Integrado nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, a Junta de Freguesia de Santiago Maior e São João Batista, em parceria com o Núcleo de Beja – Liga dos Combatentes, lançou em meados de outubro, nas redes sociais, o projeto “Memórias de Guerra”, que visa celebrar e valorizar o papel dos ex-combatentes da guerra do Ultramar. O projeto, que vai estar disponível até março, apresenta 22 histórias de ex-combatentes bejenses “que foram arrancados da sua cidade e das suas aldeias, obrigados a partir para os antigos territórios ultramarinos, sem saber em nome de quê ou quem, nem o que os esperava ou se algum dia voltariam a ver as suas famílias”. O “Diário do Alentejo”, ao longo de três edições (em janeiro, fevereiro e março), dará a conhecer alguns destes depoimentos, começando por José Crujo, António Rosa e Inocêncio Viriato, que combateram em Angola, o primeiro palco do conflito.
Texto Nélia Pedrosa Fotos Ricardo Zambujo
José Crujo partiu para Angola no início de maio de 1961, sensivelmente dois meses após ter eclodido o conflito que acabaria por se arrastar por mais de uma década, alastrando-se também, e em especial, à Guiné-Bissau e a Moçambique. Seguiu a bordo do “malvado” “Niassa” – “um barco para transporte de porcos, não para transporte de seres humanos”–, integrado no Batalhão de Caçadores n.º 92, uma das duas primeiras companhias de militares portugueses a desembarcarem naquele país. Ao todo seriam “umas duas mil pessoas”, recorda, ao “Diário do Alentejo”, o ex-combatente de 85 anos.
O então jovem fundidor da Metalúrgica Alentejana “tinha assentado praça” um ano antes, em abril de 1960, no Porto, porque o quartel em Beja “estava em obras”, e, assim que terminasse o serviço militar obrigatório, que duraria “um ano e um ou dois meses”, os planos passariam por regressar “à vida civil”. A guerra colonial acabaria, no entanto, por lhe trocar as voltas. Em Beja, o “soldado raso” de 22 anos deixou “pai, mãe e irmãos” para ir combater numa guerra que acreditava não ser sua.
“O Salazar dizia que aquilo era nosso. Angola, Moçambique e todas aquelas províncias ultramarinas. Que era nosso. Eu nunca concordei com isso. Pronto, tínhamos de ir. Se não fossemos já sabíamos o caminho que tínhamos: íamos para o forte de Elvas ou para uma cadeia assim. E então tivemos de aceitar, embora aquilo fosse dos outros. Porque quando nós [os portugueses] lá chegámos, já lá existia gente, os negros. Embora aquilo se fosse desenvolvendo muito lentamente por esses anos fora. Daqui, do quartel de Beja, partimos 17, para integrar o batalhão que se estava a formar em Faro e de lá fomos de comboio para Lisboa onde embarcámos”, conta, admitindo que, “como se estava no início” da guerra colonial, o conhecimento que tinham do teatro de operações era nulo, pelo que não tinham “consciência alguma” do que iriam encontrar.
A viagem a bordo do “Niassa” durou 11 dias. Onze dias penosos, “uma desgraça”, frisa. Muitas vezes ficou-se “pela sopa”, declinando o segundo prato, porque “os alguidares onde vinha a comida até ferrugem já tinham no fundo”. À chegada a Luanda, as duas companhias acabariam por se separar: o batalhão de José Crujo ficou alojado no seminário, o outro no liceu. Durante os oito dias em que permaneceram na capital angolana, os militares portugueses só podiam sair em grupos, “no mínimo, de cinco pessoas” e sempre armados, “mas não com as armas à vista”, para “alguma eventualidade que surgisse, e surgiram várias”. Segundo o ex-combatente, era frequente simpatizantes da UPA (União das Populações de Angola) atacarem as forças militares estacionadas na capital – “Quando eles atacavam vinham gritando: ‘UPA, UPA, UPA’”.
