Diário do Alentejo

Misericórdias promovem património artístico

12 de junho 2019 - 10:50

Texto Bruna Soares

 

“Em termos patrimoniais a Misericórdia de Beja possui um dos maiores e mais belos edifícios da cidade e um espólio hospitalar que pode preencher um museu”. Quem o começa por explicar é Florival Baiôa Monteiro, presidente da Associação de Defesa do Património de Beja (ADPBeja). Edifício, este, que acolheu as VI Jornadas de Museologia. Um encontro de dimensão nacional que trouxe à cidade de Pax Julia as diferentes Misericórdias do País, com o objetivo de debaterem, precisamente, os patrimónios que têm, há séculos, à sua guarda.

 

“Mas esta é uma pequena parte do seu valor patrimonial, se nos lembrarmos de quem foi a fundadora nacional das Misericórdias. E é este um ponto fundamental da história de Beja, pois nela nasceu a rainha D. Leonor. E foi ela que criou, em 1948, a primeira Misericórdia, em Lisboa”, prossegue Florival Baiôa, como se não fossem necessários mais argumentos para explicar o porquê da escolha de Beja para acolher, este ano, esta iniciativa.

Misericórdia de Beja | Foto de José SerranoMisericórdia de Beja | Foto de José Serrano

“Temos uma rainha nascida em Beja, a mulher mais rica do seu tempo, e que exerceu um poder social e político como poucas mulheres o fizeram. Seguramente aprendeu com a sua mãe D. Brites”, defende o historiador. Recorde-se que Dom Fernando, primeiro duque de Beja, que iniciou uma verdadeira revolução urbana, com a construção de um novo hospital, foi depois acompanhado no intuito pela sua mulher, D. Brites e pelo seu filho D. Manuel I.

“Estas figuras da nossa história precisam de ser conhecidas, divulgadas e servir de referência pedagógica e turística”, defende o presidente da ADPBeja. Que diz que a “Santa Casa da Misericórdia de Beja pode e deve ser uma referência museológica”. E recordou: “Esta santa casa tem já um projeto de beneficiação de instalações e está prevista a abertura de um museu, já que a sua farmácia possui um mostruário de antigos instrumentos médicos, estando ainda prevista uma grande investigação documental”.

 

Porque, na verdade, as Misericórdias são detentoras de um vasto património. Mas, afinal, que herança é esta? A resposta, ao “Diário do Alentejo”, chega pela boca de Mariano Cabaço, responsável pelo Gabinete do Património Cultural da União das Misericórdias Portuguesas. “As Misericórdias têm em sua posse todas as tipologias de património, o que faz destas instituições agentes incontornáveis de cultura e promoção de conhecimento”. E explica: “Temos um património imóvel de grande amplitude temática que conta com igrejas, conventos, casas das misericórdias, jazigos, farmácias, casas de família, propriedades agrícolas, praças de touros, cemitérios, balneários públicos, salinas, entre outros”.

 

Na verdade, o património móvel incorpora, “para além de instrumentos ligados à gestão de hospitais e farmácias, peças de arte que percorrem as tipologias de escultura, mobiliário, ourivesaria, azulejarias, têxteis, armaria, numismática, cerâmica, pintura e outras”. Coleções, estas, provenientes de acervos de igrejas, das dependências onde se asseguram os serviços prestados pelas Misericórdias e de doações e legados.

 

“Não podemos igualmente esquecer a grande importância do património arquivístico, pois a riqueza documental das Misericórdias permite conhecer a história social, cultural, religiosa, política e económica de cada comunidade. Também as manifestações de património intangível ou imaterial encontram nas Misericórdias abundantes protagonistas através dos rituais de posse, das celebrações da Semana Santa, nos cortejos de oferendas, nos rituais fúnebres e de uma maneira geral em todos os procedimentos de representação institucional”, prossegue Mariano Cabaço.

Mas, de acordo este responsável, “infelizmente não há uma precessão geral do universo patrimonial das Misericórdias”. E explica: “Em cada comunidade é conhecida a Igreja da Misericórdia, algumas manifestações de índole religiosa, mas pouco mais é conhecido. Por vezes, o património que está mais próximo e presente no nosso quotidiano torna-se indiferente e quase invisível aos nossos olhos”.

Embora defenda que é importante dizer também que “não é assim em todo o território”, uma vez que já existem “relevantes projetos de dinamização e divulgação deste património”. E o Baixo Alentejo, no que a esta matéria diz respeito, também é testemunha de boas práticas. Destaque, por isso, para a Misericórdia de Ferreira do Alentejo, que, com uma parceria com a câmara municipal local, tem um projeto museográfico, instalado na Igreja da Misericórdia, possibilitando uma viagem à história desta instituição, mas também a um diversificado conjunto de arte sacra. Mas também para o Museu de Arte Sacra e Arqueologia de Vila Alva (Masava), que resulta da agregação de dois edifícios, a Igreja da Misericórdia de Vila Alva e a Igreja do Senhor dos Passos, um projeto desenvolvido pela Misericórdia, que contou com a colaboração da comunidade e entidades locais.

