Diário do Alentejo

Tiago Pereira recolhe memórias de São Cucufate

08 de agosto 2019 - 11:45

Texto Bruna Soares foto José Ferrolho

 

Há 40 anos tiveram lugar em Vila de Frades, concelho de Vidigueira, umas escavações que marcaram para sempre este território e as pessoas que nele habitam. Acontece que as Ruínas Romanas de São Cucufate marcaram também a história da arqueologia em Portugal e tudo isto vai ser agora contado num documentário, através de um projeto que ainda não está fechado e que vai ser oficialmente apresentado brevemente, e que junta Tiago Pereira, realizador, à Direção Regional de Cultura do Alentejo, à Câmara de Vidigueira e à Universidade de Coimbra. O objetivo é encontrar dentro da história lugar para incluir também as memórias das pessoas, do concelho e não só, que ajudaram a desvendar este património, reconhecido a nível europeu e internacional. E, por estes dias, há lembranças à solta a serem reavivadas e registadas em vídeo e áudio, e que vão muito para além da história arqueológica do local.

 

Há uma música de António Pilrito que diz: “E com frases simples se escreve as verdades das velhas ruínas de Vila de Frades”. E, por estes dias, é mesmo com “frases simples” que se tem contado ou revivido a história das escavações das Ruínas Romanas de São Cucufate, no concelho de Vidigueira. Porque o intuito de Tiago Pereira, realizador e também criador do projeto “A música portuguesa a gostar dela própria”, “não é interferir nas memórias de ninguém”, apenas as “recolher”.

Porque há 40 anos uma equipa luso-francesa, coordenada por Jorge Alarcão, Françoise Mayet e Robert Étienne, escavou a villa romana de São Cucufate, entre 1979 e 1984, e chegou à conclusão que houve neste local não duas, mas três villae romanas que se entrelaçaram e sobrepuseram. Mas também porque foram aqui realizadas experiências pioneiras, no que à escavação diz respeito, e porque a mesma constitui um marco importante no processo de investigação. E ainda porque esta escavação marcou a identidade deste território e a vida das gentes que o habitam.

O que se propõe agora, 40 anos depois, é um projeto conjunto, que será apresentado oficialmente brevemente, e que junta o realizador Tiago Pereira a entidades locais, regionais e nacionais, nomeadamente, à Direção Regional de Cultura do Alentejo, à Câmara Municipal de Vidigueira e à Universidade de Coimbra.

 

“Recebi o convite destas entidades para vir fazer um levantamento das memórias que existem, nomeadamente, das pessoas que trabalharam, há 40 anos, nestas escavações de São Cucufate. Escavações, estas, que envolveram muita gente das comunidades locais que estão próximas”, começa por explicar, num dia de gravações, Tiago Pereira.

Antes, porém, houve um trabalho prévio, mas que continua: tentar descobrir pessoas que tenham trabalhado nestas escavações. “Já conseguimos algumas e a ideia é trazê-las ao terreno e perceber, a partir daí, do que se lembram, que memórias lhes chegam”, diz.

 

 

“Percebemos que tínhamos um fio condutor. Sabemos que uma das memórias que nunca vai é a vivida e foi importante entendermos que homens que não vinham aqui há anos precisavam de fazer esta movimentação no espaço para conseguirem, de novo, aceder à tal memória vivida e que só desta forma se iam lembrando”. Tiago Pereira

O primeiro dos homens que Tiago Pereira trouxe ao local, José António Honrado, de Vila de Frades, teve, porém, o comportamento de começar a andar por ali afora sem parar. “Andava para trás e para a frente como se estivesse a fazer exercícios de memória para se tentar lembrar de coisas. Depois parava em sítios, íamos ter com ele, e começava a falar. Dizia: Aqui, lembro-me disto e descobrimos isto e aquilo”, adianta o realizador.

Acontece que chamando outro homem ao local, Joaquim Nogueira, também de Vila de Frades, o comportamento repetiu-se. “Percebemos que tínhamos um fio condutor. Sabemos que uma das memórias que nunca vai é a vivida e foi importante entendermos que homens que não vinham aqui há anos precisavam de fazer esta movimentação no espaço para conseguirem, de novo, aceder à tal memória vivida e que só desta forma se iam lembrando”.

À segunda-feira as ruínas de São Cucufate estão encerradas ao público, porém, na segunda-feira passada, receberam a visita de gente que trabalhou, sol a sol, para as colocar a descoberto, para que outros as pudessem conhecer e estudar. De gente que veio, agora, deixar o seu testemunho a Tiago Pereira.

José Rato, de Pedrógão do Alentejo, foi um dos que voltou a revisitar, passados 40 anos, estas ruínas. “É engraçado que uma pessoa está aqui perto e nunca mais aqui tinha vindo. Isto não está nada igual, não havia aqui nada destas portas, nem esta casa. Está muito diferente”, começa por dizer, referindo-se à receção do espaço museológico, bem como ao percurso, arranjado e ordenado, que leva até à villa romana.