Passados os oito dias, o Batalhão de Caçadores n.º 92 rumou ao norte, a Sanza Pombo,“a uns 500 quilómetros” de Luanda (não muito distante da fronteira com o então Congo belga), considerada, na altura, a zona de maior conflito. Pelo caminho, principalmente, a partir da região do Negage, José Crujo recorda-se de ver pequenos aglomerados de cinco ou seis casas, muitas delas abandonadas pelos habitantes “que fugiram”; povoações incendiadas pelos resistentes ao colonialismo, nomeadamente, na zona de Puri; estradas sem condições. “Tivemos vários embates até chegarmos a Sanza Pombo. A nossa sorte é que nessa altura eles só usavam o canhangulo [espingarda antiga ou de fabrico artesanal, de um só cano comprido, que se carrega pela boca], que carregavam com pólvora”. O ex-combatente admite que as primeiras tropas portuguesas a chegaram a Angola “não tinham qualquer preparação” nem meios. “Tínhamos feito aquela tropa normal, não tínhamos [abordado] a questão da guerra, estávamos totalmente à parte. Não estávamos preparados para uma guerra. O primeiro a ser ferido acabou por morrer. Embora cada companhia levasse um médico, não levámos o essencial para lhe dar sangue. Ele acabou por esvair-se e vimo-lo morrer dentro do carro”. A única certeza, diz, é que tinham de se defender, de “lutar pela vida” a todo o custo. “Diziam que a gente ia defender o país. O país, não. O país era deles, embora estivessem debaixo do nosso domínio há volta de 500 anos. Portanto, tínhamos de disparar contra eles. Se a gente não os matasse, matavam eles a gente”.
Já em Sanza Pombo, onde o Batalhão de Caçadores n.º 92 ficou instalado “num armazém”, havia cerca “de um quilómetro de casas, de um lado e do outro, separados por um corredor – não havia ruas”. Dali os militares saíam para as ações de reconhecimento “nas matas cerradas” em redor, ações essas que poderiam durar “uns 15 dias”. Dormiam no chão, com “uns panos impermeáveis para quando chovesse” a fazer de cama. Comiam as rações de combate – “uma sopa knorr, um chocolate, umas bolachas de água e sal, umas sardinhas em conserva”. Passavam fome, porque não tinham “condições para fazer comida”. O risco de emboscadas era uma constante. “Eles estavam sempre à coca com a gente. Escondiam-se de uma maneira que a gente não os via, mas eles viam a gente. Faziam covas nas estradas e tapavam aquilo com folhagens e canas. Depois passavam com os pneus por cima para deixar rasto. Nós não sabíamos, vínhamos à vontade, e bumba… para dentro daquelas covas e lá vinham as granadas e nós, nos buracos, sem possibilidade de atirarmos”.
Nos intervalos entre os reconhecimentos, já regressados ao aquartelamento, jogavam à bola, conversavam, bebiam umas cervejas. “Esse era o nosso dia a dia, não havia mais ninguém, éramos só nós, os militares”. E escreviam aerogramas, também apelidados de “bate-estradas”, à família, às namoradas. “Eu contava histórias do que se passava com a gente, os ataques, às vezes, que nos faziam. Dizia [à namorada que viria a tornar-se sua mulher]: ‘Vai esperando até que eu chegue. Vamos lá ver se conseguirei lá chegar ou não’. Por acaso cheguei”.
Um ano após a chegada a Sanza Pombo, e depois de um mês de férias em Luanda, José Crujo partiu com o seu batalhão para a zona costeira também a norte da capital, na região de Ambriz e Ambrizete. Mais matas densas, despovoadas. “Em Freitas Morna não havia nada. Os militares é que construíram barracas”, recorda. Por essa altura “os revoltosos” já tinham trocado os canhangulos por armas automáticas, “que eram fornecidas pelos russos”, e tinham o apoio “dos cubanos, que lhes davam instrução”, o que aumentava, significativamente, o risco e o receio. “Quem é que não teme [pela vida] quando ouve balas a passar por cima da cabeça? Eu vi passarem por cima de mim centenas de balas”. O seu batalhão sofreu 14 baixas. “Uns morreram em combate, outros de doença”.
