar um vasto património documental, histórico e artístico, disperso em vários acervos do Alentejo.
“Estas coisas devem ser partilhadas, porque são novas fontes para o conhecimento. Nós [equipa] não temos o objetivo de vir a estudar tudo aquilo que estamos a digitalizar. É impensável. Podemos fazer um apontamento ou outro. Mas temos a noção de que estamos a criar fontes para que outros o possam fazer… Isso é uma mais-valia. Imaginemos que um aluno de Belas-Artes quer fazer um trabalho sobre a linha gráfica utilizada nos anos 50 na publicidade do cante… porque também digitalizamos cartazes e programas de eventos. Toda a gente fala do cante na perspetiva da antropologia, da museologia, mas é possível desenvolver outro tipo de abordagem”, considera.
Tendo como entidades promotoras a Associação Alentejo, Terras e Gentes, a Comunidade Intermunicipal do Baixo Alentejo (Cimbal) e a Universidade de Évora, através do já referido Cidehus, e desenvolvendo-se “em estreita cooperação” com o projeto “Sharing memories” já em curso neste centro, o Arquivo Digital do Cante Alentejano foi oficialmente apresentado em maio deste ano, no decorrer da Ovibeja. Segundo Florêncio Cacete, “o projeto só é possível, claramente, porque financeiramente a Cimbal avançou”. Previsivelmente, a partir do início do próximo ano, irá contar também com o apoio da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo, para abranger o Alto Alentejo, o Alentejo Litoral e a diáspora, apesar de a recolha feita nos grupos do distrito de Beja ir permitindo “encontrar documentos referentes a outros grupos, nomeadamente, através da correspondência emitida e recebida”, ou seja, “deste confronto, vão-se construindo os arquivos de dois, três ou mais grupos” em simultâneo.
Inexistência de documentação é um dos principais problemas
O processo de inventariação do espólio arrancou com a criação de uma base de dados dos grupos, utilizando a lista que serviu de apoio à preparação da candidatura à elevação do cante alentejano a Património Cultural Imaterial da Humanidade, pela Unesco, em 2014, e também informação mais atualizada disponibilizada pelo Museu do Cante Alentejano, em Serpa. Ao todo foram identificadas, desde o ano de 1926, 367 referências, número que, entretanto, já subiu para 381, devido a novas identificações de grupos ou a processos de mudança de nome. Na fase seguinte procedeu-se ao contacto presencial com os grupos corais – 81 até ao momento, num universo superior a 130 ativos, a esmagadora maioria do distrito de Beja –, processo algo complexo, admite o investigador, tendo em conta as características dos próprios cantadores. “Há muitos destes diretores que não sabem ler o email ou que não têm email. Tem de ser por telefone. Por telefone ficam desconfiados. Temos de cá a vir uma primeira vez. E esta primeira vez, para muitos, ainda não aconteceu”, justifica, frisando que a recetividade dos grupos tem sido “fantástica”. “Têm sido de uma generosidade… há um cuidado em criarem condições para a gente fazer o nosso trabalho”.Já no que ao trabalho de inventariação e recolha diz respeito, os investigadores começam por solicitar “os documentos ligados à constituição do grupo”, para identificar os corpos sociais e “perceber se a data da fundação original é a que corresponde à escritura”, e, regra geral, não corresponde, “porque há grupos que só se constituíram legalmente a partir dos anos 80, para poderem receber subsídios, e há outros que ainda não têm personalidade jurídica, porque são secções de coletividades”. Prosseguem, depois, com a análise dos “dossiês que, supostamente, estão organizados – nem sempre estão”, e, por fim, dos documentos espalhados e guardados em caixas ou armários. No total já foram digitalizados 30 000 documentos, “uma ínfima parte” do espólio total, mas ainda só estão disponibilizados 2000 na plataforma.
No caso do Grupo Coral Os Ceifeiros da Amareleja, fundado em 1945, as cerca de duas dezenas de pastas de arquivo alinhadas na pequena prateleira de madeira corresponderão “só aos últimos 30 anos de atividade”, sublinha o coordenador. Aliás, a inexistência de documentação ou o desconhecimento do seu paradeiro é um dos principais problemas identificados em todo este processo. “Comecei a aperceber-me, porque também me iam dizendo, que nos grupos mais antigos havia a tradição de quando o diretor saía, ou falecia, as coisas que ele tinha em casa já não vinham para a sede. Eram queimadas pelos filhos ou andam por aí ao rebolão, porque já não diziam nada [aos familiares]. Havia também muita correspondência pessoal entre os diretores e essa é difícil de apanhar”, afirma.
O Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa, fundado em 1928, e o Grupo Coral Os Ceifeiros de Cuba, de 1933, dois dos mais antigos, são exemplos de grupos que “têm pouquíssima documentação no arquivo”, muitas coisas “não sabem sequer onde estão”. Ainda assim, “há muitas pessoas que têm familiares que andaram nos grupos, alguns já extintos, e até antigos diretores, que dizem que têm em casa cartas ou fotografias que nos podem ceder”, frisa Florêncio Cacete.
Para além da inventariação e digitalização do arquivo documental, o projeto prevê a digitalização do arquivo fotográfico e, numa terceira e última fase, o registo fotográfico de todos os “objetos ligados ao grupo” e a realização de entrevistas, filmadas, aos diretores “e a algumas pessoas mais velhas que estejam no grupo ou que o diretor indique”.
Apesar de tentarem seguir o cronograma estabelecido, o investigador admite que não raras vezes são obrigados a andar a “apagar fogos”, sempre que um qualquer espólio se encontre em risco. É o caso do extinto grupo coral da freguesia de Salvada, em Beja. “Ando preocupado porque eles tinham um arquivo muito bom e o espólio está dentro da junta e o senhor da junta não se entende com o senhor do cante… “. Ou do concelho de Ferreira do Alentejo, devido à existência de “muitas situações críticas de grupos que poderão acabar”. “Quero ir para lá em dezembro. Tem muitos grupos antigos e muitos grupos com muita gente velha. Num dos grupos mais antigos, de Peroguarda, morreu agora uma das diretoras… o grupo é capaz de se ressentir. É uma zona onde há muita coisa por explorar, porque o [etnomusicólogo corso Michel] Giacometti esteve lá muito tempo e se calhar até documentos originais vamos encontrar…”.
Recolha ajuda a “perceber dinâmica” das comunidades
Os documentos originais com datação mais antiga, digitalizados até ao momento, “são de 1937 e de 1941”, diz Florêncio Cacete, mostrando uma separata do “Diário do Alentejo”, deste último ano, da autoria de Armando Leça, que, em 1939, “andou na região a fazer levantamentos”. O documento, intitulado “Da música popular do Baixo Alentejo” e encontrado na sede do Grupo Coral Os Arraianos de Vila Verde de Ficalho (Serpa), diz respeito à intervenção do referido autor na conferência realizada na Casa do Alentejo, em Lisboa, a 30 de novembro de 1940, e “durante a qual se exibiu um rancho misto de cantadores de Vila Verde de Ficalho”. Na mesma separata consta uma fotografia do referido grupo, muito provavelmente dos finais dos anos 30, considerada “controversa por várias razões”, afirma. “Não é só a presença das mulheres, como também a presença de um instrumento musical, que parece ser um harmónio de uma ou duas escalas. Estas são duas das discussões que andam aí. O cante feminino efetivamente só começou com o 25 de Abril? Não se sabe. Era preciso ir apurar. Pelos vistos já havia grupos mistos, assim como grupos infantis”. Outro dos aspetos que chama a atenção é a indumentária. “Eram pessoas do campo? Mas que pessoas do campo? Proprietários? Se forem proprietários, faz sentido estarem com as mulheres. Porque não acredito que estas mulheres fossem solteiras ou não tivessem relação com os homens… à partida serão todas mulheres casadas, e, em 1939 terem sapatos destes, com fivela, à partida não são umas pessoas quaisquer. Não é propriamente um sapato pobre. E mesmo os lenços delas não são de algodão, são de lã. Não são lenços de andar no campo…”.
O outro documento, datado de 1937, também encontrado no espólio dos Arraianos, refere-se à “Festa de Lisboa, um cartaz original”, que tem o referido grupo de Ficalho, criado nesse mesmo ano, e o Grupo Coral Guadiana de Mértola, fundado em 1927.
