Diário do Alentejo

90 anos de Vínculos Eternos, de Manuel Ribeiro

12 de junho 2019 - 10:35

Texto Luís Carvalho, investigador da Universidade Nova de Lisboa

 

Com o seu percurso de anarquista, fundador do Partido Comunista Português e católico democrata, o bejense Manuel Ribeiro foi um dos escritores mais lidos e discutidos em Portugal nos anos 1920. Aborda-se aqui o último romance que ele publicou nessa década, Vínculos Eternos (1929).

 

Conta a história de um revolucionário perseguido e desiludido, que se aproxima da fé cristã e encontra paz e amor na bela paisagem do Minho. Mas para lá deste enredo o livro discute um problema que permanece actual e fundamental: o impacto dos avanços científicos na evolução da sociedade. À época, no contexto da ditadura militar, foi também uma tomada de posição em defesa da democracia.

 

O interesse de Manuel Ribeiro por ciência não era novo. Já tinha aliás traduzido dois volumes de divulgação científica: Iniciação Química, de Georges Darzens, e Iniciação Astronómica, de Camille Flammarion. Para este último, escreveu um capítulo sobre observação de planetas e a passagem do cometa Haley pela Terra, em 1910.

Mas no romance Vínculos Eternos a preocupação é outra. O livro abre, 10 anos depois do final da I Guerra Mundial, com um conjunto de citações, entre as quais esta, do matemático Paul Painlevé: “O progresso científico aumenta o poder dos meios de destruição, é necessário dar força ao desenvolvimento moral dos homens e das nações”. Segue-se uma carta-dedicatória ao democrata republicano Brito Camacho. E logo aí Manuel Ribeiro explica: “Não faltará quem descubra neste livro hostis propósitos contra a Sciência. De forma nenhuma! O que se declara [...] é que, enquanto se não criar uma Consciência social bem forte que tenha mão na Sciência e tire dela somente utilidades benéficas, a humanidade está em perigo”.

 

Nem todos compreendem esta preocupação. O intelectual anarquista João Campos Lima, na linha da tradição anti-clerical republicana, vê de facto neste livro uma hostilização da ciência. Em polémica com ele na imprensa, Manuel Ribeiro desenvolve o seu ponto de vista: “O laboratório é neutro. Deste modo, enquanto se não criar uma consciência colectiva bem forte que só aproveite as utilidades benéficas da ciência, os antagonismos sociais de interesses, de raças, de nações, e de toda a espécie, servir-se-ão das descobertas científicas para atormentar a humanidade e desorganizar a vida social. Sabe-se lá que surpresas horríveis os sábios químicos nos apresentarão numa guerra próxima, que se chama já a guerra química? E onde está a consciência colectiva capaz de impedir colisões desta natureza?”

 

Naquele momento de ascensão dos fascismos, narrativas científicas como a teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin, estavam sendo utilizadas para justificar desigualdades sociais e posições racistas. É contra isso que Manuel Ribeiro reage, vendo aí uma ameaça às raízes da democracia. E apela: “É preciso não deixar vingar este horrível lema [...] Determinismo, Desigualdade, Seleção, e opor-lhe [...] est’outro [...] que tem reassaibo cristão: Liberdade, Igualdade, Fraternidade”.

Por outro lado, defender naquele momento histórico o lema da Revolução Francesa e dedicar o livro a um destacado democrata era uma tomada de posição contra a ditadura. Francisco Mayer Garção, jornalista republicano, compreende isso e manifesta o seu apoio: “Concordo plenamente com Manuel Ribeiro quando diz que o velho e constante lema da democracia, exprimindo-se com este fórmula sublime: Liberdade, Igualdade, Fraternidade, tem um resaibo cristão”. Isto “porque traduz o anseio sempre insatisfeito dum ideal perenemente adorado” que “prossegue um grande sonho como o das religiões” e “cujo perfeito tipo se encontra nas eras iniciais do cristianismo”.

 

O padre anti-fascista Francisco Alves Correia, que acabaria expulso de Portugal por Salazar, também apoia Manuel Ribeiro. Mas um católico que se queixa que há ali um “ressaibo revolucionário” é o conde João de Ameal, futuro comandante de uma instituição de índole fascista, a Legião Portuguesa.

 

No fundo, Manuel Ribeiro estava a focar a responsabilidade dos indíviduos e das comunidades humanas pelos usos que escolhem dar ao conhecimento científico e às suas aplicações tecnológicas – e pelas consequências dessas escolhas. A seu ver, a fé religiosa seria a melhor fonte para uma consciência social capaz de retirar benefícios da ciência e construir uma sociedade mais justa. Mas estava a manifestar a mesma preocupação que Bento de Jesus Caraça expressa numa perspectiva laica, quando este diz que “os males não estão na máquina mas na desigualdade de distribuição dos benefícios que ela produz [...] quer dizer, o problema fundamental é, não um problema de técnica, mas um problema de moral social”.

Manuel Ribeiro e Bento de Jesus Caraça estariam ambos ligados a uma tentativa dinamizada pelo PCP para criar uma associação de intelectuais antifascistas. Mais isso já foi depois de Vínculos Eternos...

 

Comentários