“Foi uma guerra sem significado, inútil”
Se José Crujo foi dos primeiros militares portugueses a ir para Angola, o conterrâneo António Rosa, de 76 anos, seria um dos últimos. Partiu para Luanda nos primeiros meses de 1973, aos 25 anos, após “um ano e tal de recruta, primeiro em Évora e depois em Santa Margarida [Constância], com treinos para preparação de guerra com fogo real, descidas de helicópteros e tudo o mais”, lembra. Ainda aguardou “uns dois anos para ver se conseguia escapar à guerra”, mas acabou por se “alistar” em 1972, porque corria o risco “de ser condenado à prisão” caso não o fizesse. Com os confrontos a decorrerem há mais de uma década, sabia que “havia cá [em Portugal] muitas mães que já tinham perdido os filhos”. “Tínhamos medo de ir para a guerra. Bom, mas como éramos jovens, ainda havia um bocadinho de aventura. E então, olha, há de ser o que for. Como fomos para Santa Margarida, fazer o fogo real e treinar nos helicópteros e tudo… Bom, seja o que for, era solteiro. Estava confiante que ia voltar”.
Integrado na terceira companhia do Batalhão de Caçadores 4613, António Rosa, primeiro-cabo, foi colocado no norte de Angola, perto de Nambuangongo, na zona dos Dembos – “o pior sítio da guerra” –, a cerca de 180 quilómetros de Luanda. “Era só selva, só matas cerradas que nem o sol entrava lá dentro. Só havia os quartéis em arame farpado, umas barraquinhas para ficarmos”. Como era apontador de metralhadora, seguia, quer em viatura, quer a pé, sempre em lugar de destaque, sempre na mira do inimigo. “Como apontadores sofremos mais. O atirador não sofre tanto. Tínhamos de ir com a metralhadora em cima do carro e quando atacassem a gente, os outros saltavam da berliet e eu tinha de permanecer a fazer fogo. Depois de acabar as munições, saltava do carro. Tinha a minha G3 sempre ao ombro. Saltava e ficava ali deitado no chão como os outros. Quase todas as picadas [estrada ou caminho de terra] tinham uma vala para a gente se esconder. Tínhamos que nos jogar dos helicópteros, daqueles grandes, os Puma, que levavam 14, 15, 16 pessoas. Ali não havia paraquedas. Eles deixavam-nos a uma altura enorme, chegava a ser de 10 metros, porque tinham medo de ser atacados. E nós saltávamos e caíamos no chão, deitados, fosse como fosse”, recorda, reforçando que o seu batalhão “teve muitos problemas, muitas baixas”. De uma só vez “foram mortos 10 camaradas e capturados dois”.
Um dos episódios mais marcantes teve lugar logo nas primeiras semanas após ter chegado a Angola. Um camarada, numa das “operações nas matas”, pisou uma mina e “ficou sem uma perna, sem os dedos e com a outra perna também ferida”, o que obrigou a que tivesse de ser “carregado às costas”, numa “maca improvisada”, durante oito horas, parte do tempo sob fogo inimigo, “subindo e descendo morros”, porque não se podia abandonar “nem os feridos, nem os mortos”. “Deixávamo-lo cair. Ele caía, ficava cheio de lama, ficava cheio de sangue. Pedia para a gente o matar. E ao fim de oito horas é que ele conseguiu transmitir, ele próprio, para Luanda. Arranjámos uma clareira, vieram então os helicópteros. Veio um pequeno fazer fogo em volta da gente para o inimigo não nos atacar. E levaram-no para o hospital de Luanda”.