José Rato, sem que ninguém lhe tenha dito, faz exatamente o mesmo: começa a deambular por ali. A princípio de pouco ou nada se recorda. Leva tempo a situar-se. Entra e sai. Anda para a frente, para trás. “Daqui não me lembro de nada. Eu não escavei aqui. Eu acho que era do outro lado”, avisa. E continua a caminhar, a olhar, a situar-se, a recuar no tempo, neste exercício de memória, que ora o faz avançar ou parar. “Aqui lembro-me da parte dos arcos, mas eu trabalhei mais da parte de fora”, prossegue.

“Foi aqui que descobrimos os cadáveres e houve pessoas que descobriram moedas, mas eu nunca descobri nenhuma. Dos ossos que encontrámos, alguns estavam na abóbada e estavam mais bem conservados do que aqueles que estavam na terra. Porque a terra aqui tem um pouco de saibro e os ossos estavam mais desfeitos. Recordo-me bem disso.” José Rato

Recorde-se que houve neste local três villas. A primeira, construída no século I, tratava-se de uma villa simples e apenas de caráter rústico, de acordo com a Carta Arqueológica de Vidigueira. A segunda, com um imponente peristilo, provavelmente com 16 colunas feitas de tijolo rebocadas, erigida em meados do século II, e a terceira, a mais grandiosa, aquela que se conservou durante muitos séculos e cujos restos ainda hoje se conservam, terá sido edificada em meados dos século IV em obediência a um novo modelo, o das villas áulicas.

José Rato, de camisola bordeaux rigorosamente aprumada e metida para dentro das calças, já está agora junto ao templo. “Os proprietários da villa, certamente, que se converteram ao Cristianismo, e o templo pagão transformou-se em templo cristão, provavelmente consagrado a São Cucufate. O Cristianismo fez dos templos cemitérios e prova disso são as inúmeras sepulturas descobertas no períbolo, uma delas contendo elementos decorativos inquestionavelmente de época visigótica”, pode ler-se também na Carta Arqueológica de Vidigueira.

“Foi aqui que descobrimos os cadáveres e houve pessoas que descobriram moedas, mas eu nunca descobri nenhuma. Dos ossos que encontrámos, alguns estavam na abóbada e estavam mais bem conservados do que aqueles que estavam na terra. Porque a terra aqui tem um pouco de saibro e os ossos estavam mais desfeitos. Recordo-me bem disso”, retira da sua memória José Rato, enquanto puxa as calças que ostentam um cinto, que ajudam a prender a tal camisola aprumada. Homem, este, que depois de sair da escola foi para a lavoura, pela mesma altura da Revolução que trouxe a Reforma Agrária, e que teve como um dos seus primeiros trabalhos, precisamente, o de aprendiz de ajudante de arqueólogo nestas ruínas. “Depois voltei para o campo e o que faço até hoje é agricultura”, conclui.

“Em termos artísticos, no que pensei, é que o que temos aqui são umas ruínas, mas que com a visita das pessoas, e à medida que se vão lembrando das coisas, começam a ganhar vida. É por este motivo, também, que quis trazer os grupos corais, porque posso encher o espaço vazio de sons. O que tenho pensado sempre para este projeto é construir primeiro uma base sonora que é feita de retalhos das várias memórias, respeitando a individualidade de cada pessoa e a importância da sua memória, também misturada com sons, desde os passos das pessoas no terreno à acústica do local, mas também com partes de cante alentejano”, adianta o realizador.

“É que esta entrada não era nada assim. Isto não estava aqui. Eu acho que a gente nem entrava por aqui. Sabe do que eu me lembro? É que havia ali um edifício que era uma prisão. Isto estava tudo enterrado e a gente é que foi colocando isto a nu”. Manuel Vidó

Agora é a vez de Manuel Vidó voltar as pisar as pedras de São Cucufate. “Trabalhei aqui quando tinha 17 anos e agora tenho 57. Veja bem ao tempo que eu aqui não vinha”, conta. A memória, pelo menos no que aos números diz respeito, está afinada. Passaram, precisamente, 40 anos. E Manuel dedicou, depois desta sua passagem pela área da arqueologia, toda a sua vida ao ofício de pedreiro.

E lá está ele a andar, ruínas romanas adentro, sem parar. Vai para um lado, vai para outro. Faz movimentos com a cabeça, como se, de repente, não estivesse no local que tinha escavado. Curva o corpo, mete as mãos na cintura e o telemóvel toca. “Agora não posso falar, estou aqui a ver se me lembro de umas coisas das escavações de São Cucufate, que eu andei aqui há 40 anos a escavar, e é para contar as coisas a umas pessoas que aqui andam”.