Misericórdia de Beja | Foto de José Serrano

Já a Misericórdia de Mértola, através de um contrato de comodato, também permitiu, na instalação do edifício da sua igreja, o núcleo de Arte Sacra, que guarda exemplares de retábulos, esculturas, alfaias litúrgicas e brocados. A Misericórdia de Odemira, por sua vez, abriu o espaço da sua igreja a diversas atividades culturais viradas para a comunidade, preservando assim a memória e trazendo pessoas a visitar este riquíssimo património. E, por fim, a Misericórdia de Messejana tem a seu cargo um Museu Etnográfico, onde se preserva a memória e as vivências das pessoas da vila, mas também onde atualmente se desenvolve uma parceria com uma associação local, que tem um laboratório de fabricação digital (Fablab), para a aplicação de novas tecnologias.

 

“Em certa medida este é um património que tem sido valorizado e preservado. Não podemos esquecer que a prioridade de ação das Misericórdias não é esta, mas, apesar de todos os constrangimentos sociais e financeiros, vimos assistindo a um crescente interesse pela preservação do património”, considera Mariano Cabaço.

 

Mas estão as Misericórdias vocacionadas para a gestão deste património? “Sem dúvida que estão, pois só assim se explica que passados mais de quinhentos anos da sua fundação, estas instituições tenham sabido preservar os seus bens e propriedades”, defende o responsável pelo Gabinete do Património Cultural da União das Misericórdias Portuguesas. Até porque, em seu entender, “apesar de algumas vicissitudes históricas e políticas, que muito prejudicaram as Misericórdias, pode-se afirmar que, no essencial, o património conseguiu resistir”. “Sempre tivemos nas Misericórdias um sentido de gratidão e respeito pelos legados. Também a tradição de alguns rituais e as manifestações públicas de fé, como as procissões, em muito contribuíram para a preservação de algum património. As Misericórdias são instituições locais, emergem da comunidade e são geridas e vigiadas pela comunidade, o que explica em parte a preocupação em preservar o património e a memória da instituição”, argumenta.

 

Misericórdia de Beja | Foto de José SerranoMisericórdia de Beja | Foto de José Serrano

O património das Misericórdias do Baixo Alentejo não é, assim, muito diferente daquele que se encontra nas restantes congéneres do País. No entanto, de acordo com Mariano Cabaço, “é curioso constatar que estas Misericórdias do Sul preservaram melhor os acervos dos antigos hospitais e farmácias. Uma outra característica particular centra-se na azulejaria e na pintura, muito marcadas e influenciadas pelos artistas locais”. Para Florival Baiôa, “a população deve conhecer as suas raízes, pois só assim reforçará sinergias com a região e pode aumentar a esperança de melhores dias de desenvolvimento”. E dá como bom exemplo as obras de conversação e a abertura da Capela de Nossa Senhora da Piedade, precisamente pela mão da Santa Casa da Misericórdia de Beja.

 

Em Beja, tendo em conta a preservação e valorização deste património, para o presidente da associação que zela pelo legado histórico da cidade, “a instalação de um museu pode não ser a parte mais onerosa, uma vez que se tem de pensar na sua abertura, segurança, dinâmica interna e continuidade expositiva, coisa que só pode ser feita com a conjugação de esforços da comunidade, principalmente com a formação de uma equipa altamente especializada que coordene os museus de Beja”. Uma solução, segundo defende, “muito menos onerosa e eficiente da que existe neste momento”.

 

Para este historiador “existe espólio e edificado suficiente para atrair visitantes, explicar às populações a arte e a história da região e aumentar a oferta turística cultural, pois daí virá emprego e dinâmica cultural e económica”.

 

E Mariano Cabaço completa: “Uma das apostas tem de passar por parcerias entre Misericórdias e outras instituições locais, pois só ganhando escala e dimensão na oferta podemos atingir públicos mais vastos”. E conclui: “As Misericórdias com o seu potencial histórico de séculos, presente ainda hoje entre nós, apenas terão de afinar a mensagem e criar as condições de preservação e dinamização do seu património artístico e cultural. Se permanecerem fiéis aos seus valores e missão, num serviço permanente de pessoas para pessoas, será fácil aproximar o património das pessoas e afirmar uma identidade única em Portugal e no Mundo”.

 

VI Jornadas de Museologia aconteceram em Beja

João Paulo Ramôa, provedor da Santa Casa da Misericórdia de Beja e anfitrião das VI Jornadas de Museologia, recordou que, segundo argumentam os historiadores, “esta foi a segunda santa casa a ser criada no País”. Mas que a história da instituição se “reaviva todos os dias com novas valências e novas atividades”. “Temos a obrigação de pegar neste legado patrimonial, que tem muito valor e que nos foi dado, e de o desenvolver, estimular e, cada vez mais, pô-lo à disposição da comunidade”. E o presidente da União das Misericórdias Portuguesas, Manuel de Lemos disse: “A salvaguarda do património é uma das áreas essenciais definidas como prioridade”, até porque o “património é fator de desenvolvimento, de criação de emprego e de valorização do território”.

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