Numa outra operação nas matas, “já sem pinga de água” e apenas “com três bolachas de água e sal, depois de percorridos mais de 50 quilómetros com 45 graus de calor, abrindo caminho “cortando mato” para não pisarem “os trilhos armadilhados”, já quase ao anoitecer ouviram “tiros” na sua direção. Não tiveram alternativa senão deitarem-se “no chão capinoso”. António Rosa conta que estavam deitados “a fazer proteção em círculo” quando se apercebeu que estavam em cima de “uma grande cobra”. “Não podíamos fazer nada e não ser esperar que se fizesse dia: ou fugíamos das cobras ou fugíamos dos tiros”, justifica. Quando saíam em ação de reconhecimento levavam um cantil de um litro de água “que tinha de dar para três ou quatro dias” e a ração de combate, “que não chegava”. “Aquilo era um calor enorme e no norte de Angola era muito difícil encontrar água, por isso quando acabava tínhamos de beber das poças que os animais selvagens deixavam com as suas pegadas. Púnhamos um lenço [por cima da poça] e chupávamos aquela água podre. Cheguei a tirar aranhas da boca. Mas só íamos beber à noite para não atirarem sobre a gente”. Alturas houve em que foi obrigado a comeu “folhas de capim”.
A zona dos Dembos, devido à floresta cerrada, era propícia a “emboscadas”, reforça. Raro era o dia em que saiam do quartel, o “Zala”, e não acontecida nada. “Era uma zona muito perigosa. Tive muitas armas apontadas a mim. Tive sorte. Ficaram lá muitos colegas meus. Nós íamos por aquelas picadas fora e eram matas em que só se via eram cobras, jiboias, toda a bicharada”, reforça, adiantando que se fossem atacados ao anoitecer tinham de “ficar com os feridos e com os mortos a noite inteira”.
“Uma vez saíamos do ‘Zala’ numa coluna. Eu ia em cima da berliet com a minha metralhadora apontada para os altos morros onde o inimigo tinha os esconderijos para nos atacarem. De repente um dos meus colegas saltou da berliet com toda a rapidez sem avisar a rapaziada. Todos os outros saltaram aflitos para as bermas da picada, pensando que se tratava de uma emboscada. Afinal o meu colega tinha tido uma forte dor de barriga e por isso é que se atirou. Mas eu tive sorte, porque os terroristas [que estavam à espreita] como desconfiaram que nós os tínhamos avistado não fizeram fogo. Dias depois o inimigo foi capturado pelos outros grupos de caçadores naquela zona. Quando foram presentes na pista, ao olharem para mim disseram que eu como apontador de metralhadora estava no alvo em primeiro lugar”. Para o ex-combatente, esta foi “uma guerra sem significado, inútil”. Muitas vezes não chorava “ao pé dos companheiros, mas chorava às escondidas”. “Punha-me ali: quando é que passam agora os dois anos de tropa? E quando é que passa?”, frisa, sublinhando que se no princípio da guerra colonial “os inimigos tinham canhangulos, mandavam um tipo e fugiam”, aquando da sua comissão, no início dos anos Setenta, “já tinham armamento melhor”. “Nós tínhamos as companhias de cubanos, os da UPA e os do FNLA [Frente Nacional de Libertação e Angola] todos contra a gente. A zona dos Dembos era onde eles paravam todos. Foi sofrer em força”.
Quando se deu o 25 de abril de 1974 António Rosa ainda estava na região dos Dembos. Os “zunzuns” que lhes iam chegando a dar conta da situação iam aumentando a esperança de um regresso antecipado a Portugal, ou “Puto”, como os militares chamavam ao País. Mas, contrariando todas as expectativas, a Revolução dos Cravos só lhes trouxe “ainda mais problemas”. Em finais de 1974 a terceira companhia do Batalhão de Caçadores 4613 foi chamada “de urgência” a Luanda, “uma cidade em chamas, [onde se ouviam] gritos de terror e [viam] corpos estendidos naquelas avenidas, pescoços cortados à catanada”, recorda o ex-combatente. “Instalou-se a guerra civil. Homens, mulheres e crianças corriam de um lado para o outro à procura de socorro. Nós éramos uns 30 e eles [os revoltosos] milhares com catanas e armas”.