Ao longo destes quase oito meses de recolha os investigadores já se depararam, também, com informação que acaba por contradizer até, em alguns casos, aquilo que sempre se difundiu como sendo verdadeiro, como é o caso da fundação do Grupo Coral do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Mineira de Aljustrel, prestes a completar um século de existência, que não se deve ao “doutor Bento Parreira do Amaral”, apesar de durante algum tempo ter “esse nome”. “Se se for à procura da história dos ‘Mineiros de Aljustrel’ vamos encontrar muitas declarações a dizer que o grupo foi fundado por um doutor Bento Parreira do Amaral. Está escrito em carradas de folhas de espetáculos, folhas de sala. É tudo mentira. Através da documentação a gente já percebeu que era um homem do Estado Novo, muito próximo de Salazar. Há 6000 cartas na Torre do Tombo de correspondência entre os dois. Portanto, era um homem do Estado Novo que estava ligado à mina pelas questões da saúde. Era de Alvalade do Sado e, efetivamente, entre 52 e 63 o grupo terá assumido o seu nome”, sublinha o investigador. Da documentação do grupo analisada até ao momento, o coordenador destaca ainda as cartas do sindicato “a pedir à administração da mina para que passassem mineiros da noite para o dia para pudessem participar nos ensaios”. Descobriu-se, ainda, que, nos anos 50, “os trabalhadores, independentemente de cantarem ou não, podiam pôr os filhos em colónias de férias, em Vila Nova de Milfontes”. Já em Castro Verde encontraram a primeira carta que a etnomusicóloga Salwa Castelo-Branco, uma das pessoas responsáveis pelo dossiê da candidatura do cante, “escreveu para se começar a pensar numa candidatura, em finais de 80, início de 90”. Em Vila Nova de São Bento (Serpa) foi encontrada “uma carta da embaixada de Israel, uma carta impecável até do ponto de vista artístico, parece uma obra de arte, a agradecer uma atuação que o grupo fez”.
“Do ponto de vista social, acabamos por tocar em muitos aspetos que também são interessantes. A gente acaba por perceber a dinâmica da própria comunidade. E construímos um bocado a memória dos grupos porque, com esta falta de informação e a dispersão dos documentos, muitos, sem querer, já incorreram em alguns erros históricos e nessa perspetiva também achamos que o nosso trabalho é importante”.
O apoio financeiro ao projeto, através da Cimbal, tem a duração de dois anos, ou seja, até “ao início de 2026”, no entanto, garante o investigador, o trabalho irá prosseguir. “Quando fui à Cimbal, timidamente, perguntar se eles estavam interessados em apoiar um projeto destes, o Fernando Romba, [primeiro-secretário], disse-me logo: ‘É espetacular, mas isto é um projeto para uma vida’. E é verdade. Isto vai ser um projeto para uma vida porque nunca mais acaba”.
O cante “será sempre aquilo que os grupos corais quiserem que seja”
Florêncio Cacete mostra-se preocupado com o facto de “muitas das ideias que estão a circular sobre o cante serem baseadas em ‘achismos’” e frisa que, “tirando os dados de 2014”, para a preparação da candidatura do cante, e os recolhidos entre 2019 e 2020, aquando da sua investigação sobre o impacto da pandemia nos grupos, “não há muitos mais números, em termos globais”, que “permitam fazer comparações”. Por isso, defende que cabe, por exemplo, ao Museu do Cante do Alentejano, ou a outra organização similar, “ou a elas em conjunto”, encontrar “uma forma de constantemente fazer um seguimento ao que se está a passar nos grupos de cante”. “Muitas vezes quem emite algumas opiniões com base nos ‘achismos’ não faz por mal. Muitas vezes está a passar a imagem do Alentejo que corresponde à imagem que tem do seu concelho ou do território mais próximo. Não quer dizer que seja efetivamente assim”, adianta, frisando que “se olha só para o lado mais negativo”, ou seja, quando há grupos que acabam “diz-se logo que o cante vai morrer”, mas “ninguém diz que o Grupo Coral de Ourique se reorganizou ou que em Odemira se criou um grupo coral com 55 crianças”. É claro que, sublinha, “o cante não está bem”, porque “tem problemas reais, falta de pessoas, de pontos, de altos, muita falta de organização a nível do território, e eles sentem isso, não são só dificuldades financeiras”. Quanto ao futuro, considera que o cante “será sempre aquilo que os grupos corais quiserem que seja”. “Alguma coisa de muito mau ou de muito bom que venha a acontecer daqui 50 anos no cante tem a mão dos grupos”.