“É que esta entrada não era nada assim. Isto não estava aqui. Eu acho que a gente nem entrava por aqui. Sabe do que eu me lembro? É que havia ali um edifício que era uma prisão. Isto estava tudo enterrado e a gente é que foi colocando isto a nu”, afirma.

Continua no seu percurso de tentar reavivar a memória e, por um momento, deixa de caminhar. “Encontrámos umas campas que tinham duas infusas e até que aquilo se descobrisse levou muito tempo. O que eu fazia era cavar, com uma maceta pequenina e uma colherzinha pequenina e ia descobrindo as coisas. Mas não achei nenhuma moeda de ouro”, conta, enquanto deixa safar um sorriso.

“Cada pessoa tem uma estória diferente sobre este local e isso acaba por ser muito interessante, porque este espaço acaba por ganhar várias estórias e, ao mesmo tempo, tem a sua história concreta, que é a sua história arqueológica”, considera Tiago Pereira. Que lembra ainda que “São Cucufate tem uma característica muito interessante que é o facto de, por exemplo, a arqueóloga Conceição Lopes, depois te ter estado nesta escavação, ocupar, pela primeira vez em Portugal, o cargo de arqueólogo numa câmara municipal”. E ainda porque “São Cucufate tem esta característica de ser um sítio muito falado na academia e que toda a gente conhece a nível europeu e mundial, porque é uma villa rural romana que está neste estado e que tem esta importância”.

Segundo Tiago Pereira, “este documentário, que pode também ser uma instalação, uma vez que o projeto ainda não está fechado, pretende também mostrar o impacto destas escavações neste território”.

"Uma das pessoas que esteve nestas escavações foi a Françoise Mayet, francesa, especialista em cerâmica, e tinha uma equipa de lavadoras que passava o dia a esfregar os caquinhos com muito rigor. Tenho muitas boas memórias destas escavações”. Jorge Cruz

Jorge Cruz, arquiteto, foi uma das pessoas que participou e trabalhou nestas escavações e foi o seu testemunho que se seguiu, nesta viagem de regresso ao passado. “Nessa altura era um jovem estudante de Arquitetura e interessado em arquitetura clássica. Nasci em Vidigueira e surgiu a oportunidade de vir para aqui, porque o meu principal interesse era desenhar arquitetura, sobretudo a que estava em pé, porque normalmente nestes sítios arqueológicos só o que existe são os muros, e aqui existia uma construção com dois pisos, original, e isso era muito interessante para mim. Por isso, o que fiz foi desenhar, muitos muros, muitas estruturas. E, por vezes, tínhamos de acorrer a algumas emergências, como foi, por exemplo, o caso de um túmulo com uma certa importância que aqui foi descoberto”.

Jorge, à semelhança dos seus colegas de memórias, também percorre o espaço. Retira os óculos escuros que se lhe destacam no rosto e o registo da conversa muda por completo, porque cada pessoa tem um registo diferente do que aqui viveu e em função do cargo que também desempenhava. “Íamos almoçar a uma casa que ficava aqui nesta horta junto às ruínas e passámos ali momentos muito interessantes, uma vez que estavam aqui a trabalhar dezenas de pessoas. A hora de almoço era um momento de confraternização”.

Prossegue a sua caminhada e entra dentro da capela. “Aqui tratava-se a cerâmica. Uma das pessoas que esteve nestas escavações foi a Françoise Mayet, francesa, especialista em cerâmica, e tinha uma equipa de lavadoras que passava o dia a esfregar os caquinhos com muito rigor. Tenho muitas boas memórias destas escavações”.

 

“São Cucufate não me sais do sentido. Depois de ver o teu solo mexido. Nas escavações figuras humanas. Talvez dos romanos ou alentejanas”. É assim que conta a moda de António Pilrito. E 40 anos depois, como diz a letra, ainda não saíram “do sentido” das gentes que por estas paragens habitam e isso vai ser perpetuado num documentário, realizado por Tiago Pereira. E brevemente apresentado.

“Este documentário, que pode também ser uma instalação, uma vez que o projeto ainda não está fechado, pretende também mostrar o impacto destas escavações neste território.” Tiago Pereira

Monumento Nacional do concelho de Vidigueira

As ruínas arqueológicas de São Cucufate são o único monumento nacional do concelho de Vidigueira. “As suas origens estão associadas à época romana, no entanto, acredita-se que a sua ocupação inicial remonta à Idade do Ferro. A ocupação deste espaço prolongou-se até aos finais do século XVIII”, pode ler-se na página eletrónica do município de Vidigueira. Que explica ainda que “no período muçulmano (século X ou XI) estabeleceu-se no edifício uma comunidade de frades que ali viveu, possivelmente, até à segunda metade do século. XII, tendo São Cucufate por seu padroeiro. No decorrer das escavações arqueológicas descobriu-se nas traseiras da villa o cemitério medieval dos frades”. A descoberta de pinturas murais nas ruínas de São Cucufate contribuiu para colocar este importante marco da história local no caminho da rota dos frescos. 

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