A secção de António Rosa acabou por ficar a fazer segurança ao aeroporto de Luanda, mas não tinham “mãos a medir a tanto pedido de socorro”. Com o adensar dos conflitos na capital, “dentro daqueles bairros”, os militares acabaram por se esconder “nas valas” que circundavam o aeroporto e onde permaneceram durante duas semanas, passando fome e frio. “Durante essas duas semanas não apareceu lá ninguém [dos militares], só apareciam pessoas a pedir socorro. Eu como primeiro-cabo só dizia que não podíamos sair dali, tínhamos de ficar à espera de ordens do nosso comandante. Não tínhamos comida, não tínhamos água. Algumas pessoas dos prédios é que, às vezes, mandavam umas coisitas para a gente se alimentar. Estávamos num buraco sem saída”.
“Eu fiz uma guerra teórica”
Aspirando a uma carreira militar desde o fim da adolescência – foi incorporado na Força Aérea em 1962 –, Inocêncio Viriato, nascido há 81 anos em Mombeja, reconhece que o espírito com que partiu para a guerra, em finais de novembro de 1966, com a patente de “primeiro-cabo especialista”, não é comparável ao de muitos outros conterrâneos que foram mobilizados para a frente de batalha. “Eu poderia não ter ido ao Ultramar se tivesse feito o contrato inicial que tive com a Força Aérea de três anos. Mas quando completei esses três anos meti o requerimento para continuar na Força Aérea e é aí que vou para o Ultramar. Eu aceitava sem reticências. Aceitava que a minha situação passava também por fazer o mesmo que os outros rapazes da minha idade faziam, ir defender Angola, que era isso que nos segredavam ao ouvido. Era como se estivesse aqui em Beja [na base aérea], via isso como uma missão”, justifica o militar.
A viagem, de nove dias, foi feita a bordo do navio “Vera Cruz” que levava, se calhar, “uns 3000 militares”. Uma viagem que recorda, principalmente, pela “monotonia da paisagem” que lhe aparecia à frente. “Não havia outra coisa a não ser o mar. Passou um navio que se cruzou connosco e foi uma alegria quando subimos todos ao convés para o ver, porque até mesmo a própria rota que os navios levavam não era uma rota... Não era sempre junto à costa. Aquilo era lá escondido...”.
Quando chegou à capital angolana, Inocêncio Viriato foi colocado na Base Aérea n.º 9, que “ficava colada ao aeroporto”, no departamento de comunicações (na carreira de criptografia), para uma comissão de dois anos. Acabaria, no entanto, por ficar “só cinco meses e 11 dias”, porque, entretanto, chegou a sua vez de ingressar no curso de sargentos, regressando, assim, a Portugal. Da Luanda de então, recorda-se que “era uma cidade grande, com vida”, em que “estava a efervescer a construção de muitos prédios, grandes arranha-céus, com boas praias”. Do país, através de “alguns voozinhos” que fazia, ficou com a ideia de que “era uma coisa rica, com grandes fazendas, barragens, lagoas”.
Concluído o curso de sargentos, em maio de 1968 volta para Luanda, já promovido a furriel, para uma comissão de cinco anos – dois anos iniciais e os restantes renovados anualmente, até um máximo de seis. E se na primeira missão, em 1966, não se apercebeu “muito como é que estava o país, como é que estava a guerra”, na segunda a sua posição “já era outra”: “No comando da Segunda Região Aérea, onde fiquei colocado, caía [a informação sobre] toda a atividade bélica”. A perceção que tinha, então, era que “a guerra estava empatada”, que “teria muitos mais anos de vida” e que “ninguém a ganharia, nem nós, nem os povos de lá”. “Tinha havido guerras de cem anos, e com outras durações, e a nossa poderia estar ali para durar, muito embora eu tivesse a noção de que tínhamos, nós, portugueses, muita pressão dos outros povos para a guerra terminar”.
Inocêncio Viriato vivia num prédio de cinco andares que a Força Aérea tinha na avenida dos Combatentes. “Tinha uma messe, uma cozinha e, no quinto andar, um bar e esplanada”. Fez amigos entre os compatriotas que entretanto emigravam para Angola. Frequentava a Casa do Alentejo de Luanda e integrava o seu grupo coral. “Eu fiz uma guerra teórica. E o que a guerra tinha de pior era a prática. Isso eu não vivi. Eu vivi foi a notícia, mas mesmo assim… o caso de um paraquedista que ficou sem uma perna, outro que desapareceu durante três dias e em que a mulher pensava que já tinha morrido... Um amigo com quem tinha bebido uma cerveja na noite anterior a morrer num acidente de helicóptero… Uma pessoa não gosta, ainda hoje não gosto de falar dessas coisas”.
Como era evidente, reforça, não era possível ficar indiferente ao que acontecia à sua volta. Aos conterrâneos “que pisavam uma mina ou que eram emboscados numa picada”. Devido às funções que desempenhava, muitas vezes era obrigado a “ser mentiroso” quando questionado por outros militares “sobre emboscadas ou outros incidentes”. “Eu saía de serviço e ia lá a esse tal prédio da Força Aérea almoçar ou jantar, ou ia para casa, e, por exemplo, os paraquedistas estavam à minha espera e perguntavam: ‘Ó pá, o que é que aconteceu?’ Quantos é que foram feridos?’ E eu respondia que não sabia de nada. Até que eles depois se habituaram. Uma pessoa tinha de fazer um teatro. Mas era a minha missão”.
O regresso ao “Puto” O regresso de José Crujo a Portugal acontece na primavera de 1963, findos os dois anos de comissão, a bordo do “Vera Cruz”, que estava previsto chegar a Lisboa a 1 de maio, mas que, entretanto, “por causa do dia [do Trabalhador], por causa da política, porque nessa altura havia sempre barafunda”, acabou por se atrasar um dia. “Chegámos a Lisboa de manhã, embarcámos no comboio para Faro, fizemos o espólio no outro dia e assim que acabámos de o fazer, éramos cinco, alugámos um táxi e viemos para Beja”. Apesar de tudo, admite que gostaria de regressar a Angola. “Aquilo atrai, não sei o que é que se passa”.
Uma década depois, em 1973, regressou Inocêncio Viriato. “Estava com 30 anos e pensei: tenho namorada – hoje minha mulher – e estávamos na altura de casar, eu tinha 30 anos, ela tinha 27, e vim”.António Rosa deixou Angola em finais de 1974, após as tais duas semanas que passou abrigado nas valas junto ao aeroporto de Luanda. “Os carros da tropa foram-nos buscar, sem a gente saber. Depois daqueles 15 dias foram-nos buscar às valas. Veio outra malta para nos substituir. Fomos para o cais apanhar o barco – o ‘Uíje’– para ir para o ‘Puto’, sem mais nem menos. A gente era para ir para o quartel, buscar a roupa, trazer tudo, mas foi tudo de repente. E quando estávamos a entrar para o barco começaram a apedrejar-nos e a atirarem tiros de longe”.
Meio século volvido, o ex-combatente ainda não consegue dormir uma noite descansado. Ainda acorda sobressaltado. A guerra deixou marcas “profundas”. António Rosa mantém, apesar de todo o sofrimento, fotografias e relatos do que lhe aconteceu – e que ia apontando “num caderninho” que escondia “muito bem debaixo do colchão” – devidamente organizados em dossiês que costuma levar para os encontros de ex-combatentes. “Não consigo explicar o porquê. São recordações”, conclui.